Saulo e Sadoc entraram na igreja humilde de Je rusalém, notando a massa
compacta de pobres e miseráveis que ali se aglomeravam com um raio de
esperança nos olhos tristes.
O pavilhão singelo, construído à custa de tantos sacrifícios, não passava de
grande telheiro revestido de paredes frágeis, carente de todo e qualquer
conforto.
Tiago, Pedro e João surpreenderam-Se singularmente com a presença do
jovem doutor da Lei, que se populari zara na cidade pela sua oratória veemente
e pelo acurado conhecimento das Escrituras.
Os generosos galileus ofereceram-lhe o banco mais confortável.
Ele
aceitou as gentilezas que lhe dispensa vam, sorrindo com indisfarçável ironia de
tudo que ali se lhe deparava.
Íntimamente, considerava que o próprio Sadoc fora vítima de falsas
apreciações.
Que podiam fazer aqueleS homens ignorantes, irmanados a
outros já envelhecidos, valetudinários e doentes ? Que podiam significar de
perigoso para a Lei de Israel aquelas crian ças ao abandono, aquelas mulheres
semimortas, em cujo coração pareciam aniquiladas todas as esperanças?
Experimentava grande mal-estar defrontando tantos ros tos que a lepra havia
devastado, que as úlceras malignas haviam desfigurado impiedosamente.
Aqui,
um velhote com chagas purulentas envolvidas em panos fétidos; além, um
aleijado mal coberto de mulambos, ao lado de órfãos andrajosos que se
acomodavam com humildade.
O conhecido doutor da Lei notou a presença de várias pessoas que lhe
acompanhavam a palavra na interpre tação dos textos de Moisés, na Sinagoga
dos cilícios; outras que seguiam de perto as suas atividades no Sinédrio, onde
a sua inteligência era tida como penhor de esperan ça racial.
Pelo olhar,
compreendeu que esses amigos ali estavam igualmente pela primeira vez.
Sua
visita, ao templo ignorado dos galileus sem-nome, atraira muitos afeiçoados do
farisaísmo dominante, ansiosos pelos serviços eventuais que pudessem
destacá-los e recomendá-los às autoridades mais importantes.
Saulo concluiu
que aquela fração do auditório fazia ato de presença e de solidariedade em
qualquer providência que houvesse de tomar.
Pareceu -lhe natural e lógica
aquela atitude, conveniente aos fins a qu e se propunha.
Não se contavam fatos
incríveis, operados pelos adeptos do “Caminho”? Não seriam grosseiras e
escandalosas mistificações? Quem diria que tudo aquilo não fosse o produto
ignóbil de bruxarias e sortilégios condenáveis? Na hipótese de lhe iden tificar
qualquer finalidade desonesta, podia contar, mesmo ali, com grande número de
correligionários, dispostos a defender o rigoroso cumprimento da Lei, custasse –
lhes embora os mais pesados sacrifícios.
Notando um que outro quadro menos grato ao seu olha r acostumado aos
ambiéntes de luxo, evitava fixar os aleijados e doentes que se acotovelavam no
recinto, chamando a atenção de Sadoc, com observações irônicas e
pitorescas.
Quando o vasto recinto, desnudo de orna tos e símbolos de
qualquer natureza, de todo se encheu, um Jovem permeou as filas extensas,
ladeado de Pedro e João, galgando os três um estrado quase natural, for mado
de pedras superpostas.
— Estevão!.
.
.
É Estevão!.
.
.
53
Vozes abafadas inculcavam o pregador, enquanto seus admiradores mais
fervorosos apontavam para ele com jubiloso sorriso.
Inesperado silêncio mantinha todas as frontes em singulares expectativas,
O moço, magro e pálido, em cuja assistência os mais infelizes julgavam
encontrar um desdobramento do amor do Cristo, orou em voz alta suplic ando
para si e para a assembléia a inspiração do Todo -Poderoso.
Em seguida, abriu
um livro em forma de rolo e leu uma passagem das anotações de Mateus:
— Mas, ide antes às ovelhas perdidas da casa de Israel; e, indo, pregai
dizendo: é chegado o reino dos Céus.
(1)
Estevão ergueu alto os olhos serenos e fulgurantes, e, sem se perturbar
com a presença de Saulo e dos seus numerosos amigos, começou a falar mais
ou menos nestes termos, com voz clara e vibrante:
— “Meus caros, eis que chegados são os tempos em qu e o Pastor vem
reunir as ovelhas em torno do seu zelo sem limites.
