Gradações e Degradações
A energia usada em nossos pensamentos – escreve Bertrand Russel em Porque Não Sou Cristão – parece ter uma origem química; uma deficiência de iodo, por exemplo, transformará um homem inteligente num idiota.
Os fenômenos mentais parecem estar ligados a uma estrutura material.
Não é, pois, de admirar-se que o notável matemático e filósofo britânico conclua, enfática e inapelavelmente:
– Penso que, quando morrer,apodrecerei e que nada do meu eu sobreviverá.
Lord Russel morreu há alguns anos, quase centenário, pois a Vida Maior concedeu-lhe tempo dilatado para pensar e expor suas ideias. Morreu com plena convicção de que mergulhava para sempre no mistério insondável do nada: iludido, portanto, como viveu, pois identificava o seu eu com o conjunto de células que lhe formavam o corpo físico, quando este é apenas instrumento de trabalho do Espírito imortal.
Mas o eminente pensador não aceitava nem o Espírito nem a imortalidade; e,consequentemente, nem a historicidade do Cristo nem a existência de Deus.
Segundo ele, as provas apresentadas pela pesquisa psíquica acerca da sobrevivência do ser foram muito mais fracas do que as provas fisiológicas apresentadas pelo outro lado. Admitia que aquelas poderiam,de uma hora para outra, tornar-se tão fortes que não seria científico descrer da sobrevivência. Não queria dizer com isso, porém, que o problema da imortalidade estivesse resolvido, porque a sobrevivência poderia ser apenas um adiamento da morte psíquica.
Vemos aqui os extremos a que o ilustrado autor levou o culto da Ciência, da qual sempre esperava as respostas finais. Em tempos outros, durante a Revolução Francesa,cultivou-se com a mesma infantil imaturidade a Razão, que,na figura de uma jovem cortesã, foi entronizada em altares parisienses e cultuada como divindade em cerimônias oficiadas por sacerdotes transviados.
Por aí se vê como até as mais nobres ideias podem ser aviltadas, a ponto de servirem de rampas de descidaàs sombras; podendo, no entanto, ser também ser enaltecidas, constituindo-se em firmes degraus de subidaà luz.
Allan Kardec, por exemplo, utilizou-se da ideia da razão,no seu conceito positivo e exato, como suporte do Espírito na busca da verdade. Para ele somente era aceitável o que passasse pelos filtros da racionalidade, pois o irracional é da essência da alienação. Jamais admitiria o endeusamento da razão; colocava-a, porém, no lugar que lhe compete como importante instrumento da especulação. Não mais, contudo, que instrumento.
Quantoà Ciência, também lhe atribuiu importante papel na teoria do conhecimento espírita, situando-a ao lado da Filosofia e da Moral, pois não desejou ver nenhum dos três conceitos divorciados dos demais. Sobre essa base triangular, em que os vértices são Filosofia, Ciência e Moral, edificou – com o concurso de seus companheiros espirituais – a obra de que foi incumbido.
Nós todos, os que pregamos ou escrevemos sobre a Doutrina dos Espíritos, vivemos a repetir esses conceitos básicos, mas estaremos na plena consciência do que eles realmente significam ?
Em 1978, vimos a tomada de posição do movimento francês, que, descartando-se praticamente de um dos aspectos Doutrina, se descaracterizou como Espiritismo, da mesma forma que o tomaríamos irreconhecível se abandonássemos qualquer dos demais aspectos.
O Espiritismo é uma doutrina filosófica, apoiada, explicada e demonstrada pela ciência experimental, acoplada necessariamente a um consequente substrato ético. De que valeria o saber sem a comprovação, e de que serve o saber comprovado, se não produzir o bem?
Invertendo a ordem das coisas, alguns espiritas franceses acusaram o Espiritismo de se ter desvirtuado, no Brasil, desviando-se das suas origens e tornando-se místico, desinteressado da Ciência.
Que é misticismo ? Tal como no pertinenteà Razão ouà Ciência, há gradações e degradações que podem ser aferidas no que se pratica sob o pálio do de misticismo. Há o místico desvairado, praticamente alienado, que constrói mundos imaginários, para exercer as suas fantasias , e há o místico de pés solidamente plantados na realidade, que ora com emoção, sinceridade e fervor, sem jamais ignorar o suporte experimental de sua crença nem a síntese filosófica que a ordena e a encaixa no quadro geral do conhecimento humano. Não precisamos e não devemos temer o rótulo de místicos, se temos consciência da natureza do nosso relacionamento com os poderes espirituais. Deus não questiona os rótulos que nos pregam ou que nós mesmo adotamos: o que Ele faz é testar nossas motivações através do complexo de leis impecáveis e invariáveis que instituiu para dirigir o processo evolutivo das incontáveis humanidades que criou e espalhou pelo Universo.
É imperioso, pois, na atual conjuntura – acusados que fomos de trair Kardec exatamente por continuarmos a entender o Espiritismo como doutrina tríplice,qual ele o é,na verdade – não nos deixarmos envolver em controvérsias nem nas ilusões de que também precisamos provar o nosso interesse pela Ciência, abandonando a moral evangélica. Na prática do Espiritismo nenhum aspecto é para ser abandonado. É claro que temos de cultivar a Ciência, como é óbvio ser necessária a visão global da Filosofia, tanto quanto é indispensável a Moral Cristã. Fora do triângulo não estaremos mais no Espiritismo, e simà deriva, abandonados ao vento eàs correntes das nossas fantasias, talvez brilhantes, mas desarvorados como Lord Russel. (Do Livro: Candeias da Noite Escura, por Hermínio C. Miranda)