O navio de Adramítio da Mísia, em que viajavam o Apóstolo e os
companheiros, no dia imediato tocou em Sídon, repetindo -se as cenas
comovedoras da véspera.
Júlio permitiu que o ex-rabino fosse ter com os
amigos, na praia, verificando-se as despedidas entre exortações de
esperanças e muitas lágrimas.
Paulo de Tarso ganhou ascendência moral
sobre o comandante, marinheiros e guardas.
Sua palavra vibrante conquista ra
as atenções gerais.
Falava de Jesus, não como de uma personalidade inatingível, mas como
de um mestre amoroso e amigo das criaturas, a seguir de perto a evolução e
redenção da Humanidade terrena desde os seus primórdios.
Todos desejavam
ouvir-lhe os conceitos, relativamente ao Evangelho e quanto à sua projeção no
futuro dos povos.
A embarcação freqüentemente deixava divisar pai sagens gratíssimas ao
olhar do Apóstolo.
Depois de costear a Fenícia, surgiram os contornos da ilha
de Chipre — de cariciosas recordações.
Nas proximidades de Panfília exultou
de íntima alegria pelo dever cumprido, e assim chegou ao porto de Mira, na
Lícia.
Foi aí que Júlio resolveu tomar passagem com os companheiros numa
embarcação alexandrina, que se di rigia para a Itália.
Desse modo, a viagem
continuou, mas com perspectivas desfavoráveis.
O navio levava excesso de
carga.
Além de grande quantidade de trigo, tinha a bordo duzentas e setenta e
seis pessoas.
Aproximava-se o período difícil para os trabalhos de navegação.
Os ventos sopravam de rijo, contrariando a rota.
Depois de lon gos dias, ainda
vogavam na região do Caldo.
Vencendo dificuldades extremas, conseguiram
tocar em alguns pontos de Creta.
Observando os obstáculos da jornada e obedecendo à própria intuição, o
Apóstolo, confiado na amizade de Júlio, chamou -o em particular e sugeriu o
inverneio em Kaloi-Limenes.
O chefe da coorte tomou o alvitre em con –
sideração e apresentou-o ao comandante e ao piloto, os quais o houveram por
descabível.
— Que significa isso, centurião? — perguntou o capitão, enfático, com um
sorriso algo irônico.
— Dar crédito a esses prisioneiros? Pois estou a ver que se trata de algum
plano de fuga, maquinado com sutileza e prudência.
.
.
Mas, seja como for, o
alvitre é inaceitável, não só pela confiança que devemos ter em nossos
recursos profissionais, como porque precisamos atingir o porto de Fênix, para o
repouso necessário.
O centurião desculpou-se como pôde, retirando-se um tanto vexado.
Desejaria protestar, esclarecendo que Paulo de Tarso não era u m simples réu
comum; que não falava por si só, mas também por Lucas, que igualmente fora
marítimo dos mais competentes.
Não lhe convinha, porém, comprometer sua
brilhante situação militar e polí tica, em antagonismo com as autoridades
provincianas.
Era melhor não insistir, sob pena de ser mal compreen dido pelos
homens de sua classe.
Procurou o Apóstolo e fê -lo sabedor da resposta.
Paulo,
longe de magoar-se, murmurou calmamente:
—Não nos entristeçamos por isso! Estou certo de que os óbices hão de ser
muito maiores do que possamos suspeitar.
Haveremos, porém, de lograr algum
303
proveito, porque, nas horas angustiosas, recordaremos o poder de Jesus, que
nos avisou a tempo.
A viagem continuou entre receios e esperanças.
O próprio centurião estava
agora convencido da inoportunidade da arribada em Kaloi -Limenes, porque,
nos dois dias que se seguiram ao conselho do Apóstolo, as condições
atmosféricas melhoraram bastante.
Logo, po rém, que se fizeram ao mar alto,
rumo a Fênix, um furacão imprevisto caiu de súb ito.
De nada valeram
providências improvisadas.
A embarcação não podia en frentar a tempestade e
forçoso foi deixá-la à mercê do vento impetuoso, que a arrebatou para muito
longe, envolta em denso nevoeiro.
Começaram, então, padeci mentos
angustiosos para aquelas criaturas insuladas no abismo revolto das ondas
encapeladas.
A tormenta parecia eternizar-se.
Havia quase duas semanas que
o vento rugia incessante, destruidor.
Todo o carregamento de trigo foi alijado,
tudo que representava excesso de peso, sem u tilidade imediata, foi tragado
pelo monstro insaciável e rugidor!
A figura de Paulo foi encarada com veneração.
A tripulação do navio não
podia esquecer o seu alvitre.
O piloto e o comandante estavam confundidos e o
prisioneiro tornara-se alvo de respeito e consideração unânimes.
O centurião,
principalmente, permanecia constan temente junto dele, crente de que o ex –
rabino dispunha de poderes sobrenaturais e salvadores, O abatimento moral e
o enjôo espalharam o desânimo e o terror.
O Apóstolo generoso, no entanto,
acudia a todos, um por um, obrigando -os a se alimentarem e confortando -os
moralmente.
De quando a quando, soltava o verbo elo quente e, com a devida
permissão de Júlio, falava aos companheiros da hora amarga, procurando
identificar as questões espirituais com o espetáculo convulsivo da Natureza:
— Irmãos! — dizia em voz alta para a assembléia estranha, que o ouvia
transida de angústia — eu creio que tocaremos breve a terra firme! Entretanto,
assumamos o compromisso de jamais olvidar a lição terrí vel desta hora.
Procuraremos caminhar no mundo qual ma rinheiro vigilante, que, ignorando o
momento da tempestade, guarda a certeza da sua vinda.