éramos escravos das
imposições pelos raciocínios, mas hoje somos livres pelo Evangelho do Cristo
Jesus.
Nossa raça guardou, de épocas imemoriais, a luz do Tabernáculo e
Deus nos enviou seu Filho sem mácula.
Onde estão, em Israel, os que ainda
não ouviram as mensagens da Boa Nova? Onde os que ainda não se
felicitaram com as alegrias da nova fé? Deus enviou sua resposta divina aos
nossos anseios milenários, a revelação dos Céus aclara os nos sos caminhos.
Consoante as promessas da profecia de todos quantos choraram e sofreram
por amor ao Eterno, o Emissário Divino veio até ao antro de nossas dores
amargas e justas, para iluminar a noite de nossas almas impenitentes, para
que se nos desdobrassem os horizontes da redenção.
O Messias atendeu aos
problemas angustiosos da criatura humana, com a solução do amor que redime
todos os seres e purifica todos os pecados.
Mestre do trabalho e da perfeita
alegria da vida, suas bênçãos representam nossa hera nça.
Moisés foi a porta,
o Cristo é a chave.
Com a coroa do martírio adquiriu, para nós outros, a láurea
imortal da salvação.
éramos cativos do erro, mas seu sangue nos libertou.
Na
vida e na morte, nas
(1) Mateus, capítulo 10º, versículos 6 e 7.
— (Nota de Emmanuel.
)
alegrias de Caná, como nas angústias do Calvário, pelo que fez e por tudo que
deixou de fazer em sua gloriosa passagem pela Terra, Ele é o Filho de Deus
iluminando o caminho.
“Acima de todas as cogitações humanas, fora de todos os atritos da s
ambições terrestres, seu reino de paz e luz esplende na consciência das almas
redimidas.
“Ó Israel! tu que esperaste por tantos séculos, tuas angústias e dolorosas
experiências não foram vãs!.
.
.
Enquanto outros povos se debatiam nos
interesses inferiores, cercando os falsos ídolos de falsa adoração e
promovendo, simultaneamente, as guerras de extermínio com requintes de
perversidade, tu, Israel, esperaste o Deus justo.
Carregaste os grilhões da
impiedade humana, na desolação e no deserto; converteste em cânticos de
esperança as ignomínias do cativeiro; sofreste o opróbrio dos poderosos da
Terra; viste os teus varões e as tuas mulheres, os teus jovens e as tuas
crianças exterminados sob o guante das perseguições, mas nunca descreste
da justiça dos Céus! Como o Salmista, afirmaste com teu heroismo que o amor
e a misericórdia vibram em todos os teus dias! Choraste no caminho longo dos
54
séculos, com as tuas amarguras e feridas.
Como Job, viveste da tua fé,
subjugada pelas algemas do mundo, mas já recebeste o sagrado depósito de
Jeová — O Deus Único!.
.
.
Oh! esperanças eternas de Jeru salém, cantai de
júbilo, regozijai-vos, embora não tivéssemos sido fiéis inteiramente à
compreensão, por conduzir o Cordeiro Amado aos braços da cruz.
Suas
chagas, todavia, nos compraram para o céu, com o alto preço do sacrifício
supremo!.
.
.
“Isaías o contemplou, vergado ao peso de nossas iniqüidades, florescendo
na aridez dos nossos corações, qual flor do céu num solo adusto, mas, revelou
também, que, desde a hora da sua extrema renúncia, na morte infamante, a
sagrada causa divina prosperaria para sempre em suas mãos.
“Amados, onde andarão aquelas ovelhas que não souberam ou não
puderam esperar?
Procuremo-las para o Cristo, como dracmas perdidas do seu desvelado
amor!
Anunciemos a todos os desesperançados as glórias e os júbilos do seu
reino de paz e de amor imortal!.
.
.
“A Lei nos retinha no espírito de nação, sem con seguir apagar de nossa
alma o desejo humano de supremacia na Terra.
Muitos de nossa raça hão
esperado um príncipe dominador, que penetrasse em triunfo a cidade santa,
com os troféus sangrentos de uma bata lha de ruína e morte; que nos fizesse
empunhar um cetro odioso de força e tirania.
