Depois de contemplar angustiadamente o cadáver paterno, o jovem hebreu
acompanhou a irmã, de olhar ansioso, até à porta de acesso a um dos vastos
corredores da prisão.
Jamais experimentara tão profunda emo ção.
Ao cérebro
atormentado acudiam-lhe os conselhos maternos, quando asseverava que a
criatura, acima de tudo, devia amar a Deus.
Jamais conhecera lágrimas tão
amargas como aquelas que lhe fluiam em torrente, do coração dilacerado.
Como reaver a coragem e reorga nizar o caminho? Desejou, num relance,
romper as algemas, aproximar-se do pai inanimado, afagar -lhe os cabelos
brancos e, simultaneamente, abrir todas as portas, correr no encalço de
Abigail, tomá-la nos braços para nunca mais se apartarem nas estradas da
vida.
Debalde se estorceu no tronco d o martírio, porque, em retribuição aos
esforços, somente o sangue manava mais copioso das feridas abertas.
Singultos dolorosos abalavam-lhe o peito, a cuja altura a túnica se fizera em
rubros frangalhos.
Abismado em si mesmo, finalmente foi recolhido a um a cela
úmida, onde, por trinta dias, mergulhou o pensamento em profundas
cogitações.
Ao fim de um mês, as feridas estavam cicatrizadas e um dos prepostos de
Licínio julgou chegado o momento de o encaminhar a uma das galeras do
tráfego comercial, onde se encontrava o questor, interessado em assuntos
lucrativos.
O moço hebreu perdera o viço róseo das faces e o tom ingênuo da
fisionomia carinhosa e alegre.
A rude experiência dera -lhe uma expressão
dolorosa e sombria.
Vagava-lhe no semblante indefinível tristeza e na fronte
apontavam rugas precoces, nunciativas de velhice pre matura; nos olhos,
porém, a mesma serenidade doce, oriunda da íntima confiança em Deus.
Como outros descendentes da sua raça, sofrera o sacrifício pungente; todavia,
guardara a fé, como a auréola divina dos que sabem verdadeiramente agir e
esperar.
O autor dos Provérbios recomendara, como imprescindível, a sereni –
dade da alma em todas as flutuações da vida humana, porque dela procedem
as fontes mais puras da existên cia e Jeziel guardara o coração.
Órfão de pai e
mãe, cativo de verdugos cruéis, saberia conservar o tesouro da esperança e
procuraria a irmã, até aos confins do mundo, se um dia conseguisse, de novo,
o beijo da liberdade na fronte escravizada.
Seguido de perto por sentinelas impiedosas, qual se fora um vagabundo
vulgar, cruzou as ruas de Corinto até o porto, onde o internaram no porão
infecto de uma galera adornada com o símbolo das águias dominadoras.
Reduzido à mísera condição de condenado a traba lhos perpétuos,
enfrentou a nova situação cheio de con fiança e humildade.
Foi com admiração
que o feitor Lisipo anotou-lhe a boa conduta e o esforço nobre e generoso.
Habituado a lidar com malfeitores e criaturas sem escrúpulos, que, não raro,
requeriam a disciplina do chicote, surpreendeu-se ao reconhecer no moço
hebreu a disposição sincera de quem se entregava ao sacrifício, sem rebeldias
e sem baixeza.
Manejando os remos pesados com absoluta sereni dade, como quem se
dava a uma tarefa habitual, sentia o suor abundante inundar -lhe a face juvenil,
relembrando, comovido, os dias laboriosos da sua charrua amiga.
Em breve, o
feitor reconhecia nele um servo digno de estima e consideração, que soubera
31
impor-se aos próprios companheiros com o prestígio da natural bondade que
lhe transbordava dalma.
— Ai de nós! — exclamou um colega desalentado.
— São raros os que resistem a estes remos malditos, por mais de quatro
meses!.
.
.
— Mas todo o serviço é de Deus, amigo — respondeu Jeziel altamente
inspirado —, e desde que aqui nos encontramos em atividade honesta e de
consciência tranqüila, devemos guardar a convicção de servos do Cria dor,
trabalhando em suas obras.
Para todas as complicações da nova modalidade de sua existência, tinha
uma fórmula conciliatória, harmo nizando os ânimos mais exaltados.
O feitor
surpreendia-se com a delicadeza do seu trato e capacidade de tra balho, que se
aliavam aos mais altos valores da educação religiosa recebida no lar.
No bojo escuro da embarcação, sua firmeza de fé não se modificara.
Dividia
o tempo entre os labores rudes e as sagradas meditações.
A todos os
pensamentos, sobrelevava a saudade do ninho familiar, com a esperança de
rever a irmã algum dia, por mais que se lhe dilatasse o cativeiro.
De Corinto, a grande embarcação aproara em Cef a lônia e Nicópolis, de
onde deveria regressar aos portos da linha de Chipre, depois de ligeira
passagem pela costa da Palestina, consoante o itinerário organizado para
aproveitar o tempo seco e tendo em vista que o inverno paralisava toda a
navegação.