A passagem da
existência humana para a vida espiritual assemelha -se ao instante amarguroso
que estamos vivendo neste barco, há muitos dias.
Não ignorais que fomos
avisados de todos os perigos, no último porto que nos convidava estagiar,
livres de acidentes destruidores.
Buscamos mar alto, de própria conta.
Também Cristo Jesus nos concede os celestes avisos no seu Evangelho de
Luz, mas, freqüentemente optamos pelo abismo das expe riências dolorosas e
trágicas.
A ilusão, como o vento sul, parece desmentir as advertências do
Salvador, e nós continuamos pelo caminho da nossa imaginação vi ciada;
entretanto, a tempestade chega de repente.
É preciso passar de uma vida para
outra, a fim de retificarmos o rumo iniludível.
Começamos por alijar o car –
regamento pesado dos nossos enganos cruéis, abando namos os caprichos
criminosos para aceitar plenamente a vontade augusta de Deus.
Reconhecemos nossa insignificância e miséria, alcança -nos um tédio imenso
dos erros que nos alimentavam o coração, tal como sen timos o nada que
representamos neste arcabouço de madeiras frágeis, flutuante no abismo,
tomados de singular enjôo, que nos provoca náuseas extremas! O fim da
existência humana é sempre uma tormenta como esta, nas regiões
desconhecidas do mundo interior, por que nunca estamos apercebidos para
ouvir as advertências divinas e procuramos a tempestade angustiosa e
destruidora, pelo roteiro de nossa própria autoria.
304
A assembléia amedrontada ouvia -lhe os conceitos, empolgada de
inominável pavor.
Observando que todos se abraçavam, confraternizando -se na angústia
comum, continuava:
— Contemplemos o quadro dos nossos sofrimentos.
Ve de como o perigo
ensina a fraternidade imediata.
Es tamos aqui, patrícios romanos, negociantes
de Alexandria, plutocratas de Fenícia, autoridades, soldados, pri sioneiros,
mulheres e crianças.
.
.
Embora diferentes uns dos outros, perante Deus a dor
nos irmana os sentimentos para o mesmo fim de salvação e restabelecimento
da paz.
Creio que a vida em terra firme seria muito diferente, se as criaturas lá
se compreendessem tal como acontece aqui, agora, nas vastidões marinhas.
Alguns sopitavam o despeito, ouvin do a palavra apostolar, mas a grande
maioria acercava-se, reconhecendo-lhe a inspiração superior e desejosa de
confugir-se à sombra da sua virtude heróica.
Decorridos catorze dias de cerração e tormenta.
o barco alexandrino atingiu
a ilha de Malta.
Enorme, geral alegria; mas, o comandante, ao ver afastado o
perigo e sentindo-se humilhado com a atitude do Apóstolo durante a viagem,
sugeriu a dois soldados o assassínio dos prisioneiros de Cesaréia, antes que
pudessem evadir-se.
Os prepostos do centurião ass umiram a paternidade
desse alvitre, mas Júlio se opôs, terminantemente, deixando perceber a
transformação espiritual que o feli citava agora, à luz do Evangelho redentor.
Os
presos que sabiam nadar atiraram-se à água corajosamente; os demais
agarravam-se aos botes improvisados, buscando a praia.
Os naturais da Ilha, bem como os poucos romanos que lá residiam a
serviço da administração, acolheram os náufragos com simpatia; mas, por
numerosos, não havia acomodação para todos.
Frio intenso enregelava os
mais resistentes.
Paulo, todavia, dando mostras do seu valor e experiência no
afrontar intempéries, tratou de dar o exemplo aos mais abatidos, para que se
fizesse fogo, sem demora.
Grandes fogueiras foram acesas rapi damente para
aquecimento dos desabrigados; mas, quando o Apóstolo atirava um feixe de
ramos secos à labareda crepitante, uma víbora cravou -lhe na mão os dentes
venenosos.
O ex-rabino susteve-a no ar com um gesto sereno, até que ela
caísse nas chamas, com estupefação geral.
Lucas e Timóteo aproximaram-se
aflitos.
O chefe da coorte e alguns amigos estavam desolados.
É que os
naturais da Ilha, observando o fato, davam alarme, asseverando que o réptil
era dos mais venenosos da região, e que as vítimas não sobreviviam mais que
horas.
Os indígenas, impressionados, afastavam-se discretamente.
Outros,
assustadiços, afirmavam:
— Este homem deve ser um grande criminoso, pois, salvando -se das
ondas bravias, veio encontrar aqui o castigo dos deuses.
Não eram poucos os que aguardavam a morte do Apóstolo, cont ando os
minutos; Paulo, no entanto, aque cendo-se como lhe era possível, observava a
expressão fisionômica de cada um e orava com fervor.
Diante do prognóstico
dos nativos da Ilha, Timóteo aproximou -se mais intimamente e buscou
cientificá-lo do que diziam a seu respeito.
O ex-rabino sorriu e murmurou:
— Não te impressiones.
As opiniões do vulgo são muito inconstantes,
tenho disso experiência própria.
Es tejamos atentos aos nossos deveres,
porque a ignorância sempre está pronta a transitar da maldição ao elo gio e
305
vice-versa.
É bem possível que daqui a algumas horas me considerem um
deus.
Com efeito, quando viram que ele não acusara nem mesmo a mais leve
impressão de dor, os indígenas pas saram a observá-lo como entidade
sobrenatural.
Já que se mantivera inden e ao veneno da víbora, não poderia ser
um homem comum, antes algum enviado do Olimpo, a que todos deveriam
obedecer.