Mas o Cristo nos libertou para
sempre.
Filho de Deus e emissário da sua glória, s eu maior mandamento
confirma Moisés, quando recomenda o amor a Deus acima de todas as coisas,
de todo o coração e entendimento, acrescentando, no mais formoso decreto
divino, que nos amemos uns aos outros, como Ele próprio nos amou.
“Seu reino é o da consciência reta e do coração purificado ao serviço de
Deus.
Suas portas constituem o maravilhoso caminho da redenção espiritual,
abertas de par em par aos filhos de todas as nações.
“Seus discípulos amados virão de todos os qua drantes.
Fora de suas luzes
haverá sempre tempestade para o viajor vacilante da Terra que, sem o Cristo,
cairá vencido nas batalhas infrutuosas e destruidoras das me lhores energias do
coração.
Somente o seu Evangelho confere paz e liberdade.
Ë o tesouro do
mundo.
Em sua glória sublime os justos encontrarão a coroa de triunfo, os
infortunados o consolo, os tristes a fortaleza do bom ânimo, os pecadores a
senda redentora dos resgates mi sericordiosos.
“É verdade que o não havíamos compreendido.
No grande testemunho, os
homens não entenderam sua divina humildade, e os mais afeiçoados o
abandonaram.
Suas chagas clamaram pela nossa indiferença criminosa.
Ninguém poderá eximir-se dessa culpa, visto sermos todos herdeiros das suas
dádivas celestiais.
Onde todos gozam do benefício, ninguém pode fugir à
responsabilidade.
Essa a razão por que respondemos pelo crime do Calvário.
Mas, suas feridas foram a nossa luz, seus martírios o mais ardente apelo
de amor, seu exemplo o roteiro aberto para o bem sublime e imortal.
“Vinde, pois, comungar conosco à mesa do banquete divino! Não mais as
festas do pão putrescível, mas o eterno alimento da alegria e da vida.
.
.
Não
mais o vinho que fermenta, mas o néctar confortante da alma, diluído nos
perfumes do amor imortal.
“O Cristo é a substância da nossa liberd ade.
Dia virá em que o seu reino
abrangerá os filhos do Oriente e do Ocidente, num amplexo de fraternidade e
55
de luz.
Então, compreenderemos que o Evangelho é a resposta de Deus aos
nossos apelos, em face da Lei de Moisés.
A Lei é humana; o Evangelho é
divino.
Moisés é o condutor; O Cristo, o Salvador.
Os profetas foram mordomos
fiéis; Jesus, porém, é o Senhor da Vinha.
Com a Lei, éramos servos; com o
Evangelho, somos filhos livres de um Pai amoroso e justo!.
.
.
”
Nesse ínterim, Estevão sustou a palavra que lh e fluía harmoniosa e
vibrante dos lábios, inspirada nos mais puros sentimentos.
Os ouvintes de
todos os matizes não conseguiram ocultar o assombro, ante os seus conceitos
de vigorosas revelações.
A multidão embeve cera-se com os princípios
expostos.
Os mendigos, ali aglomerados, endereçavam ao pregador um sorriso
de aprovação, bem significativo de jubilosas esperanças.
João fixava nele os
olhos enternecidos, identificando, mais uma vez, no seu verbo ardente, a
mensagem evangélica interpretada por um discí pulo dileto do Mestre
inesquecível, nunca ausente dos que se reúnem em seu nome.
Saulo de Tarso, emotivo por temperamento, fun dia-se na onda de
admiração geral; mas, altamente sur preendido, verificou a diferença entre a Lei
e o Evangelho anunciado por aqueles homens estranhos, que a sua
mentalidade não podia compreender.
Analisou, de relance, o perigo que os
novos ensinos acarretavam para o judaísmo dominante.
Revoltara -se com a
prédica ouvida, nada obstante a sua ressonância de mis teriosa beleza.
Ao seu
raciocínio, impunha-se eliminar a confusão que se esboçava, a propósito de
Moisés.
A Lei era uma e única.
Aquele Cristo que culminou na derrota, entre
dois ladrões, surgia a seus olhos como um mistificador indigno de qualquer
consideração.
A vitória de Estevão na consciência popular, qual a veri ficava
naquele instante, causava-lhe indignação.
