A prisão que recebera as nossas personagens, em Corinto, era um velho
casarão de corredores úmidos e escuros, mas a sala destinada aos três,
conquanto desprovida de qualquer conforto, apresentava a vantagem de uma
janela gradeada, que comunicava o ambiente desolado com a natureza
exterior.
Jochedeb estava cansadíssimo e, servindo -se do manto que apanhara ao
acaso, ao retirar-Se, Jeziel improvisou-lhe um leito sobre as lajes frias.
O velho,
atormentado por uma aluvião de pensamentos, descansava o corpo dolorido,
entregue a penosas meditações sobre os problemas do destino humano.
Sem
saber externar suas dores pungentes, engolfara -se em angustioso mutismo,
evitando o olhar dos filhos.
Jeziel e Abigail aproximando -se da janela
segurando-lhe as grades inflexíveis e abafando, com dificuldade, a justa
inquietação.
Ambos olharam, instintivamente, o f irmamento, cuja imensidade
sempre resumiu a fonte das mais ternas espe ranças para os que choram e
sofrem na Terra.
O jovem abraçou a irmã, com imensa ternura, e disse comovido:
— Abigail, lembras-te da nossa leitura de ontem?
— Sim — respondeu ela com a ingênua serenidade dos seus olhos negros
e profundos -, tenho agora a impressão de que os Escritos nos davam uma
grande mensagem, pois nosso ponto de estudo foi justamente aquele em que
Moisés contemplava, de longe, a terra da Promissão sem poder alcançá -la.
O rapaz sorriu satisfeito por sentir -se identificado nos seus pensamentos e
confirmou:
— Vejo que estamos de perfeito acordo, O céu, esta noite, oferece -nos a
perspectiva de uma pátria luminosa e distante.
Lá — continuava apontando o
zimbório estrelado — organiza Deus os triunfos da verdadeira justiça: dá paz
aos tristes; conforto aos desalentados da sorte.
Certamente, nossa mãe está com Deus, espe rando por nós.
Abigail mostrou-se muito impressionada com as pa lavras do irmão- e
acentuou:
— Estás triste? Ficaste agastado com o proceder de nosso pai?
— De modo algum — atalhou o moço afagando-lhe os cabelos —, estamos
em experiências que devem ter a melhor finalidade para a nossa redenção,
porque, de outro modo, Deus não no -las mandaria.
— Não nos aborreçamos com o pai — tornou a jovem —; estive pensando
que, se a mamãe estivesse conosco, ele não chegaria a reclamações de tão
tristes conseqüências.
Nós não temos aquele poder de persuasão com que ela,
carinhosa sempre, iluminava a nossa casa.
Lembras-te? Sempre nos ensinou que os filhos de Deus devem estar
prontos para a execução das divinas -vontades.
Os profetas, por sua vez, nos
esclarecem que os homens são varas no campo da criação.
O Todo -Poderoso
é o lavrador e nós devemos ser os galhos floridos ou fr utíferos, na sua obra.
A
palavra de Deus nos ensina a ser bons e amáveis.
O bem deve ser a flor e o
fruto, que o Céu nos pede.
Nessa altura, a bela jovem fez uma pausa signi ficativa.
Seus grandes olhos
estavam velados por um tênue véu de pranto, que não c hegava a cair.
— Entretanto, continuou ela, emocionando o irmão carinhoso: sempre
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desejei fazer algum bem, sem jamais o conseguir.
Quando nossa vizinha
enviuvou, quis auxiliá-la com dinheiro, mas não o possuia; sempre que me
surge uma oportunidade de abri r as mãos, tenho-as pobres e vazias.
Então,
agora, penso que foi útil a nossa prisão.
Não será uma felicidade, neste mundo,
podermos sofrer alguma coisa por amor de Deus? Quem nada tem, inda possui
o coração para dar.
E estou convicta de que o Céu nos abe nçoará pela nossa
resolução em servi-lo com alegria.
O rapaz aconchegou-a ao peito e exclamou:
—Deus te abençoe pelo entendimento das suas leis, irmãzinha!
Longa pausa estabelecera-se entre ambos, enquanto mergulhavam no
infinito da noite clara os olhos ternos e ansiosos.
Em dado instante, voltou a jovem a considerar:
—Por que será que os filhos de nossa raça são perseguidos em toda
parte, provando injustiça e sofrimentos?