A esse tempo, o mais alto funcionário de Malta, Públio Apiano, chegara ao
local e ordenava as primeiras providências para socorrer os náufr agos, sendo
eles conduzidos a vastos galpões desabitados, próximo de sua residência, lá
recebendo caldos quentes, remédio e roupas.
O preposto imperial reservou os
melhores cômodos da própria moradia para o comandante do navio e o cen –
turião Júlio, atento ao prestígio dos respectivos cargos, até que pudessem
obter novas acomodações na Ilha.
O chefe da coorte, no entanto, sentindo -se
agora extremamente ligado ao Apóstolo dos gentios, solicitou ao gene roso
funcionário romano acolhesse o ex -rabino com a deferência a que fazia jus, ao
mesmo tempo que elogiava as suas virtudes heróicas.
Ciente da elevada condição espiritual do convertido de Damasco e ouvindo
os fatos maravilhosos, que lhe atribuíam no capítulo das curas, lembrou
comovidamente ao centurião:
—Ainda bem! Lembrança preciosa a vossa, mesmo porque, tenho aqui
meu pai enfermo e desejaria experimentar as virtudes desse santo varão do
povo de Israel!.
.
.
Convidado por Júlio, Paulo aquiesceu desassombrado e assim
compareceu em casa de Públio.
Lev ado à presença do ancião enfermo, impôs –
lhe as mãos calosas e enrugadas, em prece comovedora e ardente.
O velhinho
que ardia e se consumia em febre letal, experimentou imediato alívio e rendeu
graças aos deuses de sua crença.
Tomado de surpresa, Públio Ap lano viu-o
levantar-se procurando a destra do benfeitor para um ósculo santo.
O ex –
rabino, no entanto, valeu-se da situação e, ali mesmo, exaltou o Divino Mestre,
pregando as verdades eternas e esclarecendo que todos os bens provinham do
seu coração misericordioso e justo e não de criaturas pobres e frágeis, quanto
ele.
O preposto do Império quis conhecer o Evangelho imediatamente.
Arrancando das dobras da túnica, em frangalhos, os pergaminhos da Boa
Nova, único patrimônio que lhe ficara nas mãos, depois da tempestade, Paulo
de Tarso passou a exibir os pensamentos e ensinos de Jesus, quase com
orgulho.
Públio ordenou que o do cumento fosse copiado, e prometeu
interessar-se pela situação do Apóstolo, utilizando suas relações em Roma, a
fim de lhe conseguir a liberdade.
A notícia do feito espalhou-se em poucas horas.
Não se falava de outra
coisa, senão do homem providencial que os deuses haviam mandado à Ilha,
para que os doentes fossem curados e o povo recebesse novas revelações.
Com a complacência de Júlio, o ex-rabino e os companheiros obtiveram
um velho salão do administrador, onde os serviços evangélicos funcionaram
regularmente, durante os meses do inverno rigoroso.
Multidões de enfermos
foram curados.
Velhos misérrimos, na clari dade dos tesouros do Cristo
alcançaram novas esperanças.
Quando voltou a época da navegação, Paulo já
havia criado em toda a Ilha uma vasta família cristã, cheia de paz e nobres
realizações para o futuro.
306
Atento aos imperativos da sua comissão, Júlio re solveu partir com os
prisioneiros no navio “Castor e Pólux”, que ali invernara e se destinava à Itália.
No dia do embarque, o Apóstolo teve a consolação de aferir o interesse
afetuoso dos novos amigos do Evan gelho, recebendo, sensibilizado,
manifestações de fraternal carinho.
A bandeira augusta do Cristo também ali
ficara desfraldada, para sempre.
O navio demandou a costa italiana debaixo de ven tos favoráveis.
Chegados a Siracusa, na Sicília, amparado pelo ge neroso centurião, agora
devotado amigo, Paulo de Tarso aproveitou os três dias de permanência na
cidade, em pregações do Reino de Deus, atraindo numerosas criatu ras ao
Evangelho.
Em seguida, a embarcação penetrou o estreito, tocou em Régio, aproando
daí a Pouzzoles (Putéoli), não longe de Vesúvio.
Antes do desembarque, o centurião aproximou-se do Apóstolo,
respeitosamente, e falou:
—Meu amigo, até agora estiveste sob o amparo da minha amizade
pessoal, direta; daqui por diante, po rém, temos de viajar sob os olhares
indagadores de quantos habitam nas proximidades da metró pole e há que
considerar vossa condição de prisioneiro.
.
.
Notando-lhe o natural constrangimento, mescla de humildade e respeito,
Paulo exclamou:
—Ora esta, Júlio, não te incomodes! Sei que tens necessidade de
algemar-me os pulsos para a exata exe cução de teus deveres.
Apressa-te a
fazê-lo, pois não me seria lícito comprometer uma afeição tão pura, qual a
nossa.
O chefe da coorte tinha os olhos molhados, mas, retirando as algemas da
pequena bolsa, acentuou:
— Disputo a alegria de ficar convosco.
Quisera se r, como vós, um
prisioneiro do Cristo!.
.
.
Paulo estendeu a mão, extremamente comovido, per manecendo ligado ao
centurião, sob o olhar carinhoso dos três companheiros.
Júlio determinou que os prisioneiros comuns fossem instalados em prisões
gradeadas e que Paulo, Timóteo, Aristarco e Lucas ficassem em sua
companhia, numa pensão modesta.
Em face da humildade do Apóstolo e de seus colaboradores, o chefe da
coorte parecia mais generoso e fraternal.
