2 Lágrimas e sacrifícios – PAULO E ESTEVÃO – FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

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A prisão que recebera as nossas personagens, em Corinto, era um velho

casarão de corredores úmidos e escuros, mas a sala destinada aos três,

conquanto desprovida de qualquer conforto, apresentava a vantagem de uma

janela gradeada, que comunicava o ambiente desolado com a natureza

exterior.

Jochedeb estava cansadíssimo e, servindo -se do manto que apanhara ao

acaso, ao retirar-Se, Jeziel improvisou-lhe um leito sobre as lajes frias.
O velho,

atormentado por uma aluvião de pensamentos, descansava o corpo dolorido,

entregue a penosas meditações sobre os problemas do destino humano.
Sem

saber externar suas dores pungentes, engolfara -se em angustioso mutismo,

evitando o olhar dos filhos.
Jeziel e Abigail aproximando -se da janela

segurando-lhe as grades inflexíveis e abafando, com dificuldade, a justa

inquietação.
Ambos olharam, instintivamente, o f irmamento, cuja imensidade

sempre resumiu a fonte das mais ternas espe ranças para os que choram e

sofrem na Terra.

O jovem abraçou a irmã, com imensa ternura, e disse comovido:

— Abigail, lembras-te da nossa leitura de ontem?

— Sim — respondeu ela com a ingênua serenidade dos seus olhos negros

e profundos -, tenho agora a impressão de que os Escritos nos davam uma

grande mensagem, pois nosso ponto de estudo foi justamente aquele em que

Moisés contemplava, de longe, a terra da Promissão sem poder alcançá -la.

O rapaz sorriu satisfeito por sentir -se identificado nos seus pensamentos e

confirmou:

— Vejo que estamos de perfeito acordo, O céu, esta noite, oferece -nos a

perspectiva de uma pátria luminosa e distante.
Lá — continuava apontando o

zimbório estrelado — organiza Deus os triunfos da verdadeira justiça: dá paz

aos tristes; conforto aos desalentados da sorte.

Certamente, nossa mãe está com Deus, espe rando por nós.

Abigail mostrou-se muito impressionada com as pa lavras do irmão- e

acentuou:

— Estás triste? Ficaste agastado com o proceder de nosso pai?

— De modo algum — atalhou o moço afagando-lhe os cabelos —, estamos

em experiências que devem ter a melhor finalidade para a nossa redenção,

porque, de outro modo, Deus não no -las mandaria.

— Não nos aborreçamos com o pai — tornou a jovem —; estive pensando

que, se a mamãe estivesse conosco, ele não chegaria a reclamações de tão

tristes conseqüências.
Nós não temos aquele poder de persuasão com que ela,

carinhosa sempre, iluminava a nossa casa.

Lembras-te? Sempre nos ensinou que os filhos de Deus devem estar

prontos para a execução das divinas -vontades.
Os profetas, por sua vez, nos

esclarecem que os homens são varas no campo da criação.
O Todo -Poderoso

é o lavrador e nós devemos ser os galhos floridos ou fr utíferos, na sua obra.
A

palavra de Deus nos ensina a ser bons e amáveis.
O bem deve ser a flor e o

fruto, que o Céu nos pede.

Nessa altura, a bela jovem fez uma pausa signi ficativa.
Seus grandes olhos

estavam velados por um tênue véu de pranto, que não c hegava a cair.

— Entretanto, continuou ela, emocionando o irmão carinhoso: sempre

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desejei fazer algum bem, sem jamais o conseguir.
Quando nossa vizinha

enviuvou, quis auxiliá-la com dinheiro, mas não o possuia; sempre que me

surge uma oportunidade de abri r as mãos, tenho-as pobres e vazias.
Então,

agora, penso que foi útil a nossa prisão.
Não será uma felicidade, neste mundo,

podermos sofrer alguma coisa por amor de Deus? Quem nada tem, inda possui

o coração para dar.
E estou convicta de que o Céu nos abe nçoará pela nossa

resolução em servi-lo com alegria.