—Suponho — respondeu o moço — que Deus o permite a exemplo do pai
amoroso que, para educar os filhos mais jovens e ignorantes, toma por base os
filhos mais experientes.
Enquanto os outros povos amortecem forças na dominação pela espada,
ou nos prazeres condenáveis, nosso testemunho ao Altíssimo, pelas dores e
amarguras, multiplica em nosso espírito a capacidade de resistência, ao
mesmo tempo que os outros homens aprendem a considerar, com o nosso
esforço, as verdades religiosas.
E, fixando o olhar sereno no firmamento, acres centou:
— Mas eu creio no Messias Redentor, que virá esclarec er todas as coisas.
Os profetas nos afirmam que os homens não o compreenderão; entretanto, ele
há de vir ensinando o amor, a caridade, a justiça e o perdão.
Nascerá entre os
humildes, exemplificará entre os pobres, iluminará o povo de Israel, levantará
os tristes e oprimidos, tomará, com amor, todos os que pade cem no abandono
do coração.
Quem sabe, Abigail, estará ele no mundo, sem o sabermos? Deus
opera em silêncio e não concorre com as vaidades da criatura.
Temos fé e a
nossa confiança no Céu é uma font e de força inesgotÀvel.
Os filhos da nossa
raça muito têm padecido, mas Deus saberá por quê, e não nos enviaria
problemas de que não necessitássemos.
A jovem pareceu meditar longamente e obtemperou, depois de alguns
instantes:
— E já que falamos em sofrimentos, como deveremos esperar o dia de
amanhã? Prevejo grandes contra riedades no interrogatório e, afinal, que farão
os juizes de nosso pai e de nós próprios?
— Não deveremos aguardar senão desgostos e de cepções, mas não
esqueçamos a oportunidade de obe decer a Deus – Quando experimentou a
ironia de sua mulher.
nas desditas extremas, Job teve a boa lembrança de que,
se o Criador nos dá os bens para nossa alegria, pode enviar -nos igualmente os
dissabores para nosso proveito.
Se o papai for acusado, direi q ue fui eu o autor
do delito.
— E se te flagelarem por isso? — perguntou ela de olhos ansiosos.
— Entregar-me-ei ao flagício com a paz da cons ciência – Se estiveres junto
de mim, nesse instante, cantarás comigo a prece dos que se encontram em
aflição
— E se te matarem, Jeziel?
— Pediremos a Deus que nos proteja.
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Abigail abraçou mais ternamente o irmão, que, por sua vez, dissimulava a
custo a emoção que lhe ia nalma.
A irmã querida constituíra sempre o tesouro
afetivo de toda a sua vida.
Desde que a morte l hes arrebatara a genitora,
dedicara-se à irmã, com todas as veras do coração.
Sua vida pura dividia -se
entre o trabalho e a obediência ao pai; entre o estudo da lei e a afeição meiga
companheira da infância.
Abigail contemplava -o.
ternamente, enquanto ele a
abraçava com o enlevo da amizade pura, que reúne duas almas afins.
Depois de meditar longos minutos, Jeziel falou co movido: — Se eu morrer,
Abigail, hás de prometer-me seguir à risca aqueles conselhos da mamãe, para
que tivéssemos a vida sem mácula, ne ste mundo.
Lembrar-te-ás de Deus e da
nossa vida de trabalho santificador, e nunca ouvirás a voz das tentações que
arrastam as criaturas à queda nos abismos do caminho.
Recordas-te das últimas observações da mamãe no leito da morte?
— Se recordo — respondeu Abigail com uma lágrima.
— Tenho a
impressão de ouvir ainda as suas últimas palavras: “e vocês, meus filhos,
amarão a Deus acima de tudo, de todo o coração e de todo o entendimento”.
Jeziel sentiu os olhos úmidos, com aquelas recorda ções, e murmurou:
— Feliz de ti que não esqueceste.
E como quem desejava mudar o rumo da conversa, acrescentou
sensibilizado:
— Agora precisas descansar.
Embora ela se recusasse ao repouso, tomou -lhe o manto pobre, improvisou
um leito à luz baça do luar que penetrava pela s grades e, osculando-lhe a
fronte com indizível ternura, advertiu afetuosamente:
— Descansa, não te impressiones com a situação, nosso destino pertence
a Deus.
Abigail, para lhe ser agradável, aquietou -se como pôde, enquanto ele se
aproximava da janela para contemplar a beleza da noite polvilhada de luz.