Aqueles galileus poderiam ser
piedosos, mas não deixavam de ser criminosos pela subversão dos princípios
invioláveis da raça.
Oorador preparava-se para retomar a palavra, momentaneamente
interrompida e aguardada com expecta ção de júbilo geral, quando o jovem
doutor se levantou ousadamente e exclamou, quase colérico, frisando os
conceitos com evidente ironia.
— “Piedosos galileus, onde o senso de vossas dou trinas estranhas e
absurdas? Como ousais proclamar a falsa supremacia de um nazareno
obscuro sobre Moisés, na própria Jerusalém onde se decidem os destinos das
tribos de Israel invencível? Quem era esse Cristo? Não foi um simples
carpinteiro ?“
Ao orgulhoso entono da inesperada apóstrofe, houve no ambiente um tal ou
qual retraimento de temor, mas, dos desvalidos da sorte, para quem a
mensagem do Cristo era o alimento supremo, partiu para Estevão um olhar de
defesa e jubiloso entusiasmo.
Os Apóstolos da Galiléia não conseguiam
dissimular seu receio.
Tiago estava lívido.
Os amigos de Saulo notaram -lhe a
máscara escarninha.
O pregador também empalidecera, mas reve lava no olhar
resoluto o mesmo traço de imperturbável serenidade.
Fitando o doutor da Lei, o
primeiro homem da cidade que se atrevera a perturbar o esforço generoso do
evangelismo, sem trair a seiva de amor que lhe des bordava do coração, fez ver
a Saulo a sinceridade das suas palavras e a nobreza dos seus pensamentos.
E
antes que os companheiros voltassem a si da surpresa que os assomara, com
admirável presença de espírito, indi ferente à impressão do temor coletivo,
obtemperou:
— “Ainda bem que o Messias fora carpinteiro: por que, nesse caso, a
56
Humanidade já não ficaria sem abrigo.
Ele era, de fato, o Abr igo da paz e da
esperança! Nunca mais andaremos ao léu das tempestades nem na esteira
dos raciocínios quiméricos de quantos vivem pelo cálculo, sem a claridade do
sentimento.
”
A resposta concisa, desassombrada, desconcertou o futuro rabino,
habituado a triunfar nas esferas mais cultas, em todas as justas da palavra.
Enérgico, ruborizado, evidenciando cólera profunda, mordeu os lábios num
gesto que lhe era peculiar e acrescentou com voz dominadora:
— Aonde iremos com semelhantes excessos de interpretação, em torno
de um mistificador vulgar, que o Sinédrio puniu com a flagelação e a morte?
Que dizer de um Salvador que não conseguiu salvar -se a si mesmo? Emissário
revestido de celestes poderes, como não evitou a humilhação da sentença
infamante? O Deus dos exércitos, que seqüestrou a nação privilegiada ao
cativeiro, que a guiou através do deserto abrindo -lhe a passagem do mar; que
lhe saciou a fome com o maná divino e, por amor, transformou a rocha
impassível em fonte de água viva, não teria meios, outros, de assinalar o seu
enviado senão com uma cruz de martírio, entre malfeitores co muns? Tendes,
nesta casa, a glória do Senhor Supremo, assim barateada? Todos os doutores
do Templo conhecem a história do impostor que celebrizais com a simplicidade
da vossa ignorância! Não vacilais em rebaixar nossos próprios valores,
apresentando um Messias dilacerado e sangrento, sob os apupos do povo .
.
.
.
.
Lançais vergonha sobre Israel e desejais fundar um novo reino? Seria justo
dardes a conhecer, inteiramente, a nós outros, o móvel das vossas fábulas
piedosas.
”
Estabelecida uma pausa na sua objurgatória, o ora dor voltou a falar com
dignidade:
— Amigo, bem se dizia que o Mestre chegaria ao mundo para confusão de
muitos em Israel.
Toda a história edificante do nosso povo é um documento da
revelação de Deus.
No entanto, não vedes nos efeitos maravilhosos com que a
Providência guiou as tribos hebréias, no passado, a manifestação do carinho
extremo de um Pai desejoso de construir o futuro espiritual de crianças
queridas do seu coração? Com o correr do tempo, observamos que a
mentalidade infantil enseja mais vastos princípios educativos, O que ontem era
carinho, é hoje energia oriunda das grandes expressões amorosas da alma.