Afeito ao trabalho, não lhe foi difícil adaptar -se à pesada faina de carga e
descarga do material transportado, à manobra dos remos implacáveis e à
assistência aos poucos passageiros, sempre que lhe requisitavam préstimos,
sob o olhar vigilante de Lisipo.
Voltando de Cefalônia, a galera recebeu um pas sageiro ilustre.
Era o jovem
romano Sérgio Paulo, que se dirigia para a cidade de Citium, em comissão de
natureza política.
Com destino ao porto de Nea -Pafos, onde alguns amigos o
esperavam, o moço patrício se const ituiu, desde logo, entre todos, alvo de
grandes atenções.
Dada a importância do seu nome e o caráter oficial da
missão a ele cometida, o comandante Sérvio Carbo lhe reservou as melhores
acomodações.
Sérgio Paulo, entretanto, muito antes de aportarem novam ente em
Corinto, onde a embarcação deveria permanecer alguns dias, em
prosseguimento da rota prefixada, adoeceu com febre alta, abrindo -se-lhe o
corpo em chagas purulentas.
Comentava -se, à sorrelfa, que nas cercanias de
Cefalônia grassava uma peste desco nhecida.
O médico de bordo não
conseguiu explicar a enfermidade e os amigos do enfermo começaram a
retrair-se com indisfarçável escrúpulo.
Ao fim de três dias, o jovem romano
achava-se quase abandonado, O coman dante, preocupado, por sua vez, com a
própria situação e receoso por si mesmo, chamou Lisipo, pedindo -lhe que
indicasse um escravo, dos mais educados e maneirosos, capaz de incumbir -se
de toda a assistência ao passageiro ilustre, O feitor designou Jeziel,
incontinenti, e, na mesma tarde, o moço hebreu penetrou no camarote do enfermo,
com o mesmo espírito de serenidade que costumava testemunhar nas
situações mais díspares e arriscadas.
Sérgio Paulo tinha o leito em desalinho.
Não raro, levantava -se de súbito,
no auge da febre que o fazia delirar, pr onunciando palavras desconexas e
agravando, com o movimento dos braços, as chagas que sangravam em todo o
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corpo.
— Quem és tu? — perguntou o doente em delírio, logo que enxergou a
figura silenciosa e humilde do jovem de Corinto.
— Chamo-me Jeziel, o escravo que vos vem servir.
E a partir daquele
momento, consagrou-se ao enfermo com todas as reservas da sua afetividade.
Com a permissão dos amigos de Sérgio, utilizou todos os recursos de que
podia dispor a bordo, imitando a medicação aprendida no lar.
Dias s eguidos e
longas noites, velou à cabeceira do ilustre romano, com devotamento e boa –
vontade.
Banhos, essências e pomadas eram mani pulados e aplicados com
extrema dedicação, como se esti vesse a tratar um parente íntimo e muito caro.
Nas horas mais críticas da enfermidade dolorosa, falava -lhe de Deus,
recitava trechos antigos dos profetas, que trazia de cor, cumulando -o de
consolações e carinho fraternal.
Sérgio Paulo compreendeu a gravidade do mal que afastara os amigos
mais caros e, no convívio daqueles d ias, afeiçoou-se ao enfermeiro humilde e
bom.
Depois de alguns dias em que Jeziel conquistara plenamente a sua
admiração e o seu reconhecimento, pelos atos de inexcedível bondade, o
doente entrou em rápida convalescença, com manifestações de geral alegria .
E contudo, na véspera de regressar ao porão aba fado, o jovem cativo
apresentou os primeiros sintomas da moléstia desconhecida que grassava em
Cefalônia.
Após entender-se com alguns subordinados de cate goria, o comandante
chamou a atenção do patrício, j á quase restabelecido, e lhe pediu aprovação
para o projeto de lançar o jovem ao mar.
—Será preferível envenenar os peixes, antes que afrontar o perigo do
contágio e arriscar tantas vidas preciosas — esclarecia Sérvio Carbo com
malicioso sorriso.
O patrício refletiu um instante e reclamou a presença de Lisipo, entrando
os três a tratar do assunto.
—Qual a situação do rapaz? — perguntou o romano com interesse.
O feitor passou a esclarecer que o jovem hebreu lhe viera com outros
homens capturados por Licinio Minúcio, por ocasião dos últimos distúrbios da A
caia.
Lisipo, que simpatizava extremamente com o moço de Corinto, procurou
pintar com fidelidade a correção da sua conduta, suas maneiras distintas, a
benéfica influência moral que ele exercia sobre os companheiros muitas vezes
desesperados e insubmissos.
Depois de longas considerações, Sérgio ponderou com profunda nobreza:
—Não posso admitir que Jeziel seja atirado ao mar com a minha
aquiescência.
Devo a esse escravo uma dedicação que equivale à minha
própria vida.
Conheço Licínio e, se necessário, poderei esclarecê -lo mais tarde
sobre esta minha atitude.