Seu
coração moço, atufava-se de angustiosas cogitações.
Agora que o pai e a
irmãzinha repousavam na sombra, dava curso às idéias profundas que lhe
empolgavam o espírito generoso.
Buscava, ansiosamente, um a resposta às
interrogações que mandava às estrelas distantes.
Esperava, com sinceridade e
confiança, no seu Deus de sabedoria e misericórdia, que os pais lhe haviam
dado a conhecer.
A seus olhos, o Todo-Poderoso sempre fora infinitamente justo e bom.
Ele,
que esclarecera o genitor e consolara a irmãzinha, perguntava também, por
sua vez, dentro de si, o porquê das suas provas dolorosas.
Como se justificava,
por causa tão comezinha, a prisão ines perada de um ancião honesto, de um
homem trabalhador e de uma criança inocente? Que delito irreparável haviam
praticado para merecer expiação tão penosa? O pranto correu -lhe copioso ao
relembrar a humilhação da irmã, mas também não procurou enxugar as
lágrimas que lhe inundavam o rosto, de maneira a escondê -las de Abigail, que
talvez o observasse na sombra.
Rememorava, um a um, todos os
ensinamentos dos Escritos Sagrados.
As lições dos profetas consolavam -lhe a
alma ansiosa.
Entretanto, vagava-lhe no coração uma saudade infinita.
Lembrava-se do carinho materno que a morte lhe arrebatara.
Se presente
àquele transe, a mãe saberia como confortá -los.
Quando criança, nas suas
pequenas contrariedades, ela ensinava que, em tudo, Deus era bom e
misericordioso; que, nas enfermidades, corrigia o corpo, e nas angústi as da
alma esclarecia, iluminava o coração; no desfile das reminiscências,
23
considerava igualmente que ela sempre o incitara à coragem e à alegria,
fazendo-lhe sentir que a criatura convicta da paternidade divina anda, no
mundo, fortalecida e feliz.
Edificado na fé, cobrou ânimo e, depois de longas reflexões, aquietou -se na
laje fria, procurando o repouso possível no silêncio augusto da noite.
O dia amanheceu prenhe de lúgubres expectativas.
Dentro de poucas horas, Licínio Minúcio, rodeado de numerosos guard as e
satélites, recebeu os prisionei ros na sala destinada aos criminosos comuns,
onde se ostentavam alguns instrumentos de punição e suplício.
Jochedeb e os filhos traíam na palidez do semblante a emoção profunda
que os dominava.
Os costumes da época eram excessivamente desumanos para que o juiz
implacável e a maioria dos cir cunstantes se inclinassem à comiseração pelo
aspecto desditoso deles.
Alguns esbirros perfilavam-se junto dos potros de castigo, de onde pendiam
açoites e algemas impiedosos.
Não houve interrogatório, nem depoimento de tes temunhas, como seria de
esperar antes de providências tão odiosas, e, chamado rudemente pela voz
metálica do legado, o velho judeu aproximou -se vacilante e trêmulo:
— Jochedeb — exclamou o algoz impassível e sa nhudo —, os que
desacatam as leis do Império devem ser punidos de morte, mas eu procurei ser
magnânimo, em consideração à tua velhice desamparada.
Um olhar de angustiada expectação transfigurou o rosto do acusado,
enquanto o patrício esboçava um sor riso irônico.
—Alguns operários lá da herdade — continuou Licínio — viram-te as mãos
perversas na tarde de ontem, quando incendiaste as pastagens.
Esse ato
redundou em sérios prejuízos para os meus interesses, além de ocasio nar
males talvez irreparáveis à saúde d e dois servos mui prestimosos.
Como nada
tens de teu para compensar o dano causado, receberás o justo corretivo em
flagelações, para que nunca mais venhas a erguer tuas garras de abutre contra
os interesses romanos.
Sob o olhar angustiado e lacrimoso dos f ilhos, o velho israelita ajoelhou-se
e murmurou:
—Senhor, por piedade!
—Piedade? — berrou Minúcio com rispidez.
— Cometes um crime e
imploras favores? Bem se diz que tua raça se compõe de vermes asquerosos e
desprezíveis.
E, designando o tronco, disse f riamente a um dos sequazeS:
—Pescênio, avia-te! Vergasta-o vinte vezes.
Ante a muda aflição dos jovens, o respeitável ancião foi solidamente
algemado.