O rapaz aconchegou-a ao peito e exclamou:

—Deus te abençoe pelo entendimento das suas leis, irmãzinha!

Longa pausa estabelecera-se entre ambos, enquanto mergulhavam no

infinito da noite clara os olhos ternos e ansiosos.

Em dado instante, voltou a jovem a considerar:

—Por que será que os filhos de nossa raça são perseguidos em toda

parte, provando injustiça e sofrimentos?

—Suponho — respondeu o moço — que Deus o permite a exemplo do pai

amoroso que, para educar os filhos mais jovens e ignorantes, toma por base os

filhos mais experientes.

Enquanto os outros povos amortecem forças na dominação pela espada,

ou nos prazeres condenáveis, nosso testemunho ao Altíssimo, pelas dores e

amarguras, multiplica em nosso espírito a capacidade de resistência, ao

mesmo tempo que os outros homens aprendem a considerar, com o nosso

esforço, as verdades religiosas.

E, fixando o olhar sereno no firmamento, acres centou:

— Mas eu creio no Messias Redentor, que virá esclarec er todas as coisas.

Os profetas nos afirmam que os homens não o compreenderão; entretanto, ele

há de vir ensinando o amor, a caridade, a justiça e o perdão.
Nascerá entre os

humildes, exemplificará entre os pobres, iluminará o povo de Israel, levantará

os tristes e oprimidos, tomará, com amor, todos os que pade cem no abandono

do coração.
Quem sabe, Abigail, estará ele no mundo, sem o sabermos? Deus

opera em silêncio e não concorre com as vaidades da criatura.
Temos fé e a

nossa confiança no Céu é uma font e de força inesgotÀvel.
Os filhos da nossa

raça muito têm padecido, mas Deus saberá por quê, e não nos enviaria

problemas de que não necessitássemos.

A jovem pareceu meditar longamente e obtemperou, depois de alguns

instantes:

— E já que falamos em sofrimentos, como deveremos esperar o dia de

amanhã? Prevejo grandes contra riedades no interrogatório e, afinal, que farão

os juizes de nosso pai e de nós próprios?

— Não deveremos aguardar senão desgostos e de cepções, mas não

esqueçamos a oportunidade de obe decer a Deus – Quando experimentou a

ironia de sua mulher.
nas desditas extremas, Job teve a boa lembrança de que,

se o Criador nos dá os bens para nossa alegria, pode enviar -nos igualmente os

dissabores para nosso proveito.
Se o papai for acusado, direi q ue fui eu o autor

do delito.

— E se te flagelarem por isso? — perguntou ela de olhos ansiosos.

— Entregar-me-ei ao flagício com a paz da cons ciência – Se estiveres junto

de mim, nesse instante, cantarás comigo a prece dos que se encontram em

aflição

— E se te matarem, Jeziel?

— Pediremos a Deus que nos proteja.

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Abigail abraçou mais ternamente o irmão, que, por sua vez, dissimulava a

custo a emoção que lhe ia nalma.
A irmã querida constituíra sempre o tesouro

afetivo de toda a sua vida.
Desde que a morte l hes arrebatara a genitora,

dedicara-se à irmã, com todas as veras do coração.
Sua vida pura dividia -se

entre o trabalho e a obediência ao pai; entre o estudo da lei e a afeição meiga

companheira da infância.
Abigail contemplava -o.
ternamente, enquanto ele a

abraçava com o enlevo da amizade pura, que reúne duas almas afins.

Depois de meditar longos minutos, Jeziel falou co movido: — Se eu morrer,

Abigail, hás de prometer-me seguir à risca aqueles conselhos da mamãe, para

que tivéssemos a vida sem mácula, ne ste mundo.
Lembrar-te-ás de Deus e da

nossa vida de trabalho santificador, e nunca ouvirás a voz das tentações que

arrastam as criaturas à queda nos abismos do caminho.