O
que ontem era bonança e verdor, para nutrição da sublim e esperança, hoje
pode ser tempestade, para dar segurança e resistência.
Antigamente, éramos
meninos até no trato com a revelação; agora, porém, os varões e as mulheres
de Israel atingiram a condição de adultos no conhecimento, O Filho de Deus
trouxe a luz da verdade aos homens, ensinando-lhes a misteriosa beleza da
vida, com o seu engrandecimento pela renúncia.
Sua glória resumiu -se em
amar-nos, como Deus nos ama.
Por essa mesma razão, Ele ainda não foi compreendido.
Acaso
poderíamos aguardar um salvador de acordo com os nossos propósitos
inferiores? Os profetas afirmam que as estradas de Deus podem não ser os
caminhos que desejamos, e que os seus pensamentos nem sempre se
poderão harmonizar com os nossos.
Que dizermos de um Messias que
empunhasse o cetro no mundo, disputando com os príncipes da iniqüidade um
galardão de triunfos sangrentos?
Porventura a Terra já não estará farta de batalhas e cadáveres?
Perguntemos a um general romano quanto lhe custou o domínio da aldeia mais
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obscura; consultemos a lista negra dos triunfadores, segundo as nossas idéias
errôneas da vida.
Israel jamais poderia esperar um Messias a exibir -se num
carro de glórias magnificentes do plano material, suscetível de tombar no
primeiro resvaladouro do caminho.
Essas ex pressões transitórias pertencem ao
cenário efêmero, no qual a púrpura mais fulgurante volta ao pó.
Ao contrário de
todos os que pretenderam ensinar a virtude, repou sando na satisfação dos
próprios sentidos, Jesus executou sua tarefa entre os mais simples ou mais
desventuradoS, onde, muitas vezes, se encontram as manifestações do Pai,
que educa, através da esperança insatisfeita e das dores que trabalham, do
berço ao túmulo, a existência humana.
O Cristo edificou, entre nós, seu reino
de amor e paz, sobre alicerces divin os.
Sua exemplificação está projetada na
alma humana, com luz eterna! Quem dê nós, então, compreendendo tudo isso,
poderá identificar no Emissário de Deus um príncipe belicoso? Não! O
Evangelho é amor em sua expressão mais sublime.
O Mes tre deixou-se imolar
transmitindo-nos o exemplo da redenção pelo amor mais puro.
Pastor do
imenso rebanho, Ele não quer se perca uma só de suas ovelhas bem -amadas,
nem determina a morte do pecador, O Cristo é vida, e a salvação que nos
trouxe está na sagrada opor tunidade da nossa elevação, como filhos de Deus,
exercendo os seus gloriosos ensinamentos.
”
Depois de uma pausa, o doutor da Lei já se erguia para revidar, quando
Estevão continuou:
—“E agora, irmãos, peço vênia para concluir minhas palavras.
Se não vos
falei como desejáveis, falei como o Evangelho nos aconselha, argüindo a mim
próprio na íntima condenação de meus grandes defeitos.
Que a bênção do
Cristo seja com todos vós.
Antes que pudesse abandonar a tribuna para con fundir-se com a multidão,
o futuro rabino levantou-se de chofre e observou enraivecido:
—Exijo a continuação da arenga! Que o pregador espere, pois não
terminei o que preciso dizer.
Estevão replicou serenamente:
—Não poderei discutir.
—Por quê? — perguntou Saulo irritadíssimo.
— Estais intimado a
prosseguir.
—Amigo — elucidou o interpelado calmamente —‘o Cristo aconselhou que
devemos dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
Se tendes
alguma acusação legal contra mim, exponde -a sem receio e vos obedecerei;
mas, no que pertence a Deus, só a Ele compete argüir-me.
Tão alto espírito de resolução e serenidade, quase desconcertou o doutor
do Sinédrio; compreendendo, po rém, que a impulsividade somente poderia
prejudicar-lhe a clareza do pensamento, acrescentou mais calmo, apesar do
tom imperioso que deixava transparecer toda a sua energia:
—Mas eu preciso elucidar os erros desta casa.
Necessito perguntar e
haveis de responder-me.
— No tocante ao Evangelho — replicou Estevão —.
já vos ofereci os
elementos de que podia dispor, escla recendo o que tenho ao meu alcance.