Não duvido que a peste de Cefalônia esteja
trabalhando o seu organismo e, por isso mesmo, é que lhes peço a cooperação
necessária, a fim de que esse jovem fique liberto para sempre.
— Mas isso é impossível.
.
.
— exclamou Sérvio relicenciosamente.
— Por que não? — revidou o romano.
— Em que dia atingiremos o porto de
Jope?
— Amanhã, à noitinha.
— Pois bem; espero que vocês não se oponham aos meus planos , e tão
logo alcancemos o porto, levarei Jeziel num bote até às margens, pretextando
o ensejo de exercício muscular, que preciso recomeçar.
Aí, então, lhe daremos
33
liberdade.
É um feito que se me impõe, em obediência aos meus princípios.
— Mas, senhor.
.
.
— obtemperou o comandante indeciso.
— Não aceito quaisquer restrições, mesmo porque Licínio Minúcio é um
velho camarada de meu pai.
E continuou, depois de refletir um momento:
— Não ias atirar o rapaz ao fundo do mar?
— Sim.
— Pois fase constar nos teus apontamentos que o escravo Jeziel, atacado
de mal desconhecido, contraído em Cefalônia, foi sepultado no mar, antes que
a peste contagiasse os tripulantes e passageiros.
Para que o rapaz não se
comprometa, instruí-lo-ei a respeito, dando-lhe umas tantas ordens
terminantes.
Além disso, noto-o bastante enfraquecido para resistir com êxito
às crises culminantes da moléstia ainda em começo.
Quem poderá garantir que
ele resistirá? Quem sabe morrerá ao aban dono, no segundo minuto de
liberdade?
O comandante e o feitor trocaram um olhar inte ligente, de implícito acordo
mútuo.
Depois de longa pausa, Sérvio concordou, dando -se por vencido:
— Está bem, seja.
O moço patrício estendeu a mão aos dois e murmurou:
— Por este obséquio ao meu dever de consciência, poderão sempre dispor
em mim de um amigo.
Daí a instantes, Sérgio acercou -se do jovem, semi-adormecido junto do seu
camarote e já tomado da febre em começo de explosão, dirigindo -lhe a palavra
com delicadeza e bondade:
— Jeziel, desejarias voltar à liberdade?
— Oh! senhor, exclamou o jovem reanimando o organismo com um raio de
esperança.
— Quero compensar a dedicação que me dispensaste nos longos dias da
minha enfermidade.
— Sou vosso escravo, senhor.
Nada me deveis.
Ambos falavam o grego e, refleti ndo subitamente na situação de futuro, o
patrício interrogou:
— Sabes o idioma comum da Palestina?
— Sou filho de israelitas, que me ensinaram a lín gua materna nos mais
verdes anos.
— Então, não te será difícil recomeçar a vida nessa província.
E medindo as palavras, como se temesse alguma surpresa contrária aos
seus projetos, acentuou:
— Jeziel, não ignoras que te encontras enfermo, talvez tão gravemente
quanto eu, há alguns dias.
O comandante, atento à possibilidade de um
contágio geral, dada a presença de numerosos homens a bordo, pre tendia
lançar-te ao mar; contudo, amanhã de tarde chegaremos a Jope e hei de valer –
me dessa circunstância para devolver -te à vida livre.
Não desconheces,
todavia, que, assim procedendo, estou a infringir certas determi nações
importantes que regem os interesses de meus compatriotas, e é justo pedir -te
sigilo do meu feito.
— Sim, senhor — respondeu o rapaz extremamente abatido, tentando com
dificuldade coordenar as idéias.
— Sei que dentro em pouco a enfermidade assumirá graves proporções,
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prosseguiu o benfeitor.
Dar -te-ei a liberdade, mas só o teu Deus poderá
conceder-te a vida.
Entretanto, caso te restabeleças, deverás ser um novo
homem, com um nome diferente.
Não desejo ser incul pado de traidor dos meus
próprios amigos e devo contar com a tua cooperação.
— Obedecer-vos-ei em tudo, senhor.
Sérgio lançou-lhe um olhar generoso e terminou:
— Tomarei todas as providências.
Dar -te-ei algum dinheiro para atenderes
as primeiras necessidades e vestirás uma de minhas velhas túnicas; mas, tão
logo seja possível, vai-te de Jope para o interior da província.
O porto está
sempre cheio de marinheiros romanos, curiosos e maleficentes.
O enfermo fez um gesto de agradecimento, enquanto Sérgio se retirava
para atender ao chamado de alguns ami gos.
No dia imediato, à hora esperada, o casario palesti nense estava à vista.
E
quando luziam os primeiros astros da noite, pequeno batel aproximava -se de
local silencioso das margens, tripulado por dois homens cujos vultos se
perdiam na sombra.
Derradeiras palavras de bom conselho e despedida, e o
moço hebreu osculou, comovidamente, a destra do benfeitor, que voltou à
galera apressado, de consciência tranqüila.