Recordas-te das últimas observações da mamãe no leito da morte?

— Se recordo — respondeu Abigail com uma lágrima.
— Tenho a

impressão de ouvir ainda as suas últimas palavras: “e vocês, meus filhos,

amarão a Deus acima de tudo, de todo o coração e de todo o entendimento”.

Jeziel sentiu os olhos úmidos, com aquelas recorda ções, e murmurou:

— Feliz de ti que não esqueceste.

E como quem desejava mudar o rumo da conversa, acrescentou

sensibilizado:

— Agora precisas descansar.

Embora ela se recusasse ao repouso, tomou -lhe o manto pobre, improvisou

um leito à luz baça do luar que penetrava pela s grades e, osculando-lhe a

fronte com indizível ternura, advertiu afetuosamente:

— Descansa, não te impressiones com a situação, nosso destino pertence

a Deus.

Abigail, para lhe ser agradável, aquietou -se como pôde, enquanto ele se

aproximava da janela para contemplar a beleza da noite polvilhada de luz.
Seu

coração moço, atufava-se de angustiosas cogitações.
Agora que o pai e a

irmãzinha repousavam na sombra, dava curso às idéias profundas que lhe

empolgavam o espírito generoso.
Buscava, ansiosamente, um a resposta às

interrogações que mandava às estrelas distantes.
Esperava, com sinceridade e

confiança, no seu Deus de sabedoria e misericórdia, que os pais lhe haviam

dado a conhecer.

A seus olhos, o Todo-Poderoso sempre fora infinitamente justo e bom.
Ele,

que esclarecera o genitor e consolara a irmãzinha, perguntava também, por

sua vez, dentro de si, o porquê das suas provas dolorosas.
Como se justificava,

por causa tão comezinha, a prisão ines perada de um ancião honesto, de um

homem trabalhador e de uma criança inocente? Que delito irreparável haviam

praticado para merecer expiação tão penosa? O pranto correu -lhe copioso ao

relembrar a humilhação da irmã, mas também não procurou enxugar as

lágrimas que lhe inundavam o rosto, de maneira a escondê -las de Abigail, que

talvez o observasse na sombra.
Rememorava, um a um, todos os

ensinamentos dos Escritos Sagrados.
As lições dos profetas consolavam -lhe a

alma ansiosa.
Entretanto, vagava-lhe no coração uma saudade infinita.

Lembrava-se do carinho materno que a morte lhe arrebatara.
Se presente

àquele transe, a mãe saberia como confortá -los.
Quando criança, nas suas

pequenas contrariedades, ela ensinava que, em tudo, Deus era bom e

misericordioso; que, nas enfermidades, corrigia o corpo, e nas angústi as da

alma esclarecia, iluminava o coração; no desfile das reminiscências,

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considerava igualmente que ela sempre o incitara à coragem e à alegria,

fazendo-lhe sentir que a criatura convicta da paternidade divina anda, no

mundo, fortalecida e feliz.

Edificado na fé, cobrou ânimo e, depois de longas reflexões, aquietou -se na

laje fria, procurando o repouso possível no silêncio augusto da noite.

O dia amanheceu prenhe de lúgubres expectativas.

Dentro de poucas horas, Licínio Minúcio, rodeado de numerosos guard as e

satélites, recebeu os prisionei ros na sala destinada aos criminosos comuns,

onde se ostentavam alguns instrumentos de punição e suplício.

Jochedeb e os filhos traíam na palidez do semblante a emoção profunda

que os dominava.

Os costumes da época eram excessivamente desumanos para que o juiz

implacável e a maioria dos cir cunstantes se inclinassem à comiseração pelo

aspecto desditoso deles.

Alguns esbirros perfilavam-se junto dos potros de castigo, de onde pendiam

açoites e algemas impiedosos.