O castigo ia começar quando Jeziel, rompendo a expectativa geral,
aproximou-se da mesa e falou com humildade:
—Questor Ilustríssimo, perdoai minha covardia de haver calado até agora;
asseguro-vos, porém, que meu pai está sendo acusado injustamente.
Fui eu
quem incendiou os terrenos de vossa propriedade, perturbado pela sentença
de confisco exarada contra nós.
Dignai-vos, pois, libertá-lo e dar-me a mim a
merecida punição.
Aceitá-la-ei de bom grado.
O patrício teve um lampejo de surpresa nos olhos frios, que se
caracterizavam por mobilidade extrema, e acentuou:
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—Mas, não auxiliaste os meus homens a salvar um a parte das termas?
Não foste o primeiro a medicar Rufílio?
– Assim fiz levado pelo remorso, ilustríssimo -retrucou o rapaz, ansioso por
isentar o pai do suplício iminente -; quando vi a extensão do fogo comunicando –
se às árvores, temi as conseqüências do ato praticado, mas, agora, confesso
ter sido o seu autor.
Nesse ínterim, receoso pela sorte do filho, Jochedeb exclamou,
íntimamente atormentado:
– Jeziel, não te inculpes por uma falta que não cometeste!.
.
.
Mas, pontilhando as palavras com extrema ironia, o legado replicou,
dirigindo-se ao moço hebreu:
– Está bem: poupei-te até agora, baseado nas falsas informações que me
deram a teu respeito; contudo, terás também o teu quinhão de disciplina
indispensável.
Teu pai pagará pelo crime em que foi visto, de ma neira inegável;
e tu pagarás pelo que confessaste espontaneamente.
Colhido de surpresa pela decisão que não esperava, Jeziel foi conduzido ao
poste de tortura, em frente da angústia paterna.
A seu lado, postou -se o
companheiro de Pescênio, que o atou sem p iedade aos elos de bronze, e as
primeiras vergastadas começaram a lamber -lhe o dorso, impiedosas,
isócronas.
Uma.
.
.
duas.
.
.
três.
.
.
Jochedeb revelava profunda debilidade, vendo -se-lhe o peito a arfar
penosamente, ao passo que o filho demonstrava tolerar o suplício com
heroismo e nobre serenidade; ambos de olhos fixos em Abigail, que os
contemplava excessivamente pálida, entremostrando nas lágrimas ardentes
que derramava o cruciante martírio do seu espírito afetuoso.
A punição terrível ia quase a meio, quand o um mensageiro entrou no
recinto e, em voz alta, anunciou ao legado, em tom solene:
– Ilustríssimo, portadores de vossa casa participam que o servo Rufílio
acaba de falecer.
O cruel patrício franziu o sobrolho como costumava fazer nos momentos de
explosão colérica.
Sentimentos rancorosos lhe afloraram à face, que a
perversidade de egoísmo exacerbado vincara de traços indeléveis.
— Era o melhor dos meus homens — bradou.
—Estes judeus malditos
pagarão muito caro esta afronta.
—Filócrio, aplica-lhe mais vinte vergastadas e, em seguida, leva -o à prisão,
de onde deverá seguir para o cativeiro nas galeras.
Entre as pobres vítimas e a jovem aflita trocou -se um olhar de significação
intraduzível.
Aquele cativeiro era a ruína e a morte.
E ainda não se haviam recobr ado da
cruel surpresa, quando o juiz inexorável prosseguiu:
—Quanto a ti, Pescênio, renova a tarefa.
Esse velho, criminoso e sem
escrúpulos, pagará a morte do meu fiel servidor.
Golpeia -lhe as mãos e os pés
até que fique impossibilitado de caminhar e prat icar o mal.
Ante a sentença iníqua, Abigail caiu de joelhos, em preces ardentes.
Do
peito do irmão escapavam fundos suspiros, nevoando -se-lhe os olhos de
lágrimas dolorosas, ao conjeturar a inexorável desdita da irmãzinha, enquan to
o pai lhes buscava ansiosamente o olhar, receoso da hora extrema.
As vergastadas continuavam sem trégua, mas, de uma feita, Pescênio não
conseguira equilibrar-se e a aguçada ponta de bronze do açoite lanhou fundo a
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garganta do pobre israelita, jorrando o sangue em borbotões.
Os filhos
compreenderam a gravidade da situação e entreolharam -se ansiosos.
Em
preces de sublimado fervor, Abigail dirigia -se a Deus, àquele Deus terno e
amoroso que sua mãe lhe ensinara a adorar.