Desejoso de agradar ao velho
discípulo de Jesus, mandou sindica r, imediatamente, se em Pouzzoles havia
cristãos e, em caso afirmativo, que fossem à sua presença, para conhecerem
os trabalhadores da semeadura santa.
O soldado incumbido da missão, dai a
poucas horas, trazia consigo um generoso velhinho de nome Sexto Flá cus,
cuja fisionomia transbordava a mais viva alegria.
Logo à entrada, aproximou -se
do velho Apóstolo e osculou-lhe as mãos, regou-as de lágrimas, em transportes
de espontâneo carinho.
Estabeleceu-se, imediatamente, consoladora palestra de que Paulo de
Tarso participava comovido.
Flácus informou que a cidade tinha há muito a sua
igreja; que o Evangelho ganhava terreno nos corações; que as cartas do ex –
rabino eram tema de meditação e estudo em todos os lares cristãos, que
reconheciam em suas atividades a mis são de um mensageiro do Messias
salvador.
Tomando a velha bolsa arrancou, ali mesmo, a cópia da epístola aos
romanos, guardada pelos confrades de Pouzzoles com especial carinho.
307
Paulo tudo ouvia gratamente impressionado, pare cendo-lhe que chegava a
um mundo novo.
Júlio, por sua vez, não cabia em si de contente.
E, dando largas ao seu
entusiasmo natural, Sexto Flácus expediu recados aos companheiros.
Aos
poucos, a modesta estalagem enchia-se de caras novas.
Eram padei ros,
negociantes e artífices que vinh am, ansiosos, apertar a mão do amigo da
gentilidade.
Todos queriam beber os conceitos do Apóstolo, vê -lo de perto,
beijar-lhe as mãos.
Paulo e companheiros foram convidados a falar na igreja
àquela mesma noite e, cientes de que o centu rião pretendia partir para Roma
no dia imediato, os sinceros discípulos do Evangelho, em Pouzzoles, rogaram
a Júlio permitisse a demora de Paulo entre eles, ao menos por sete dias, ao
que o chefe da coorte atendeu de bom grado.
A comunidade viveu horas de júbilo imenso.
Sexto Flácus e os
companheiros expediram dois emissários a Roma, para que os amigos da
cidade imperial tivessem conhecimento da vinda do Apóstolo dos gentios.
E,
cantando louvores no coração, os crentes passaram dias de ilimitada ventura.
Decorrida a semana de trabalhos frutuosos, felizes, o centurião fez ver a
necessidade de partir.
A distância a vencer excedia de duzentos quilôme tros, com sete dias de
marcha consecutiva e fatigante.
O pequeno grupo partiu acompanhado de mais de cinqüenta cristãos de
Pouzzoles, que seguiram o ex-rabino até Fórum de Ápio, em cavalos
resistentes, montando carinhosa guarda aos carros dos guardas e prisioneiros.
Nessa localidade, distante de Roma quarenta e poucas milhas, aguardava o
Apóstolo dos gentios a primeira representação d os discípulos do Evangelho na
cidade imperial.
Eram anciães comovidos, cercados por alguns companheiros
generosos, que, por pouco, carregavam o ex -rabino nos braços.
Júlio não sabia
como disfarçar a surpresa que lhe ia nalma.
Jamais viajara com um pri sioneiro
de tamanho prestígio.
De Fórum de Ápio a caravana demandou o sítio
denominado “As Três Tavernas”, acrescida agora do grande veículo que levava
os anciães romanos, e sempre rodeada de cavaleiros for tes e bem dispostos.
Nessa região, singularmente nomeada, em vista do grande conforto de suas
hospedarias, outros carros e novos amigos esperavam Paulo de Tarso com
sublimes demonstrações de alegria.
O Apóstolo, agora, contemplava as
regiões do Lácio empolgado por emoções suaves e doces.
Tinha a impressão
de haver aportado a um mundo diferente da sua Ásia cheia de combates
acerbos.
Com permissão de Júlio, a figura mais representa tiva dos anciães romanos
tomara assento junto de Paulo, naquele jubiloso fim de viagem.
O velho
Apolodoro, depois de certificar-se da simpatia do chefe da coorte pela doutrina
de Jesus, tornou-se mais vivo e minucioso no seu noticiário verbal, atendendo
às perguntas afetuosas do Apóstolo dos gentios.
—Vindes a Roma em boa época — acentuava o velhinho em tom
resignado —; temos a impressão de que nossos sofrimentos por Jesus vão ser
multiplicados.
Estamos em 61, mas há três anos que os discípulos do
Evangelho começaram a morrer nas arenas do circo pelo nome augusco do
Salvador.
— Sim — disse Paulo de Tarso solicitamente.
Eu ainda não havia sido preso em Jerusalém, quando ouvi referências às
perseguições indiretas, movidas aos adeptos do Cristianismo pelas autoridades
308
romanas.
—Não são poucos — acrescentou o ancião — os que têm dado seu
sangue nos espetáculos homicidas.
Nossos c ompanheiros têm caído às
centenas, aos apupos do povo inconsciente, estraçalhados pelas feras ou nos
postes do martírio.
.
.
O centurião, muito pálido, interrogou:
—Mas como pode ser isso? Há medidas legais que justifiquem esses feitos
criminosos?
—E quem poderá falar em justiça no governo de Nero? — replicou
Apolodoro com um sorriso de santa resignação.
— Ainda agora, perdi um filho
amado nessas horrorosas carnificinas.
—Mas, como? — tornou o chefe da coorte admi rado.
– Muito simplesmente — esclareceu o velhinho —: os cristãos são
conduzidos aos circos do martírio e da morte, como escravos faltosos e
misérrimos.