Quanto ao mais, este templo humilde é construção de fé e não de justas
casuísticas.
Jesus teve a preocupação de recomendar a seus discípulos que
fugissem do fermento das discussões e das discórdias.
Eis por que não será
lícito perdermos tempo em contendas inúteis, quando o trabalho do Cristo
reclama o nosso esforço.
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— Sempre o Cristo! sempre o impostor! — trovejou Saulo, carrancudo.
—
Minha autoridade é insultada pelo vosso fanatismo, neste recinto de miséria e
de ignorância.
Mistificadores, rejeitais as possibilidades de es clarecimento que vos
ofereço; galileus incultos, não que reis considerar o meu nobre cartel de
desafio.
Saberei vingar a Lei de Moisés, da qual se tripudia.
Recusais a
intimativa, mas não podereis fugir ao meu desforço.
Aprendereis a amar a verdade e a honrar Jerusalém, renunciando ao
nazareno insolente, que pagou na cruz os criminosos desvarios.
Recorrerei ao
Sinédrio para vos julgar e punir.
O Sinédrio tem autoridade para desfazer
vossas condenáveis alucinações.
Assim concluindo, parecia possesso de fúria.
Mas nem assim logrou
perturbar o pregador, que lhe res pondeu de ânimo sereno:
— Amigo, o Sinédrio tem mil meios de me fazer chorar, mas não lhe
reconheço poderes para obrigar -me a renunciar ao amor de Jesus-Cristo –
Dito isso, desceu da tribuna com a mesma humil dade, sem se deixar
empolgar pelo gesto de aprovação que lhe enderaçavam os filhos do infortúnio,
que ali o
ouviam como a um defensor de sagradas esperanças –
Alguns protestos isolados começaram a ser ouvidos.
Fariseus irritados
vociferavam insolências e remoques.
A massa agitava -se, prevendo atrito
iminente; mas, antes que Estevão caminhasse dez passos para o interior junto
dos companheiros, e antes que Saulo o alcançasse com outras objeções
pessoais e diretas, uma velhinha maltra pilha apresentou-lhe uma jovem
pobremente vestida e exclamou cheia de confiança:
— Senhor! sei que continuais a bondade e os feitos do profeta de Nazaré,
que um dia me salvou da morte, apesar dos meus pecados e fraquezas.
Atendei-me também, por piedade!
Minha filha emudeceu há mais de um ano.
Trouxe -a de Dalmanuta até
aqui, vencendo enormes dificuldades, confiada na vossa assistência fra ternal!
O pregador refletiu, antes de tudo, no perigo de qualquer capricho pessoal
da sua parte, e, desejoso de atender à suplicante, contemplou a doente com
sincera simpatia e murmurou:
— De nós nada temos, mas é justo esperar do Cristo as dádivas que nos
sejam necessárias.
Ele que é justo e generoso não te esquecerá na
distribuição santificada da sua misericórdia.
E, como atuado por força estranha, acrescentava:
— Hás de falar, para louvor do bom Mestre!.
.
.
Então, viu-se um fato singular, que impressionou de súbito a numerosa
assembléia.
Com um raio de infinita alegria nos olhos, a enfer ma falou:
— Louvarei ao Cristo de toda minhalma, eternamente.
Ela e a genitora, tomadas de forte comoção, caíram, ali mesmo, de joelhos
e beijaram-lhe as mãos; Estevão, entretanto, tinha agora os olhos mareados de
pranto, profundamente sensibilizado.
Era o primeiro a comover-se e admirar a
proteção recebida, e não tinha outro meio que não o das lágrimas sinceras
para traduzir a intensidade do seu reconhecimento.
Os fariseus, que se aproximavam no intuito de com prometer a paz do
recinto humilde, recuaram estupefatos.
Os pobres e os aflitos, como se
houvessem recebido um reforço do Céu para o êxito da crença pura, encheram
a sala de exclamações de sublime esperança.
59
Saulo observava a cena sem poder dissimular a própria ira.
Se possível,
desejaria esfrangalhar Estevão em suas mãos.
No entanto, apesar do
temperamento impulsivo, chegou à conclusão de que um ato agressivo levaria
os amigos presentes a um conflito de sérias proporções.
Refletiu, igualmente, que nem todos os adeptos do “Caminho” estavam,
como o pregador, em condições de circunscrever a luta ao plano das lições de
ordem espiritual, e, de certa maneira, não recusariam a luta física.