Filócrio concluírs a sua
empreitada.
A fronte de Jeziel erguia-se a custo, exibindo pastoso suor tisnado de
sangue.
Os olhos fixavam-se na irmã muito amada, mas, em todo o seu as –
pecto, deixava transparecer profunda fraqueza, que lhe anulava as últimas
resistências.
Incapaz de definir os próprios pensamentos, Abiga il repartia sua
atenção angustiada com o pai e o irmão; todavia, em breves instan tes, ao fluxo
incessante do sangue que corria abundante, Jochedeb deixou pender, para
sempre, a cabeça alvejada de cabelos brancos.
O sangue alagara as vestes e
empastava-se-lhe nos pés.
Sob o olhar cruel do legado, ninguém ousou articular palavra.
Apenas o
açoite, cortando o ambiente morno da sala, quebrava o silêncio num silvo
singular.
Mas, notaram que do peito da vítima ainda se escapavam palavras
confusas, das quais sobressaiam as carinhosas expressões:
—Meus filhos, meus queridos filhos!.
.
.
A jovem talvez não pudesse compreender que che gara o momento
decisivo, mas Jeziel, não obstante o terrível sofrimento daquela hora, tudo
compreendeu e, num esforço profundo, gritou para a irmã:
—Abigail, papai está expirando; tem coragem, con fia.
.
.
Não posso
acompanhar-te na oração.
.
.
mas fazes por todos nós.
.
.
a prece dos aflitos.
.
.
Dando mostras de fé invejável em tão amarguradas circunstâncias, a
jovem, de joelhos, fixou longamente o velho pai cujo peito já não arfava;
depois, erguendo os olhos ao Alto, começou a cantar com voz trêmula, porém
harmoniosa e cristalina:
“Senhor Deus, pai dos que choram,
Dos tristes, dos oprimidos,
Fortaleza dos vencidos,
Consolo de toda a dor,
Embora a miséria amarga
Dos prantos de nosso erro,
Deste mundo de desterro
Clamamos por vosso amor!
Nas aflições do caminho,
Na noite mais tormentosa,
Vossa fonte generosa
É o bem que não secará.
Sois, em tudo, a luz eterna
Da alegria e da bonança,
Nossa porta de esperança
Que nunca se fechará.
”
Suas expressões vocais enchiam o ambiente de so noridade indefinível.
O
canto semelhava-se mais a um gorjeio de dor de um rouxinol que cantasse,
ferido, numa alvorada de primavera.
Tão grande, tão sincera se lh e revelava a
fé no Todo-Poderoso, que sua atitude geral era a de uma filha carinhosa e
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obediente, comunicando-se com o pai silencioso e invisível.
O pranto
perturbava-lhe a voz trêmula, mas repetia com desassombro a prece aprendida
no lar, com a mais formosa expressão de confiança no Altíssimo.
Penosa emoção apossara-se de todos.
Que fazer com uma criança
cantando o suplício dos seus entes amados e a crueldade dos seus verdugos?
Soldados e guardas presentes mal dissimulavam a emoção.
O próprio questor
parecia imobilizado, como que submetido a enfadonho mal -estar.
Abigail,
estranha à perversidade das criatu ras, suplicando o amparo do Onipotente, não
sabia que o cântico era inútil à salvação dos seus, mas que desper taria a
comiseração pela sua inocência, ga nhando-lhe, assim, a liberdade.
Recobrando alento e percebendo que a cena ferira a sensibilidade geral,
Licínio esforçou-se por não perder a dureza de espírito e recomendou a um dos
velhos servidores, em tom imperioso:
— Justino, leva esta mulher para a r ua e solta-a, mas que não cante mais,
nem mesmo uma nota!
Diante da ordem retumbante, Abigail não terminou a oração, emudecendo
instantaneamente, como se obede cesse a estranho estacato.
Lançou ao cadáver ensangüentado do pai um olhar inesquecível e, logo
contemplando o irmão ferido e algemado, com quem trocava as mais íntimas
impressões na linguagem dos olhos doridos e ansiosos, sentiu -se tocada pela
mão calosa de um velho soldado que lhe dizia em voz quase áspera:
— Acompanha-me!
Ela estremeceu; todavia, endereçando a Jeziel o der radeiro e significativo
olhar, seguiu o preposto de Minú cio, sem resistência.