Mal não dera os primeiros passos, Jeziel sentou -se premido pelas dores
gerais que lhe tomavam todo o corpo e pelo abatimento natural, conseqüente à
febre que o consumia.
Idéias confusas dançavam -lhe no cérebro.
Queria
pensar na ventura da libertação; desejava fixar a imagem da irmã, que haveria
de procurar no primeiro ensejo; mas estranho torpor i nfirmava-lhe as faculdades,
acarretando-lhe sonolência invencível.
Olhou, indi ferente, as estrelas que
povoavam a noite refrescada pelas brisas marinhas.
Reparou que havia
movimento nas casas próximas, mas deixou -se, ficar inerte no matagal a que
se recolhera, junto da praia.
Pesadelos es tranhos dominaram-lhe o repouso
físico, enquanto o vento lhe acariciava a fronte febril.
De madrugada, acordou ao contacto de mãos des conhecidas, que lhe
revistavam atrevidamente os bolsos da túnica.
Abrindo os olhos, estremunhado, notou que os primeiros clarões da
alvorada listravam os horizontes.
Um homem de fisionomia sagaz inclinava -se
para ele, procurando alguma coisa, com ansiedade que o moço hebreu
adivinhou de pronto, convencido de haver topado um desses malfe itores
comuns, ávidos da bolsa alheia.
Estremeceu e fez um movimento involuntário,
observando que o assaltante inesperado alçara a mão direita, empunhando um
instrumento, na iminência de exterminar -lhe a vida.
—Não me mates, amigo — balbuciou com voz trêmula.
A essas palavras, ditas comovedoramente, o meliante susteve o golpe
homicida.
—Dar-vos-ei todo o dinheiro que possuo — rematou o rapaz com tristeza.
E, vasculhando a algibeira em que guardara o es casso dinheiro que lhe
dera o patrício, tudo entregou ao desconhecido, cujos olhos fulguraram de
cobiça e prazer.
Num relance, aquela fisionomia contrafeita trans formava-se no
semblante risonho de quem deseja aliviar e socorrer.
—Oh! sois excessivamente generoso! — murmurara, apossando-se da
bolsa recheada.
—O dinheiro é sempre bom — disse Jeziel — quando com ele podemos
adquirir a simpatia ou a misericórdia dos homens.
O interlocutor fingiu não perceber o alcance filo sófico daquelas palavras e
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asseverou:
– Vossa bondade, entretanto, dispensa o concurso de quaisquer elementos
estranhos para a conquista de bons amigos.
Eu, por exemplo, dirigia -me agora
para o meu trabalho no porto, mas experimentei tanta sim patia pela vossa
situação que aqui estou para quanto vos preste.
—Vosso nome?
—Irineu de Crotona, para vos servir — respondeu o interpelado,
visivelmente satisfeito com o dinheiro que lhe refertava o bolso.
—Meu amigo — exclamou o rapaz extremamente enfraquecido —, estou
enfermo e não conheço esta cidade, de modo a tomar qualquer resolução.
Podeis indicar-me algum albergue ou alguém que me possa prestar a cari dade
de um asilo?
Irineu esboçou uma fácies de fingida piedade e res pondeu:
— Pesa-me nada ter para colocar à disposição de vossas necessidades; e
também não sei onde possa existir um abrigo a dequado para receber-vos,
como se faz preciso.
A verdade é que, para a prática do mal, todos estão
prontos, mas para fazer o bem.
.
.
Depois, concentrando-se por momentos, acrescentou:
— Ah! agora me lembro!.
.
.
Conheço umas pes soas que vos podem auxiliar.
São os homens do “Caminho”.
(1)
Mais algumas palavras e Irineu prontificou -se a conduzi-lo ao conhecido
mais próximo, amparando-lhe o corpo enfermo e vacilante.
O sol caricioso da manhã começava a despertar a Natureza com os seus
raios quentes e confortadores.
Feita a reduzida caminhada por um atalho
agreste, sustido pelo meliante arvorado em benfeitor, Jeziel pa rava à porta de
uma casa de aparência humilde.
Irineu entrou e de lá regressou com um
homem idoso, de semblante agradável, que estendeu a mão, cordialmente, ao
moço hebreu, dizendo:
— De onde vens, irmão?
O rapaz admirou-se de tanta afabilidade e delicadeza, num homem a quem
via pela primeira vez.
Por que lhe dava o título familiar, reservado ao círculo
mais íntimo dos que nasciam sob o mesmo te to?
— Por que me chamais irmão, se não me conheceis? — interrogou
comovido.
Mas o interpelado, renovando o sorriso generoso, acrescentava:
— Somos todos uma grande família em Cristo Jesus.
Jeziel não compreendeu.
Quem seria aquele Jesus? Um novo deus para os
que desconheciam a lei? Reco nhecendo que a enfermidade não lhe dava
ensanchas a cogitações religiosas ou filosóficas, respondeu simples mente:
Deus vos recompense pela generosidade da aco lhida.