De relance,
notou que alguns estavam armados, que os anciães traziam fortes cajados de
arrimo, e os aleijados exibiam rijas muletas.
A luta corporal, naquele recinto de
construção frágil, teria conseqüências lamen táveis.
Procurou coordenar
melhores raciocínios.
Teria a Lei a seu favor.
Poderia contar com o Sinédrio.
Os sacerdotes mais eminentes eram amigos devotados .
Lutaria com Estevão
até dobrar-lhe a resistência moral.
Se não conseguisse submetê -lo, odiá-lo-ia
para sempre.
Na satisfação dos seus caprichos, saberia remover todos os
obstáculos.
Reconhecendo que Sadoc e mais dois companhei ros iam iniciar o tumulto,
gritou-lhes em voz grave e imperiosa:
— Vamo-nos! Os adeptos do “Caminho” pagarão muito caro a sua ousadia.
Nesse momento, quando todos os fariseus se dis punham a lhe atender a
voz de comando, o moço de Tarso notou que Estevão se encaminhava para o
interior da casa, passando-lhe rente aos ombros.
Saulo sentiu -se abalado em
todas as fibras do seu orgulho.
Fixou -o, quase com ódio, mas o pregador
correspondeu-lhe com um olhar sereno e amistoso.
Tão logo se retirou o jovem doutor da Lei com os companheiros n umerosos
que não conseguiam disfarçar o seu despeito, os Apóstolos galileus passaram
a considerar, com grande receio, as conseqüências que poderiam advir do
inesperado episódio.
No dia seguinte, como de costume, Saulo de Tarso, à tardinha, entrava em
casa de Zacarias, deixando transparecer na fisionomia a contrariedade que lhe
ia no íntimo.
Depois de aliviar -se um tanto dos pensamentos sombrios que o
atribulavam, graças ao carinho da noiva amada, por ela instado a dizer os
motivos de tamanha preocupação, narrou-lhe os acontecimentos da véspera,
acrescentando:
— Esse Estevão pagará caríssimo a humilhação que pretendeu infligir -se
publicamente.
Seus raciocínios sutis podem confundir os menos argutos e necessário é
fazermos preponderar nossa autoridade em fac e dos que não têm competência
para versar os princípios sagrados.
Hoje mesmo conversei com alguns amigos
relativamente às providências que nos cumpre tomar.
Os mais tole rantes
alegam o caráter inofensivo dos galileus, pacíficos e caritativos, mas sou de
opinião que uma ovelha má põe o rebanho a perder.
—Acompanho-te na defesa das nossas crenças — advertiu a moça
satisfeita —, não devemos abandonar nossa fé ao trato e ao sabor das
interpretações individuais e incompetentes.
Depois de uma pausa:
—Ah! se Jeziel estivesse conosco, seria teu braço forte na exposição dos
conhecimentos sagrados.
Cer tamente, ele teria prazer em defender o
Testamento contra qualquer expressão menos razoável e fidedigna.
—Combateremos o inimigo que ameaça a genuini dade da revelação divina
exclamou Saulo e não cederei terreno aos inovadores incultos e cavilosos.
60
—Esses homens são muitos? perguntou Abigail apreensiva.
—Sim, e o que os torna mais perigosos é o mas cararem as intenções com
atos piedosos, por exaltar a imaginação v ersátil do povo com pretensos
poderes misteriosos, naturalmente alimentados à custa de feitiça rias e
sortilégios.
Em qualquer hipótese — advertiu a jovem depois de refletir um
momento — convém proceder com serenidade e prudência, para evitar os
abusos de autoridade.
Quem sabe são criaturas mais necessitadas de
educação que de castigo?
— Sim, já pensei em tudo isso.
Aliás, não pretendo incomodar os
galileus simplórios e despretensiosos que se cercam, em Jerusalém, de
inválidos e doentes, dando-nos a impressão de loucos pacíficos.
Contudo, não
posso deixar de reprimir o orador, cujos lábios, a meu ver, destilam poderoso
veneno no espírito volúvel das massas sem consciência perfeita dos princípios
esposados.
Aos primeiros importa esclarecer, mas o segundo p recisa ser
anulado, visto não se lhe conhecerem os fins, quiçá criminosos e
revolucionários.