Como ainda não existe um fundamento legal que justifique seme –
lhantes condenações, as vítimas são designadas como cativos que mereceram
os suplícios extremos.
—Mas não existe um político, ao menos, que possa desmascarar o torpe
sofisma?
—Quase todos os estadistas honestos e justos estão exilados, para não
falar dos muitos induzidos ao suicídio pelos prepostos diretos do Imperador.
Acreditamos que a perseguição declarada aos discípulos do Evangelho não
tardará muito.
A medida tem sido retardada somente pela intervenção de
algumas senhoras convertidas a Jesus, que tudo têm feito pela defesa de
nossos ideais.
Não fora isso, talvez a situação se revelasse mais dolorosa.
—Precisamos negar a nós mesmos e tomar a cruz —exclamou Paulo de
Tarso, compreendendo o rigor dos tempos.
—Tudo isso é muito estranho para nós outros —ponderou Júlio
acertadamente —, pois não vemos razão para tamanha tirania.
É u m contrasenso
a perseguição aos adeptos do Cristo, que trabalham pela formação de
um mundo melhor, quando por aí medram tantas comunidades de malfeitores,
a reclamarem repressão legal.
Com que pretexto se promove esse movimento
sorrateiro?
Apolodoro pareceu concentrar-se e replicou:
—Acusam-nos de inimigos do Estado, a solapar -lhe as bases políticas com
idéias subversivas e destruidoras.
A concepção de bondade, no Cristianismo,
dá azo a que muitos interpretem mal os ensinamentos de Jesus.
Os romanos
abastados, os ilustres, não toleram a idéia de fraternidade humana.
Para eles o
inimigo é inimigo, o escravo é escravo, o miserável é miserável.
Não lhes
ocorre abandonar, por um momento sequer, o festim dos prazeres fáceis e
criminosos, para cogitar da elevaç ão do nível social.
Raríssimos os que se
preocupam com os problemas da plebe.
Um patrício caridoso é apontado com
ironias.
Num tal ambiente, os desfavorecidos da sorte encontraram no Cristo
Jesus um Salvador bem-amado, e os avarentos um adversário a elimin ar, para
que o povo não alimente esperanças.
Examinada essa circunstância, podemos
imaginar o progresso da doutrina cristã, entre os aflitos e pobres, tendo -se em
vista que Roma sempre foi um enorme carro de triunfo mundano, que segue
com os verdugos autoritários e tirânicos na boléia, cercado de multidões
famintas, que vão apanhando as migalhas de sobejo.
As primeiras pregações
cristãs passaram despercebidas, mas, quando a massa popular demonstrou
309
entender o elevado alcance da nova doutrina, começaram as l utas acerbas.
De
culto livre em suas manifestações, o Cristianismo passou a ser rigorosa -mente
fiscalizado.
Dizia-se que nossas células eram ori ginárias de feitiçarias e
sortilégios.
Em seguida, como se verificaram pequenas rebeliões de escravos,
nos palácios nobres da cidade, nossas reuniões de preces e bene fícios
espirituais foram proibidas.
As agremiações foram dissolvidas à força.
Em vista,
porém, das garantias de que gozam as cooperativas funerárias, passamos a
nos reunir alta noite no âmago das cat acumbas.
Ainda assim, descobertos
pelos sequazes do Imperador, nossos núcleos de oração têm experimentado
pesadas torturas.
— É horrível tudo isso! — exclamou o centurião compungido — e o que
admira é haver funcionários dispostos a executar determinações tão injustas!.
.
.
Apolodoro sorriu e acentuou:
—A tirania contemporânea tudo justifica.
Não le vais, vós mesmo, um
apóstolo prisioneiro? Entretanto, reconheço que sois dele um grande amigo.
A comparação do velho e arguto observador fez em palidecer ligeiramente o
centurião.
—Sim, sim — murmurava ele, tentando explicar -se.
Paulo de Tarso, todavia, reconhecendo a posição e
o embaraço do amigo, acudiu esclarecendo:
—Mas a verdade é que não fui encarcerado por malvadez ou inópia dos
romanos, desconhecedores de Jesus-Cristo, mas por meus próprios irmãos de
raça.
Aliás, tanto em Jerusalém como em Cesaréia, encontrei a mais sincera
boa-vontade dos prepostos do Império.
Em tudo isso, amigos, preponderam as injunções do ser viço do Mestre.
Para o êxito indispensável dos seus esforços remissores, os discípulos não
poderão caminhar no mundo sem as marcas da cruz.
Os interlocutores entreolharam-se satisfeitos.
A explicação do Apóstolo
vinha elucidar completamente o problema.
O grupo numeroso alcançou Alba Longa, onde novo contingente de
cavaleiros esperava o valoroso missioná rio.
Daí até Roma, a caravana moveu –
se mais vagarosa, experimentando sublimadas sensações de alegria.
Paulo de
Tarso, muito sensibilizado, admirava a beleza singu lar das paisagens
desdobradas ao longo da Via Apia.
Mais alguns minutos e os viajores atingiam
a Porta Capena, onde centenas de mulheres e crianças aguar davam o
Apóstolo.
Era um quadro comovente!
O cortejo parou para que os amigos o abraçassem.
Eminentemente
emocionado, o centurião acomp anhou a cena inesquecível, contemplando
anciãs de cabelos nevados osculando as mãos de Paulo, com infinito carinho.
O Apóstolo, enlevado naquelas explosões de afeto, não sabia se havia de
contemplar os panoramas prodi giosos da cidade das sete colinas, se paralisar
o curso das emoções para prosternar -se em espírito, num preito justo de
reconhecimento a Jesus.