Venho de
Cefalônia, tendo adoecido gravemente em viagem, e assim e que, neste
estado, recorro à vossa caridade.
(1) Primitiva designação do Cristianismo.
(Nota de Emmanuel.
)
— Efraim — disse Irineu dirigindo-se ao dono da casa —, nosso amigo
tem febre e o seu estado geral requer cuidados.
Você, que é um dos b ons
homens do “Caminho”, há de acolhê -lo com o coração dedicado aos que
sofrem.
Efraim aproximou-se mais do jovem enfermo e observou:
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—Não é o primeiro doente de Cefalônia que o Cristo envia à minha porta.
Ainda anteontem, outro aqui surgiu com o corpo cr ivado de feridas de mau
caráter.
Aliás, conhecendo a gravidade do caso, pretendo logo à tarde levá -lo
para Jerusalém.
—Mas, é necessário ir tão longe? — perguntou Irineu com certo espanto.
—Somente lá, temos maior número de cooperado res — esclareceu com
humildade.
Ouvindo o que diziam e considerando a necessidade de ausentar -se do
porto em obediência às recomendações do patrício que se lhe mostrara tão
amigo, restituindo-o à liberdade, Jeziel dirigiu-se a Efraim num apelo humilde e
triste:—
Por quem sois! levai-me para Jerusalém convosco, por piedade!.
.
.
O irterpelado, evidenciando natural bondade, anuiu sem maior estranheza:
—Irás comigo.
Abandonado por Irineu aos cuidados de Efraim, o doente recebeu carinhos
de um verdadeiro amigo.
Não fosse a febre e teria travado com o irmão um
conhecimento mais íntimo, procurando conhecer minuciosamente os nobres
princípios que o levaram a estender -lhe a mão protetora.
Contudo, mal
conseguiu manter-se de pensamento vigilante sobre si mesmo, a fim de
elucidar as suas interrogações carinhosas, medicando -se convenientemente.
Ao crepúsculo, aproveitando a frescura da noite, uma carroça,
cuidadosamente velada por um toldo de pano barato, saía de Jope com destino
a Jerusalém.
Caminhando cuidadoso para não esfalfar a pob re alimária, Efraím
transportava os dois enfermos à cidade próxima, buscando os recursos
indispensáveis.
Descansando aqui e ali, somente na manhã seguinte o veículo
parou à porta de um casarão de grandes proporções, aliás paupérrimo em sua
feição exterior.
Um rapaz de semblante alegre veio atender ao recém -vindo,
que o interpelou com intimidade:
– Urias, poderás dizer-me se Simão Pedro está?
– Está, Sim.
– Poderás chamá-lo em meu nome?
– Vou já.
Acompanhado de Tiago, irmão de Levi, Simão apareceu e recebeu o
visitante com efusivas demonstrações de carinho.
Efraim esclareceu o motivo
da sua presença.
Dois desamparados do mundo requeriam auxílio urgente.
– Mas é quase impossível – atalhou Tiago.
– Estamos com quarenta e nove
doentes acamados.
Pedro esboçou um sorriso generoso e obtemperou:
– Ora, Tiago, se estivéssemos pescando, seria justo nos eximíssemos
desse ou daquele dever que exorbitasse a esfera das obrigações inadiáveis de
cada dia, junto da família, cuja organização vem de Deus; mas agora o Mestre
nos legou o trabalho de assistência a todos os seus filhos, no sofrimento.
Presentemente, nosso tempo se destina a isso; vejamos, pois, o que é possível
fazer.
E o bondoso Apóstolo adiantou-se para acolher os dois infelizes.
Desde que viera do Tiberíades par a Jerusalém, Simão transformara-se em
célula central de grande movimento humanitarista.
Os filósofos do mundo
sempre pontificaram de cátedras confortáveis, mas nunca desceram ao plano
da ação pessoal, ao lado dos mais infortunados da sorte.
Jesus renovara, com
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exemplos divinos, todo o sistema de pregação da virtude.
Chamando a si os aflitos e os enfermos, inaugurara no mundo a fórmula da
verdadeira benemerência social.
As primeiras organizações de assistência ergueram -se com o esforço dos
apóstolos, ao influxo amoroso das lições do Mestre.
Era por esse motivo que a residência de Pedro, doação de vários amigos
do Caminho , regurgitava de enfermos e desvalidos sem esperança.
Eram
velhos a exibirem úlceras asquerosas, procedentes de Cesaréia; loucos que
chegavam das regiões mais longínquas, conduzidos por parentes ansiosos de
alívio; crianças paralíticas, da Iduméia, nos braços maternais, todos atraidos
pela fama do profeta nazareno, que ressuscitava os pró prios mortos e sabia
restituir tranqüilidade aos corações mais infortunados do mundo.
Natural era que nem todos se curassem, o que obri gava o velho pescador
a agasalhar consigo todos os neces sitados, com carinho de um pai.
Recolhendo-se ali, com a família, era auxiliado particularmente por Tiago, filho
de Alfeu, e por João; mas, em breve, Filipe e suas filhas instalavam -se
igualmente em Jerusalém, cooperando no grande esforço fraternal.