— Não tenho como desaprovar as tuas ilações —concluiu a jovem,
condescendente.
Em seguida, como de costume, palestraram sobre os sentimentos
sagrados do coração, notando-se que o moço de Tarso encontrava singular
encanto e caridoso bálsamo nas observações afetuosas da companheira que –
rida.
Passados alguns dias, tomavam-se em Jerusalém providências para que
Estevão fosse levado ao Sinédrio e ali interrogado sobre a finalidade colimada
com as prédicas do “Caminho”.
Dada a intercessão conciliatória de Gamaliel, o feito se resumiria a uma
discussão em que o pregador das novas interpretações definisse perante o
mais alto tribunal da raça os seus pontos de vista, a fim d e que os sacerdotes,
como juizes e defensores da lei, expusessem a verdade nos devidos termos.
O convite à requesta chegou à igreja humilde, mas Estevão se esquivou,
alegando que não seria razoável disputar, em obediência aos preceitos do
Mestre, apesar dos argumentos do filho de Alfeu, a quem intimidava a
perspectiva de uma luta com as autoridades em evidência, parecendo -lhe que
a recusa chocaria a opinião pública.
Saulo a seu turno, não poderia obrigar o
antagonista a corresponder ao desafio, mesmo porqu e, o Sinédrio só poderia
empregar meios compulsórios no caso de uma denúncia pública, depois da
instauração de um processo em que o denunciado fosse reconhecido como
blasfemo ou caluniador.
Ante a reiterada escusa de Estevão, o doutor de Tarso exasperou -se.
E
depois de irritar a maioria dos companheiros contra o adversário, arquitetou
vasto plano, de modo a forçá-lo à polêmica desejada, na qual buscaria
humilhá-lo diante de todos os maiorais do judaísmo dominador.
Depois de uma das sessões comuns do Tribun al, Saulo chamou um de
seus amigos serviçais e falou-lhe em voz baixa:
—Neemias, nossa causa precisa de um coopera dor decidido e lembrei-me
de ti para a defesa dos nossos princípios sagrados.
—De que se trata? — perguntou o outro com enigmático sorriso.
—
Mandai e estou pronto a obedecer.
—Já ouviste falar num falso taumaturgo chamado Estevão?
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—Um dos tais homens detestáveis do “Caminho”? Já lhe ouvi a própria
palavra e por sinal que reconheci nas suas idéias as de um verdadeiro
alucinado.
—Ainda bem que o conheces de perto — replicou o jovem doutor,
satisfeito.
Necessito de alguém que o denuncie como blasfemo em face da Lei e
lembrei-me da tua cooperação neste sentido.
—Só isso? — interrogou o interpelado, astutamente.
— Ë coisa fácil e
agradável.
Pois não o ouvi dizer que o carpinteiro crucificado é o fundamento
da verdade divina? Isso é mais que blasfêmia.
Trata -se de um revolucionário
perigoso, que deve ser punido como caluniador de Moisés.
—Muito bem! — exclamou Saulo num largo sor riso.
— Conto, pois,
contigo.
No dia imediato, Neemias compareceu ao Sinédrio e denunciou o generoso
pregador do Evangelho como blasfemo e caluniador, acrescentando criminosas
observações de própria conta.
Na peça acusatória, Estevão figurava como
feiticeiro vulgar, mestre de preceitos subversivos em nome de um falso
Messias que Jerusalém havia crucificado anos antes, mediante idênticas
acusações – Neemias inculcava-se como vítima da perigosa seita que lhe
atingira e disturbara a própria família, e afirmava-se testemunha de baixos
sortilégios por ele praticados, em prejuízo de outrem.
Saulo de Tarso anotou as mínimas declarações, acentuando os detalhes
comprometedores.
A notícia estourou na igreja do “Caminho”, pro duzindo efeitos singulares e
dolorosos.
Os menos resolutos, com Tiago à frente, deixaram-se empolgar por
considerações de toda ordem, receosos de se verem perseguidos; mas
Estevão, com Simão Pedro e João, mantinha -se absolutamente sereno,
recebendo com bom ânimo a ordem de responder corajosamente ao libel o.
Cheio de esperança, rogava a Jesus não o desam parasse, de maneira a
testemunhar a riqueza da sua fé evangélica.
E esperou o ensejo com fidelidade e alegria.