Obedecendo às ponderações amigas de Apolodoro, o grupo dispersou -se.
Roma inteira banhava-se suavemente no crepúsculo de opalas.
Brisas
cariciosas sopravam, de longe, balsamizando a tarde quente.
Considerando
que Paulo precisava de repouso, o centurião resolveu passar a noite numa
hospedaria e apresentar-se com os prisioneiros no dia imediato, ao Quartel dos
Pretorianos, depois de refei tos da longa e exaustiva viagem.
Somente na manhã seguinte, compareceu perante as autoridades
310
competentes, apresentando os acusados.
Feliz expediente aquele, porque o
ex-rabino sentia-se perfeitamente reconfortado.
Na véspera, Lucas, Timóteo e
Aristarco separaram-se dele, a fim de se instalarem na companhia dos irmãos
de ideal, até poderem fixar a sua posição.
O centurião de Cesaréia encontrou no Quartel da Via Nomentana altos
funcionários que podiam perfeitamente atendê-lo, com referência ao assunto
que o trazia à capital do Império; mas, fez questão de esperar o General
Búrrus, amigo pessoal do Imperador e conhecido por suas tradições de
honestidade, no intuito de escla recer o caso do Apóstolo.
O General o atendeu com presteza e solicitude e ficou suficientemente
informado da causa do ex-rabino, tanto quanto dos seus antecedentes
pessoais e das lutas e sacrifícios que vinha amargurando.
Prometeu estu dar o
caso com o maior interesse, depois de guardar, solícito, os pergaminhos
remetidos pela Justiça de Cesaréia.
Na presença do Apóstolo, afirmou ao
centurião que, caso os documentos provassem a cidadania romana do
acusado, ele poderia gozar das vantagens da “custódia libera”, passando a
viver fora do cárcere, apenas acompanhado por um guarda, até que a
magnanimidade de César decidisse o seu recurso.
Paulo foi recolhido à prisão com os demais com panheiros, como medida
preliminar ao exame da documentação trazida.
Júlio despediu -se comovido, os
guardas abraçaram o ex-rabino, contristados e respeitosos.
Os altos
funcionários do Quartel acompanharam a cena com indisfarçável surpresa.
Prisioneiro algum havia ali entrado, até então, com tamanhas manifestações de
carinho e apreço.
Depois de uma semana, em que lhe fora permitido o contacto permanente
com Lucas, Aristarco e Timóteo, o Apóstolo recebia ordem para fixar residência
nas proximidades da prisão — privilégio conferido pelos seus títulos, embora
obrigado a permanecer sob as vistas de um guarda policial, até que o seu
recurso fosse definitivamente julgado.
Auxiliado pelos confrades da cidade, Lucas alugou um aposento humilde
na Via Nomentana, para lá se transferindo o valoroso pregador do Evangelho,
cheio de coragem e confiança em Deus.
Longe de esmorecer diante dos obstáculos, conti nuou redigindo epístolas
consoladoras e sábias às comunidades distantes.
No segundo dia de sua nova
instalação, recomendou aos três companheiros procurassem trabalho, para
não serem pesados aos irmãos, explicando que ele, Paulo, viveria do pão dos
encarcerados, como era justo, até que Cés ar pudesse atender ao seu apelo.
Assim o fez, de fato, e diariamente lá se ia às grades do calabouço, onde
tomava a sua ração alimentar.
Aproveitava, então, essas horas de convivência
com os celerados ou com as vítimas da maldade humana para pregar as
verdades confortadoras do Reino, ainda que algemados.
Todos o ouviam em
deslumbramento espiritual, jubilosos com a notícia de que não se encontravam
desamparados pelo Salvador.
Eram criminosos do Esquilino, bandidos das
regiões provincianas, malfeitores da S uburra, servos ladrões entregues à
justiça pelos senhores para a necessária regeneração, e pobres perseguidos
pelo despotismo da época, que sofriam a terrível influência dos vícios da
administração.
A palavra de Paulo de Tarso atuava como bálsamo d e santas consolações.
Os prisioneiros ganhavam novas esperanças e muitos se converteram ao
Evangelho, como Onésimo, o escravo regenerado, que passou à história do
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Cristianismo na carinhosa epístola a Filêmon.
No terceiro dia da nova situação, Paulo de Tars o chamou os amigos para
resolver determinados empreen dimentos que julgava indispensáveis.
Encareceu a diligência de um entendimento com os israelitas.
Precisava
transmitir-lhes as claridades da Boa Nova.
No entanto, era impossível, no
momento, uma visita à sinagoga.
Sem paralisar, contudo, os impulsos
dinâmicos da sua mentalidade vigorosa, pediu a Lucas convocasse os maiorais
do judaísmo na capital do Império, a fim de lhes apre sentar uma exposição de
princípios, que supunha conveniente.
Na mesma tarde, grande número de anciães de Israel compareciam no seu
aposento.
Paulo de Tarso expõe as notícias generosas do Reino de Deus, esclarece
a sua posição, refere-se às preciosidades do Evangelho.
Os ouvintes mostramse
algo interessados, mas, ciosos de suas tradições, acabam tomando atitude
reservada e duvidosa.
Quando terminou a oração entusiástica, o rabi Me nandro exclamou em
nome dos demais:
– Vossa palavra merece nossa melhor considera ção; entretanto, amigo,
ainda não recebemos nenhuma notícia d a Judéia, a vosso respeito.
Temos,
todavia, algum conhecimento desse Jesus a quem vos referis com ternura e
veneração.
Fala-se dele, em Roma, como de um revolucionário criminoso, que
mereceu o suplício reservado aos ladrões e malfeitores, em Jerusalém.