Tamanho o movimento de necessitados de toda sorte, que há muito Simão
não mais podia entregar-se a outro mister, no concernente à pregação da Boa
Nova do Reino.
A dilatação desses mis teres vinculara o antigo discípulo aos
maiores núcleos do judaísmo dominante.
Obrigado a valer -se do socorro dos
elementos mais notáveis da cidade, Pedro sentia -se cada vez mais escravo
dos seus amigos benfeitores e dos seus pobres beneficiados, acorridos de toda
parte, em grau de recurso supremo ao seu espírito de discípulo abnegado e
sincero.
Atendendo às solicitações confiantes de Efraim, pro videnciou para que
ambos os enfermos fossem instalados na sua casa pobre.
Jeziel ocupou leito asseado e singelo, em estado de completa
inconsciência, no delírio da febre que o pros trava.
Suas palavras desconexas,
entretanto, revelavam tão exato conhecimento dos textos sagrados, que Pedro
e João se interessaram de modo especial por aquele jovem de faces
macilentas e tristes.
Mormente Simão, passava longas horas entretido em ouvi –
lo, anotando-lhe os conceitos profundos, embora filhos da exaltação febril.
Decorridas duas semanas exaustivas, Jeziel melho rou, rearmonizando as
próprias faculdades para melhor analisar e sentir a nova situação.
Afeiçoara -se
a Pedro, como um filho afetuoso ao legitimo pai.
Notando -lhe o carinho, de leito
em leito, de necessitado a necessitado, o moço hebreu experimentava
deliciosa e íntima surpresa, O ex-pescador de Cafarnaum, relativamente moço
ainda, era o exemplo vivo da renúncia fraterna.
Tão logo convalescente, Jeziel foi transferido a am biente mais calmo, à
sombra amena de vetustas tama reiras que circundavam a velha casa .
Entre ambos estabelecera-se, desde os primeiros dias, a corrente
magnética das grandes atrações afetivas.
Nessa manhã, as observações amáveis sucediam -se e, não obstante a
justa curiosidade que lhe pairava nalma, a respeito do interessante hóspede,
Simão ainda não tinha logrado o ensejo de um intercâmbio de idéias, mais
íntimo, de maneira a sondar -lhe os pensamentos, inteirando-se dos seus
sentimentos e da sua origem.
Ao sopro generoso da aragem matinal, sob as
árvores frondosas, o Apóstolo criou ânimo e , a certa altura, depois de distrair o
convalescente com alguns ditos afetuosos, buscou penetrar -lhe o mistério,
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cuidadosamente:
— Amigo — disse com jovial sorriso —, agora que Deus te restituiu a saúde
preciosa, regozijo-me por havermos recebido tua visit a em nossa casa.
Nosso
júbilo é sincero, pois que, nos mínimos detalhes da tua perma nência entre nós,
revelaste a condição espiritual de filho legítimo dos lares organizados com
Deus, pelo conhecimento que tens dos textos sagrados.
E tanto me im –
pressionei com as tuas referências a Isaías, quando deliravas com febre alta,
que desejaria saber de que tribo descendes.
Jeziel compreendeu que aquele amigo sincero, antes irmão carinhoso nas
horas mais críticas da enfermidade, desejava conhecê -lo melhor, identificá-lo
íntima e profundamente, com delicada argúcia psicológica.
Achou justo e
considerou que não devia desprezar o amparo de um coração verdadeiramente
fraterno, para o acendramento das próprias energias espirituais.
— Meu pai era filho dos arredores de Sebaste e descendia da tribo de
Issacar — esclareceu, atencioso.
— E era tão altamente dedicado ao estudo de Isaías?
— Estudava sinceramente todo o Testamento, sem preferências, talvez, de
ordem particular.
A mim, porém, Isaías sempre me impressionou
profundamente pela beleza das promessas divinas de que foi portador, anun –
ciando-nos o Messias, sobre cuja vinda tenho meditado desde a infância.
Simão Pedro esboçou um sorriso de viva satisfação e disse:
— Mas, não sabes que o Messias já veio?
Jeziel teve um brusco sobressalto na cadeira improvisada.
— Que dizeis? — inquiriu ansioso.
— Nunca ouviste falar em Jesus de Nazaré?
Embora recordasse vagamente as palavras ouvidas de Efraim, declarou:
— Nunca!
— Pois o profeta nazareno já nos trouxe a mensa gem de Deus para todos
os séculos.
E Simão Pedro, olhos acesos na chama luminosa dos que se sentem
felizes ao recordar um tempo ven turoso, falou-lhe da exemplificação do
Senhor, traçando uma perfeita biografia verbal do Mestre sublime.
Em traços de forte colorido, lembrou os dias em que o hospedava no seu
tugúrio à margem do Genesaré, as excursões pelas aldeias vizinhas, as
viagens de barca, de Cafarnaum aos sítios marginais do lago.