Não houve interrogatório, nem depoimento de tes temunhas, como seria de

esperar antes de providências tão odiosas, e, chamado rudemente pela voz

metálica do legado, o velho judeu aproximou -se vacilante e trêmulo:

— Jochedeb — exclamou o algoz impassível e sa nhudo —, os que

desacatam as leis do Império devem ser punidos de morte, mas eu procurei ser

magnânimo, em consideração à tua velhice desamparada.

Um olhar de angustiada expectação transfigurou o rosto do acusado,

enquanto o patrício esboçava um sor riso irônico.

—Alguns operários lá da herdade — continuou Licínio — viram-te as mãos

perversas na tarde de ontem, quando incendiaste as pastagens.
Esse ato

redundou em sérios prejuízos para os meus interesses, além de ocasio nar

males talvez irreparáveis à saúde d e dois servos mui prestimosos.
Como nada

tens de teu para compensar o dano causado, receberás o justo corretivo em

flagelações, para que nunca mais venhas a erguer tuas garras de abutre contra

os interesses romanos.

Sob o olhar angustiado e lacrimoso dos f ilhos, o velho israelita ajoelhou-se

e murmurou:

—Senhor, por piedade!

—Piedade? — berrou Minúcio com rispidez.
— Cometes um crime e

imploras favores? Bem se diz que tua raça se compõe de vermes asquerosos e

desprezíveis.

E, designando o tronco, disse f riamente a um dos sequazeS:

—Pescênio, avia-te! Vergasta-o vinte vezes.

Ante a muda aflição dos jovens, o respeitável ancião foi solidamente

algemado.

O castigo ia começar quando Jeziel, rompendo a expectativa geral,

aproximou-se da mesa e falou com humildade:

—Questor Ilustríssimo, perdoai minha covardia de haver calado até agora;

asseguro-vos, porém, que meu pai está sendo acusado injustamente.
Fui eu

quem incendiou os terrenos de vossa propriedade, perturbado pela sentença

de confisco exarada contra nós.
Dignai-vos, pois, libertá-lo e dar-me a mim a

merecida punição.
Aceitá-la-ei de bom grado.

O patrício teve um lampejo de surpresa nos olhos frios, que se

caracterizavam por mobilidade extrema, e acentuou:

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—Mas, não auxiliaste os meus homens a salvar um a parte das termas?

Não foste o primeiro a medicar Rufílio?

– Assim fiz levado pelo remorso, ilustríssimo -retrucou o rapaz, ansioso por

isentar o pai do suplício iminente -; quando vi a extensão do fogo comunicando –

se às árvores, temi as conseqüências do ato praticado, mas, agora, confesso

ter sido o seu autor.

Nesse ínterim, receoso pela sorte do filho, Jochedeb exclamou,

íntimamente atormentado:

– Jeziel, não te inculpes por uma falta que não cometeste!.
.
.

Mas, pontilhando as palavras com extrema ironia, o legado replicou,

dirigindo-se ao moço hebreu:

– Está bem: poupei-te até agora, baseado nas falsas informações que me

deram a teu respeito; contudo, terás também o teu quinhão de disciplina

indispensável.
Teu pai pagará pelo crime em que foi visto, de ma neira inegável;

e tu pagarás pelo que confessaste espontaneamente.

Colhido de surpresa pela decisão que não esperava, Jeziel foi conduzido ao

poste de tortura, em frente da angústia paterna.
A seu lado, postou -se o

companheiro de Pescênio, que o atou sem p iedade aos elos de bronze, e as

primeiras vergastadas começaram a lamber -lhe o dorso, impiedosas,

isócronas.

Uma.
.
.
duas.
.
.
três.
.
.