Su a
doutrina é havida por contrária à essência da Lei de Moisés.
Sem embargo,
desejamos sinceramente ouvir -vos sobre o novo profeta, com a calma
necessária.
Por outro lado é justo que não sejamos nós, apenas, os ouvintes
dessas notícias singulares.
Convém qu e vossos conceitos sejam dirigidos à
maioria dos nossos irmãos, a fim de que os julgamentos isolados não
prejudiquem os interesses do conjunto.
Paulo de Tarso percebeu a sutileza da observação e pediu que
marcassem o dia da pregação a uma assembléi a maior, alvitre esse que foi
recebido pelos velhos judeus com justo interesse.
No dia aprazado, vasta aglomeração de israelitas comprimia -se e
desbordava do quarto humilde onde o ex -rabino montara a nova tenda de
trabalhos evangélicos.
Ele pregou a lição da Boa Nova e explicou, pacien –
temente, a missão gloriosa de Jesus, desde a manhã até a tarde.
Alguns raros
irmãos de raça pareciam compreender os novos ensinamentos, enquanto que
a maioria se entregava a interpelações ruidosas e a polêmi cas estéreis.
O
Apóstolo recordou o tempo de suas via gens, vendo ali a repetição exata das
cenas irritantes das sinagogas asiáticas, onde os judeus se empenhavam em
combates acérrimos.
A noite avizinhava-se e as discussões prosseguiam acaloradas.
O sol
despedia-se da paisagem, dourando o cume das colinas distantes.
Observando
que o ex-rabino fizera uma pausa para ganhar algum fôlego, Lucas apro ximouse
e confidenciou-lhe:
—Dói-me constatar quanto esforço despendes para vencer o espírito do
judaísmo!.
.
.
Paulo de Tarso meditou alguns momentos e respondeu:
— Sim, verificar a rebeldia voluntária dá enfado ao coração; contudo, a
experiência do mundo tem-me ensinado a discernir, de algum modo, a posição
dos espíritos.
Há duas classes de homens para as quais se torna mais dif ícil o
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contacto renovador de Jesus.
A primeira é a que vi em Atenas e se constitui
dos homens envenenados pela falaciosa ciência da Terra; homens que se
cristalizam numa superioridade imaginária e muito pre sumem de si mesmos.
São estes, a meu ver, os mai s infelizes.
A segunda é a que conhecemos
nos judeus recalcitrantes que, possuindo um patrimônio precioso do passado,
não compreendem a fé sem lutas religiosas, pe trificam-se no orgulho de raça e
perseveram numa falsa interpretação de Deus.
De tal arte, e ntendemos melhor
a palavra do Cristo, que classificou os simples e pacíficos da Terra como
criaturas bem-aventuradas.
Poucos gentios cultos e raros judeus crentes na Lei
Antiga estão preparados para a escola bendita da perfeição com o Divino
Mestre.
Lucas passou a considerar o justo conceito do Após tolo; mas, a esse
tempo, as palestras ruidosas e irritan tes dos israelitas pareciam o fermento
rápido de pugilatos inevitáveis, O ex-rabino, porém, desejoso de paz, subiu
novamente à tribuna e exclamou:
— Irmãos, evitemos as contendas estéreis e ouçamos a voz da própria
consciência!
Continuai examinando a Lei e os Profetas, nos quais encontrareis sempre
a promessa do Messias, que já veio.
.
.
Desde Moisés, todos os mentores de
Israel referiram-se ao Mestre, com caracteres de fogo.
.
.
Não somos culpados
da vossa surdez espiritual.
Invocando as discussões ferinas de há pouco,
recordo a lição de Isaías quando declara que muitos hão de ver sem enxergar,
e ouvir sem entender.
São os espíritos endurecidos que, agravan do as próprias
enfermidades, culminam em lutas desesperadoras para que Jesus possa, mais
tarde, convertê-los e curá-los com o bálsamo do seu infinito amor.
No entanto,
podeis estar convictos de que esta mensagem será auspiciosamente re cebida
pelos gentios simples e infelizes, que são, na ver dade, os bem-aventurados de
Deus.
A declaração franca e veemente do Apóstolo caiu na assembléia como um
raio, impondo absoluto silêncio.
Mas, destoando dos sentimentos da maioria,
um velhinho judeu aproximou-se do convertido de Damasco e disse:
—Reconheço o exato sentido da vossa palavra, mas desejaria pedir -vos
que este Evangelho continuasse a ser ministrado à nossa gente.
Há seguidores
de Moisés bem-intencionados, que podem aproveitar o ensino de Jesus,
enriquecendo-se com os seus valores eternos.
O apelo carinhoso e sincero era proferido em tom comovedor.
Paulo
abraçou o simpatizante da nova dou trina, fundamente sensibilizado, e
acrescentou:
— Este aposento humilde é também vosso.
Vinde conhecer o pensamento
do Cristo, sempre que vos aprouver.
Podereis copiar todas as anotações que
possuo.
—E não ensinais na sinagoga?
— Por enquanto, preso como estou, não poderei fazê -lo, mas hei de
escrever uma carta aos nossos irmãos de boa -vontade.
Dentro de poucos minutos, a c ompacta reunião se dissolvia com as
primeiras sombras da noite.
Daí por diante, aproveitando as últimas horas de cada dia, os
companheiros de Paulo viram que ele es crevia um documento a que dedicava
profunda atenção.
Às vezes, era visto a escrever com lág rimas, como se
desejasse fazer da mensagem um depósito de santas ins pirações.
Em dois
313
meses entregava o trabalho a Aris tarco para copiá-lo, dizendo:
— Esta é a epístola aos hebreus.