Era de se lhe ver
a emoção intraduzível da voz, a alegria interior com que rememor ava os feitos
e prédicas junto ao lago marulhoso, acariciado pelo vento, a poesia e a
suavidade dos crepúsculos vespertinoS.
A imaginação viva do Após tolo sabia
tecer comentários judiciosos e brilhantes ao evocar um leproso curado, um
cego que recuperara a vista, uma criancinha doente e prestes restabelecida.
Jeziel bebia-lhe as palavras, inteiramente empolga do, como se houvesse
encontrado um mundo novo.
A mensagem da Boa Nova penetrava -lhe o
espírito desencantado, como um bálsamo suave.
Quando Simão parecia prestes a terminar a narrativa, não pôde conter -se
e perguntou:
— E o Messias? Onde está o Messias?
— Há mais de um ano — exclamou o Apóstolo apagando a vivacidade
com a lembrança triste — foi crucificado aqui mesmo em Jerusalém, entre os
ladrões.
Em seguida, passou a enumerar os martírios pun gentes, as dolorosas
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ingratidões de que o Mestre fora vítima, os ensinos derradeiros e a gloriosa
ressurreição do terceiro dia.
Depois, falou dos primeiros dias do apostolado,
dos acontecimentos do Pentecostes e das últimas aparições do Senhor, no
cenário sempre saudoso da Galiléia distante.
Jeziel tinha as pupilas úmidas.
Aquelas revelações sensibilizavam -lhe o
coração, como se houvesse conhe cido o profeta de Nazaré.
E, ligando o perfil
deste aos textos que retinha de cor, enunciou, quase em voz alta, como se
falasse consigo mesmo:
— “Levantar-se-á (1) como um arbusto verde, na ingratidão de um solo
árido.
.
.
Carregado de opróbrios e abandonado dos homens.
Coberto de ignomínias não merecerá consi deração.
Será ele quem carregará o fardo pesado de nossas culpas e sofrimentos,
tomando sobre si todas as nossas dores.
Parecerá um homem vergado sob a cólera de Deus.
.
.
Humilhado e ferido deixar-se-á conduzir como um cordeiro, mas, desde o
instante em que oferecer sua vida, os interesses do Eterno hão de prosperar
nas suas mãos.
”
Simão, admirado de tanto conhecimento dos sagra dos textos, terminou
dizendo:
— Vou buscar-te os textos novos.
São as anotações de Levi (2) sobre o
Messias redivivo.
(1) Do Capítulo 53º, de Isaías.
(2) Mateus.
E, em breves minutos, o Apóstolo lhe punha nas mãos os pergaminhos do
Evangelho.
Jeziel não leu; devorou.
Assinalou, em voz alta, uma a uma, todas
as passagens da narrativa, seguido pela atenção de Pedro intimamente
satisfeito.
Terminada a rápida análise, o jovem advertiu:
– Encontrei o tesouro da vida, preciso examiná -lo com mais vagar, quero
saturar-me da sua luz, pois aqui pressinto a chave dos enigmas humanos.
Quase em lágrimas, leu o Sermão da Montanha, secundado pelas
comovedoras lembranças de Pedro.
Em seguida, ambos passaram a comparar
os ensinamentos do Cristo com as profecias que o anunciavam.
O jovem hebreu estava comovidíssimo e queria conhecer os mí nimos
episódios da vida do Mestre.
Simão procurava satisfazê -lo, edificado e
satisfeito.
O generoso amigo de Jesus, tão incompreendido em Jerusalém,
experimentava uma alegria orgulhosa por haver encontrado um jovem que se
entusiasmava com os exemplos e ensinamentos do Mestre incomparável.
— Desde que dei acordo de mim em vossa casa —disse Jeziel —,
verifiquei que participais de princípios que me não são conhecidos.
Tanta
preocupação em amparar os desfavorecidos da sorte representa uma lição
nova para minha alma.
Os doentes que vos abençoam, qual o faço agora, são
tutelados desse Cristo que eu não tive a ventura de conhecer.
— O Mestre amparava a todos os sofredores e nos recomendou que o
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mesmo fizéssemos em seu nome, escla receu o Apóstolo enfaticamente.
— De acordo com as instruções do Levítico — disse Jeziel —, toda cidade
deve possuir, longe de suas portas, um vale, destinado aos leprosos e pessoas
consideradas imundas; entretanto, Jesus nos deu um lar no coração daqueles
que o seguem.
— O Cristo nos trouxe a mensagem do amor — explicou Pedro —,
completou a Lei de Moisés, inaugurando um novo ensinamento.
A Lei Antiga é
justiça, mas o Evangelho é amor.
Enquanto o código do passado pre ceituava o “olho por olho, dente por
dente”, o Messias ensinou que devemos “perdoar setenta vezes sete vezes” e
que se alguém quiser tirar -nos a túnica devemos dar -lhe também a capa.
Jeziel sensibilizou-se e chorou.