Jochedeb revelava profunda debilidade, vendo -se-lhe o peito a arfar

penosamente, ao passo que o filho demonstrava tolerar o suplício com

heroismo e nobre serenidade; ambos de olhos fixos em Abigail, que os

contemplava excessivamente pálida, entremostrando nas lágrimas ardentes

que derramava o cruciante martírio do seu espírito afetuoso.

A punição terrível ia quase a meio, quand o um mensageiro entrou no

recinto e, em voz alta, anunciou ao legado, em tom solene:

– Ilustríssimo, portadores de vossa casa participam que o servo Rufílio

acaba de falecer.

O cruel patrício franziu o sobrolho como costumava fazer nos momentos de

explosão colérica.
Sentimentos rancorosos lhe afloraram à face, que a

perversidade de egoísmo exacerbado vincara de traços indeléveis.

— Era o melhor dos meus homens — bradou.
—Estes judeus malditos

pagarão muito caro esta afronta.

—Filócrio, aplica-lhe mais vinte vergastadas e, em seguida, leva -o à prisão,

de onde deverá seguir para o cativeiro nas galeras.

Entre as pobres vítimas e a jovem aflita trocou -se um olhar de significação

intraduzível.

Aquele cativeiro era a ruína e a morte.
E ainda não se haviam recobr ado da

cruel surpresa, quando o juiz inexorável prosseguiu:

—Quanto a ti, Pescênio, renova a tarefa.
Esse velho, criminoso e sem

escrúpulos, pagará a morte do meu fiel servidor.
Golpeia -lhe as mãos e os pés

até que fique impossibilitado de caminhar e prat icar o mal.

Ante a sentença iníqua, Abigail caiu de joelhos, em preces ardentes.
Do

peito do irmão escapavam fundos suspiros, nevoando -se-lhe os olhos de

lágrimas dolorosas, ao conjeturar a inexorável desdita da irmãzinha, enquan to

o pai lhes buscava ansiosamente o olhar, receoso da hora extrema.

As vergastadas continuavam sem trégua, mas, de uma feita, Pescênio não

conseguira equilibrar-se e a aguçada ponta de bronze do açoite lanhou fundo a

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garganta do pobre israelita, jorrando o sangue em borbotões.
Os filhos

compreenderam a gravidade da situação e entreolharam -se ansiosos.
Em

preces de sublimado fervor, Abigail dirigia -se a Deus, àquele Deus terno e

amoroso que sua mãe lhe ensinara a adorar.
Filócrio concluírs a sua

empreitada.

A fronte de Jeziel erguia-se a custo, exibindo pastoso suor tisnado de

sangue.
Os olhos fixavam-se na irmã muito amada, mas, em todo o seu as –

pecto, deixava transparecer profunda fraqueza, que lhe anulava as últimas

resistências.
Incapaz de definir os próprios pensamentos, Abiga il repartia sua

atenção angustiada com o pai e o irmão; todavia, em breves instan tes, ao fluxo

incessante do sangue que corria abundante, Jochedeb deixou pender, para

sempre, a cabeça alvejada de cabelos brancos.
O sangue alagara as vestes e

empastava-se-lhe nos pés.

Sob o olhar cruel do legado, ninguém ousou articular palavra.
Apenas o

açoite, cortando o ambiente morno da sala, quebrava o silêncio num silvo

singular.
Mas, notaram que do peito da vítima ainda se escapavam palavras

confusas, das quais sobressaiam as carinhosas expressões:

—Meus filhos, meus queridos filhos!.
.
.

A jovem talvez não pudesse compreender que che gara o momento

decisivo, mas Jeziel, não obstante o terrível sofrimento daquela hora, tudo

compreendeu e, num esforço profundo, gritou para a irmã:

—Abigail, papai está expirando; tem coragem, con fia.
.
.
Não posso

acompanhar-te na oração.
.
.
mas fazes por todos nós.
.
.
a prece dos aflitos.
.
.