Fiz questão de grafá -la, valendo-me dos
próprios recursos, pois que a de dico aos meus irmãos de raça e procurei
escrevê-la com o coração.
O amigo compreendeu o seu intuito e, antes de começar as cópias,
destacou o estilo singular e as idéias grandiosas e incomuns.
E Paulo continuou trabalhando incessantemente a benefício de to dos.
A
situação, como prisioneiro, era a mais confortadora possível.
Fizera -se
benfeitor desvelado de todos os guardas que lhe testemunhavam o esfor ço
apostólico.
A uns aliviara o coração com as alegrias da Boa Nova; a outros
curara moléstias crônicas e dolorosas.
Freqüentemente, o benefício não se
restringia ao interessado, porque os legionários romanos lhe traziam os
parentes, os afeiçoados e os amigos, para se benefi ciarem ao contacto
daquele homem dedicado aos interes ses de Deus.
Logo ao terceiro d ia deixou
de ser algemado, porque os soldados dispensavam a formalidade, apenas
guardando-lhe a porta como simples amigos.
Não poucas vezes, esses militares benévolos o convidavam a passear pela
cidade, especialmente ao longo da Via Apia, que se havia torn ado o local da
sua predileção.
Sensibilizado, o Apóstolo agradecia essas provas de condescendência.
Os benefícios do seu convívio tornavam-se dia a dia mais evidentes.
Impressionados com a sua palestra edu cativa e com as suas maneiras
atenciosas, muitos legionários, antes relapsos e negligentes, transformavam –
Se em elementos úteis à administração e à sociedade.
Os guardas começaram
a disputar o serviço de sentinela ao seu aposento, e isso lhe valia pelo melhor
atestado de valor espiritual.
Visitado, incessantemente, por irmãos e emissários das suas igrejas
queridas, da Macedônia e da Ásia, pros seguia desdobrando energias na tarefa
de amorosa assistência aos amigos e colaboradores distantes, mediante cartas
inspiradíssimas.
Havia quase dois anos que o seu recurso a César jazia esquecido nas
mesas dos juizes displicentes, quando sobreveio um acontecimento de magna
importância.
Certo dia, um legionário amigo levou ao convertido de Damasco
um homem de feições másculas e enérgicas, aparentando quarenta anos ma is
ou menos.
Tratava-se de Acácio Domício, personalidade de grande influência
política, e que de algum tempo tinha cegado em misteriosas cir cunstâncias.
Paulo de Tarso o acolheu com bondade e, depois de impor -lhe as mãos,
esclarecendo-o sobre o que Jesus desejava de quantos lhe aproveitavam a
munificência, exclamou comovidamente:
— Irmão, agora, convido-te a ver, em nome do Senhor Jesus -Cristo!
— Vejo! Vejo! — gritou o romano tomado de júbilo infinito; e logo, num
movimento instintivo, ajoelhou-se em pranto e murmurou:
– Vosso Deus é verdadeiro!.
.
.
Profundamente reconhecido a Jesus, o Apóstolo deu -lhe o braço para que
se levantasse e, ali mesmo, Domício procurou conhecer o conteúdo espiritual
da nova doutrina, a fim de reformar-se e mudar de vida.
Solícito, anotou logo as
informações relativas ao processo do ex -rabino, acentuando ao despedir -se:
— Deus me ajudará para que possa retribuir o bem que me fizestes!
Quanto à vossa situação, não duvideis do desfecho merecido, porque, na
próxima semana, teremos resolvido o processo com a absolvição de César!
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De fato, decorridos quatro dias, o velho servidor do Evangelho foi
chamado a depor.
De conformidade com as ordens legais, compareceu
sozinho perante os juizes, respondendo com admirável presença de espír ito às
menores argUições que lhe foram desfechadas.
Os magistrados patrícios
verificaram a inconsistência do libelo, a infantilidade dos argumentos
apresentados pelo Sinédrio e, não só atendendo à situação política de Acácio,
que empenhara no feito os bons ofícios de que podia dispor, como pela
profunda simpatia que a figura do Apóstolo despertava, instruíram o processo
com os mais nobres pareceres, restituindo -o, por intermédio de Domício, para o
veredicto do Imperador.
O generoso amigo de Paulo regozijou -Se com a vitória inicial, convencido
da próxima liberdade do seu ben feitor.
Sem perda de tempo, mobilizou as
melhores amizades, entre as quais contava Popéia Sabina, conseguindo,
afinal, a absolvição imperial.
Paulo de Tarso recebeu a notícia com votos de reconhecimento a Jesus.
Mais que ele próprio, rejubilavam-se os amigos, que celebraram o
acontecimento com expansões memoráveis.
O convertido de Damasco, entretanto, não viu nisso tão -só um motivo para
regozijo pessoal, mas a obrigação de intensificar a difusão do Evangelho de
Jesus.
Durante um mês, no princípio do ano 63, visitou as comunidades cristãs de
todos os bairros da capital do Império.
Sua presença era disputada por todos
os círculos, que o recebiam entre carinhosas manifestações de respeito e de
amor pela sua autoridade moral.
Organizando planos de serviço para todas as igrejas domésticas que
funcionavam na cidade, e depois de inúmeras pré dicas gerais nas catacumbas
silenciosas, o incansável trabalhador resolveu partir para a Espanha.
Deba lde
intervieram os colaboradores, rogando -lhe que desistisse.
Nada o demoveu.
De
há muito, alimentava o desejo de visitar o Extremo do Ocidente e, se fosse
possível, desejaria morrer convicto de haver levado o Evangelho aos confins do
mundo.