Após atravessar
inúmeros corredores úmidos e sombrios, Justino, modificando sensivelmente a
voz, deu-lhe a perceber extrema simpatia por sua figu ra quase infantil,
murmurando-lhe ao ouvido, comovidamente:
—Minha filha, também sou pai e compreendo o teu martírio.
Se queres
atender a um amigo, escuta o meu conselho.
Foge de Corinto a toda pressa.
Vale-te deste instante de sensibilidade dos teus verdugo s e não voltes aqui.
Abigail cobrou algum ânimo e, sentindo -se encorajada por aquela simpatia
imprevista, perguntou extremamente perturbada:
—E meu pai?
—Teu pai descansou para sempre — murmurou o generoso soldado.
O pranto da jovem se fez mais copios o, borbulhando-lhe dos olhos tristes.
Todavia, ansiosa por defender -se contra a perspectiva de solidão, perguntou
ainda:
—Mas.
.
.
e meu irmão?
—Ninguém volta do cativeiro das galeras — respondeu Justino com olhar
significativo.
Abigail levou as mãos pequeninas ao peito, desejando afogar a própria dor.
Os gonzos de velha porta ran geram vagarosamente e o seu inesperado
protetor exclamou, apontando a rua movimentada:
—Vai em paz e que os deuses te protejam.
A pobre criatura não tardou a sentir o insulam ento entre as fileiras de
transeuntes que cruzavam, apressa dos, a via pública.
Habituada aos carinhos
domésticos, no lar onde o idioma paterno substituía a linguagem das ruas,
sentiu-se estranha no meio de tantas criaturas inquietas, assoberbadas de
interesses e preocupações materiais.
Ninguém lhe notava as lágrimas,
nenhuma voz amiga procurava inteirar -se das suas íntimas angústias.
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Estava só! Sua mãe fora chamada por Deus, anos antes; seu pai acabava
de sucumbir covardemente assas sinado; o irmão, prisioneiro e cativo, sem
esperança de remissão.
Apesar do sol do meio -dia, tinha a sensação de
intenso frio.
Deveria regressar ao ninho doméstico?
Mas, com que fim, se haviam sido expulsos? A quem confiar sua enorme
desdita?
Lembrou-se de uma velha amiga da família.
Procurou-a.
A viúva Sostênia,
muito afeiçoada à sua mãe, recebeu -a com o sorriso generoso da sua velhice
bondosa.
Desfeita em pranto, a infortunada contou -lhe todo o sucedido.
A veneranda velhinha, acariciando -lhe a cabeleira anelada, falou comovida :
—Nas perseguições passadas, nossos sofrimentos foram os mesmos.
E dando a entender que não desejava reviver antigas e dolorosas
reminiscências, Sostênia acentuou:
— É indispensável o máximo de coragem nas situa ções penosas como
esta.
Não é fácil elevar o coração em meio de tão terríveis escombros; mas é
preciso confiar em Deus nas horas mais amargas.
Que contas fazer, agora que
todos os recursos desapareceram? Por minha vez, nada te posso oferecer,
senão o coração amigo, pois também aqui estou por esmo la da pobre família
que me agasalhou caridosamente, na última tempestade da minha vida.
— Sostênia — disse Abigail suspirando —, meus pais me prepararam para
uma existência de corajoso esforço próprio.
Estou pensando em recorrer ao
legado e suplicar-lhe um cantinho da nossa chácara para ali viver uma vida
honesta, na esperança de reaver Jeziel e sua fraterna companhia.
Que pensas
a respeito?
Notando a indecisão da veneranda amiga, continuou:
— Quem sabe o questor Licínio se condoerá da mi nha sorte? Minha
resolução talvez o enterneça; voltarei para casa e levar -te-ei comigo.
Ser-meias
uma segunda mãe para o resto da vida.
Sostênia conchegou-a de encontro ao coração e acen tuou de olhos
úmidos:
—Minha querida, tu és um anjo, mas o mundo ainda é propriedade dos
maus.
Viveria contigo eternamente, minha boa Abigail; entretanto, não
conheces o legado nem a sua camarilha.
Ouve, filha! É preciso que fujas de
Corinto, de modo a não incidires em mais duras humilhações.
A moça teve uma exclamação de abatimento e, de pois de longa pausa,
acrescentou:
—Aceitarei teus conselhos, mas, antes de qualquer providência, necessito
voltar a casa.
—Para quê? — interrogou a amiga admirada.