Dando mostras de fé invejável em tão amarguradas circunstâncias, a

jovem, de joelhos, fixou longamente o velho pai cujo peito já não arfava;

depois, erguendo os olhos ao Alto, começou a cantar com voz trêmula, porém

harmoniosa e cristalina:

“Senhor Deus, pai dos que choram,

Dos tristes, dos oprimidos,

Fortaleza dos vencidos,

Consolo de toda a dor,

Embora a miséria amarga

Dos prantos de nosso erro,

Deste mundo de desterro

Clamamos por vosso amor!

Nas aflições do caminho,

Na noite mais tormentosa,

Vossa fonte generosa

É o bem que não secará.

Sois, em tudo, a luz eterna

Da alegria e da bonança,

Nossa porta de esperança

Que nunca se fechará.


Suas expressões vocais enchiam o ambiente de so noridade indefinível.
O

canto semelhava-se mais a um gorjeio de dor de um rouxinol que cantasse,

ferido, numa alvorada de primavera.
Tão grande, tão sincera se lh e revelava a

fé no Todo-Poderoso, que sua atitude geral era a de uma filha carinhosa e

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obediente, comunicando-se com o pai silencioso e invisível.
O pranto

perturbava-lhe a voz trêmula, mas repetia com desassombro a prece aprendida

no lar, com a mais formosa expressão de confiança no Altíssimo.

Penosa emoção apossara-se de todos.
Que fazer com uma criança

cantando o suplício dos seus entes amados e a crueldade dos seus verdugos?

Soldados e guardas presentes mal dissimulavam a emoção.
O próprio questor

parecia imobilizado, como que submetido a enfadonho mal -estar.
Abigail,

estranha à perversidade das criatu ras, suplicando o amparo do Onipotente, não

sabia que o cântico era inútil à salvação dos seus, mas que desper taria a

comiseração pela sua inocência, ga nhando-lhe, assim, a liberdade.

Recobrando alento e percebendo que a cena ferira a sensibilidade geral,

Licínio esforçou-se por não perder a dureza de espírito e recomendou a um dos

velhos servidores, em tom imperioso:

— Justino, leva esta mulher para a r ua e solta-a, mas que não cante mais,

nem mesmo uma nota!

Diante da ordem retumbante, Abigail não terminou a oração, emudecendo

instantaneamente, como se obede cesse a estranho estacato.

Lançou ao cadáver ensangüentado do pai um olhar inesquecível e, logo

contemplando o irmão ferido e algemado, com quem trocava as mais íntimas

impressões na linguagem dos olhos doridos e ansiosos, sentiu -se tocada pela

mão calosa de um velho soldado que lhe dizia em voz quase áspera:

— Acompanha-me!

Ela estremeceu; todavia, endereçando a Jeziel o der radeiro e significativo

olhar, seguiu o preposto de Minú cio, sem resistência.
Após atravessar

inúmeros corredores úmidos e sombrios, Justino, modificando sensivelmente a

voz, deu-lhe a perceber extrema simpatia por sua figu ra quase infantil,

murmurando-lhe ao ouvido, comovidamente:

—Minha filha, também sou pai e compreendo o teu martírio.
Se queres

atender a um amigo, escuta o meu conselho.
Foge de Corinto a toda pressa.

Vale-te deste instante de sensibilidade dos teus verdugo s e não voltes aqui.

Abigail cobrou algum ânimo e, sentindo -se encorajada por aquela simpatia

imprevista, perguntou extremamente perturbada:

—E meu pai?

—Teu pai descansou para sempre — murmurou o generoso soldado.

O pranto da jovem se fez mais copios o, borbulhando-lhe dos olhos tristes.

Todavia, ansiosa por defender -se contra a perspectiva de solidão, perguntou

ainda:

—Mas.
.
.
e meu irmão?

—Ninguém volta do cativeiro das galeras — respondeu Justino com olhar

significativo.

Abigail levou as mãos pequeninas ao peito, desejando afogar a própria dor.

Os gonzos de velha porta ran geram vagarosamente e o seu inesperado

protetor exclamou, apontando a rua movimentada:

—Vai em paz e que os deuses te protejam.

A pobre criatura não tardou a sentir o insulam ento entre as fileiras de

transeuntes que cruzavam, apressa dos, a via pública.
Habituada aos carinhos

domésticos, no lar onde o idioma paterno substituía a linguagem das ruas,

sentiu-se estranha no meio de tantas criaturas inquietas, assoberbadas de

interesses e preocupações materiais.
Ninguém lhe notava as lágrimas,

nenhuma voz amiga procurava inteirar -se das suas íntimas angústias.

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Estava só! Sua mãe fora chamada por Deus, anos antes; seu pai acabava

de sucumbir covardemente assas sinado; o irmão, prisioneiro e cativo, sem

esperança de remissão.
Apesar do sol do meio -dia, tinha a sensação de

intenso frio.
Deveria regressar ao ninho doméstico?

Mas, com que fim, se haviam sido expulsos? A quem confiar sua enorme

desdita?

Lembrou-se de uma velha amiga da família.
Procurou-a.
A viúva Sostênia,

muito afeiçoada à sua mãe, recebeu -a com o sorriso generoso da sua velhice

bondosa.

Desfeita em pranto, a infortunada contou -lhe todo o sucedido.

A veneranda velhinha, acariciando -lhe a cabeleira anelada, falou comovida :

—Nas perseguições passadas, nossos sofrimentos foram os mesmos.

E dando a entender que não desejava reviver antigas e dolorosas

reminiscências, Sostênia acentuou:

— É indispensável o máximo de coragem nas situa ções penosas como

esta.
Não é fácil elevar o coração em meio de tão terríveis escombros; mas é

preciso confiar em Deus nas horas mais amargas.
Que contas fazer, agora que

todos os recursos desapareceram? Por minha vez, nada te posso oferecer,

senão o coração amigo, pois também aqui estou por esmo la da pobre família

que me agasalhou caridosamente, na última tempestade da minha vida.

— Sostênia — disse Abigail suspirando —, meus pais me prepararam para

uma existência de corajoso esforço próprio.
Estou pensando em recorrer ao

legado e suplicar-lhe um cantinho da nossa chácara para ali viver uma vida

honesta, na esperança de reaver Jeziel e sua fraterna companhia.
Que pensas

a respeito?

Notando a indecisão da veneranda amiga, continuou:

— Quem sabe o questor Licínio se condoerá da mi nha sorte? Minha

resolução talvez o enterneça; voltarei para casa e levar -te-ei comigo.
Ser-meias

uma segunda mãe para o resto da vida.

Sostênia conchegou-a de encontro ao coração e acen tuou de olhos

úmidos:

—Minha querida, tu és um anjo, mas o mundo ainda é propriedade dos

maus.
Viveria contigo eternamente, minha boa Abigail; entretanto, não

conheces o legado nem a sua camarilha.
Ouve, filha! É preciso que fujas de

Corinto, de modo a não incidires em mais duras humilhações.

A moça teve uma exclamação de abatimento e, de pois de longa pausa,

acrescentou:

—Aceitarei teus conselhos, mas, antes de qualquer providência, necessito

voltar a casa.

—Para quê? — interrogou a amiga admirada.
— É imprescindível que

partas quanto antes.
Não voltes ao lar.
A esta hora, é possível já esteja

ocupado por homens sem escrúpulos, que te não respeitariam.
Con vém-te uma

atitude de sincera fortaleza moral, pois vivemos uma época em que

necessitamos fugir da perdição, como Lot e seus familiares, correndo o risco de

sermos transformados em estátua inútil, se olharmos para trás.

A irmã de Jeziel bebia-lhe as palavras com dolorosa estranheza, em face

do imprevisto da situação.