— É imprescindível que
partas quanto antes.
Não voltes ao lar.
A esta hora, é possível já esteja
ocupado por homens sem escrúpulos, que te não respeitariam.
Con vém-te uma
atitude de sincera fortaleza moral, pois vivemos uma época em que
necessitamos fugir da perdição, como Lot e seus familiares, correndo o risco de
sermos transformados em estátua inútil, se olharmos para trás.
A irmã de Jeziel bebia-lhe as palavras com dolorosa estranheza, em face
do imprevisto da situação.
Passado um momento, Sostênia levou a mão à fron te, como a recordar
uma providência oportuna e falou com animação:
—Lembras-te de Zacarias, filho de Hanan?
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—Aquele amigo da estrada de Cencréia?
—Ele mesmo.
Fui informada de que, em compa nhia da esposa, prepara-se
para deixar definitivamente a Acaia, por haver sido assassinado pelos romanos
irresponsáveis, nestes últimos dias, o seu único filho.
Confortada por ardente esperança, concluía com ansiedade:
—Corre à casa de Zacarias! Se ainda o encontra res, fala-lhe em meu
nome.
Pede-lhe acolhimento.
Ruth é um coração generoso e não deixará de
estender-te as mãos generosas e fraternais; sei que ela te receberá com
afagos maternos!.
.
.
Abigail tudo ouvia, parecendo indiferente à própria sorte.
Mas Sostênia fê –
la considerar a necessidade do recurso e, decorridos minutos de consolações
recíprocas, a jovem, sob o calor causticante das primeiras horas da tarde, pôs –
se a caminho para Cencréia, dando a impressão de um autômato que vagasse
na estrada, a que vários veículos e inúmeros pedestres imprimiam considerável
movimento.
O porto de Cencréia ficava a certa distância do c entro de Corinto.
Situado de maneira a servir às comunicações com o Oriente, seus bairros
populosos estavam cheios de famílias israelitas, fixadas de longa data nas
regiões da Acaia, ou em trânsito para a capital do Império e adjacências.
A
irmã de Jeziel chegou à casa de Zacarias dominada por terrível abatimento.
Aliado à vigília da última noite e às angústias do dia, penoso cansaço físico lhe
agravava os desalentos.
Pernas trôpegas, a relembrar o pai morto e o irmão
prisioneiro, não reparava em si própria , no mísero estado do seu organismo
enfermo e desnutrido.
Somente ao defrontar a modesta morada do amigo,
verificou que a febre começava a devorar-lhe as entranhas, obrigando-a a
refletir nas suas dolorosas necessidades.
Zacarias e Ruth, sua mulher, atend endo ao chamado, receberam-na
espantados e aflitos.
— Abigail!.
.
.
O grito de ambos revelava grande surpresa, com o aspecto da jovem
despenteada, face esfogueada, olhos fundos e vestes em desalinho.
A filha de Jochedeb, perturbada pela fraqueza e pela febre , rojou-se aos
pés do casal, exclamando em tom lancinante:
— Meus amigos, tende piedade do meu infortú nio!.
.
.
Nossa boa Sostênia
lembrou-me vosso afeto, no transe doloroso por que passo.
Eu, que já não
tinha mãe, tive hoje meu pai assassinado e Jeziel esc ravizado sem remissão.
Se é verdade que partireis de Corinto, levai -me, por compaixão, em vossa
companhia!
Abigail abraçava-se agora a Ruth, ansiosamente, enquanto a amiga a
acarinhava entre lágrimas.
Soluçante, a jovem relatou os fatos da véspera e os tri stes episódios
daquele dia.
Zacarias, cujo coração paterno acabava de sofrer tremendo golpe, abraçou –
a com afeto e amparou-a sensibilizado, exclamando solícito:
— Dentro de uma semana voltaremos à Palestina.
Ainda não sei bem onde
nos vamos fixar, mas nós, que perdemos o filho querido, teremos em ti uma
filha estremecida.
Acalma-te! Irás conosco, serás nossa filha para sempre.
Incapaz de traduzir seu jubiloso agradecimento, ator mentada pela
febre alta, a jovem ajoelhou-se, em pranto, procurando ex ternar sua gratidão
carinhosa e sincera.
Ruth tomou -a ternamente nos braços e, qual desvelado
anjo maternal, conduziu-a a um leito macio, onde Abigail, assistida pelos dois
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amigos generosos, delirou três dias.
entre a vida e a morte.