Passado um momento, Sostênia levou a mão à fron te, como a recordar

uma providência oportuna e falou com animação:

—Lembras-te de Zacarias, filho de Hanan?

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—Aquele amigo da estrada de Cencréia?

—Ele mesmo.
Fui informada de que, em compa nhia da esposa, prepara-se

para deixar definitivamente a Acaia, por haver sido assassinado pelos romanos

irresponsáveis, nestes últimos dias, o seu único filho.

Confortada por ardente esperança, concluía com ansiedade:

—Corre à casa de Zacarias! Se ainda o encontra res, fala-lhe em meu

nome.
Pede-lhe acolhimento.
Ruth é um coração generoso e não deixará de

estender-te as mãos generosas e fraternais; sei que ela te receberá com

afagos maternos!.
.
.

Abigail tudo ouvia, parecendo indiferente à própria sorte.
Mas Sostênia fê –

la considerar a necessidade do recurso e, decorridos minutos de consolações

recíprocas, a jovem, sob o calor causticante das primeiras horas da tarde, pôs –

se a caminho para Cencréia, dando a impressão de um autômato que vagasse

na estrada, a que vários veículos e inúmeros pedestres imprimiam considerável

movimento.
O porto de Cencréia ficava a certa distância do c entro de Corinto.

Situado de maneira a servir às comunicações com o Oriente, seus bairros

populosos estavam cheios de famílias israelitas, fixadas de longa data nas

regiões da Acaia, ou em trânsito para a capital do Império e adjacências.
A

irmã de Jeziel chegou à casa de Zacarias dominada por terrível abatimento.

Aliado à vigília da última noite e às angústias do dia, penoso cansaço físico lhe

agravava os desalentos.
Pernas trôpegas, a relembrar o pai morto e o irmão

prisioneiro, não reparava em si própria , no mísero estado do seu organismo

enfermo e desnutrido.
Somente ao defrontar a modesta morada do amigo,

verificou que a febre começava a devorar-lhe as entranhas, obrigando-a a

refletir nas suas dolorosas necessidades.

Zacarias e Ruth, sua mulher, atend endo ao chamado, receberam-na

espantados e aflitos.

— Abigail!.
.
.

O grito de ambos revelava grande surpresa, com o aspecto da jovem

despenteada, face esfogueada, olhos fundos e vestes em desalinho.

A filha de Jochedeb, perturbada pela fraqueza e pela febre , rojou-se aos

pés do casal, exclamando em tom lancinante:

— Meus amigos, tende piedade do meu infortú nio!.
.
.
Nossa boa Sostênia

lembrou-me vosso afeto, no transe doloroso por que passo.
Eu, que já não

tinha mãe, tive hoje meu pai assassinado e Jeziel esc ravizado sem remissão.

Se é verdade que partireis de Corinto, levai -me, por compaixão, em vossa

companhia!

Abigail abraçava-se agora a Ruth, ansiosamente, enquanto a amiga a

acarinhava entre lágrimas.

Soluçante, a jovem relatou os fatos da véspera e os tri stes episódios

daquele dia.

Zacarias, cujo coração paterno acabava de sofrer tremendo golpe, abraçou –

a com afeto e amparou-a sensibilizado, exclamando solícito:

— Dentro de uma semana voltaremos à Palestina.
Ainda não sei bem onde

nos vamos fixar, mas nós, que perdemos o filho querido, teremos em ti uma

filha estremecida.
Acalma-te! Irás conosco, serás nossa filha para sempre.

Incapaz de traduzir seu jubiloso agradecimento, ator mentada pela

febre alta, a jovem ajoelhou-se, em pranto, procurando ex ternar sua gratidão

carinhosa e sincera.
Ruth tomou -a ternamente nos braços e, qual desvelado

anjo maternal, conduziu-a a um leito macio, onde Abigail, assistida pelos dois

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amigos generosos, delirou três dias.
entre a vida e a morte.

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