Aquele Cristo amo roso e bom, suspenso na
cruz da ignomínia humana, era a personificação de todos os heroísmos do
mundo.
Como se aliviava ao analisá -lo! Sentia-se bem por não haver reagido
contra o despotismo de que fora vítima.
Cristo era o Filho de Deus e não
desdenhara o sofrimento.
Seu cálice transbordara e Pedro lhe fazia sentir que,
nos instantes mais acerbos, aquele Mestre desconhecido e humilde, no mundo,
sabia transmitir a lição da coragem, da renúncia e da vida.
Como exemplo do
seu amor, ali estava aquele homem simples e carinhoso, que lhe chamava
irmão, que o acolhia como pai dedicado.
O rapaz lembrou seus últimos dias em
Corinto e chorou longamente.
Foi aí que, abrindo o coração, tomou as mãos de
Pedro e contou-lhe toda a sua tragédia, sem nada omitir e rogando -lhe
conselhos.
Finalizando a narrativa, acrescentou comovido:
– Revelastes-me a luz do mundo; perdoai, pois, se vos revelo meus
sofrimentos, que devem ser j ustos.
Tendes no coração as claridades da
palavra do Salvador e haveis de inspirar minha pobre vida.
O Apóstolo abraçou-o e murmurou:
—Julgo prudente guardares o anonimato, pois Je rusalém regurgita de
romanos e não seria justo comprometer o generoso amigo que te restituiu à
liberdade.
Teu caso, entretanto, não é novo, meu amigo.
Estou nesta cidade há
quase um ano, e, por estes leitos sin gelos, têm passado as mais singulares
criaturas.
Eu, que era um paupérrimo pescador, tenho adquirido ampla
experiência do mundo, nestes poucos meses! A estas portas têm batido
homens esfarrapados, que foram po líticos importantes; mulheres leprosas, que
foram quase rainhas!
Em contacto com a história de tantos castelos desmoronados, no jogo das
vaidades mundanas, agora reconheço que as almas necessitam do Cristo,
acima de tudo.
Essas explicações singulares constituíam conforto para Jeziel, que
interrogou agradecido:
—E achais que vos poderia servir em alguma coisa? Eu, que era cativo dos
homens, desejaria escravizar-me ao Salvador, que soube viver e morrer por
todos nós.
—Serás meu filho, doravante — exclamou Simão num transporte de júbilo.
—E já que preciso reformar -me em Cristo, como me chamarei? —
perguntou Jeziel com olhos fulgurantes de alegria.
O Apóstolo refletiu algum tempo e falou:
—Para que não te esqueças da Acaia, onde o Senhor se dignou de buscar –
te para o seu ministério divino, eu te batizarei no credo novo com o nome grego
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de Estevão.
Consolidaram-se ainda mais os laços de simpatia que os aproximavam
desde o primeiro instante, e o moço jamais olvidaria aquele encontro com o
Cristo, à sombra das tamareiras aureoladas de luz.
Durante um mês, Jeziel, agora conhecido por Estevão, absorveu -se no
estudo de toda a exemplificação e ensinos do Mestre que não chega ra a
conhecer de modo direto.
A casa dos apóstolos, em Jerusalém, apresentava um movimento de
socorro aos necessitados cada vez maior, requerendo vasto coeficiente de
carinho e dedicação.
Eram loucos a chegarem de todas as províncias, anciães
abandonados, crianças esquálidas e famintas.
Não só isso.
À hora habitual das
refeições, extensas filas de mendigos comuns imploravam a esmola da sopa.
Acumulando ar tarefas com ingente sacrifício, João e Pedro, com o concurso
dos companheiros, haviam cons truído um pavilhão modesto, destinado aos
serviços da igreja, cuja fundação iniciavam para difundir as mensa gens da Boa
Nova.
A assistência aos pobres, entretanto, não dava tréguas ao labor das
idéias evangélicas.
Foi quando João considerou irrazoável que os discípu los diretos
do Senhor menosprezassem a sementeira da palavra divina e
despendessem todas as possibilidades de tempo no serviço do refeitório e das
enfermarias, visto que, dia a dia, multiplicava o número de doentes e infelizes
que recorriam aos seguidores de Jesus como a última esperança para os seus
casos particulares.
Havia enfermos que batiam à porta, benfeitores da nova
instituição que requeriam situações especiais para os seus protegidos, amigos
que reclamavam providências a favor dos órfãos e das vi úvas.
Na primeira reunião da igreja humilde, Simão Pe dro pediu, então,
nomeassem sete auxiliares para o ser viço das enfermarias e dos refeitórios,
resolução que foi aprovada com geral aprazimento.
Entre os sete irmãos
escolhidos, Estevão foi designado com a simpatia de todos.
Começou para o jovem de Corinto uma vida nova.
Aquelas mesmas
virtudes espirituais que iluminavam a sua personalidade e que tanto haviam
contribuído para a cura do patrício, que o restituira à liberdade, difundiam entre
os doentes e indigentes de Jerusalém os mais santos consolos.
Grande parte
dos enfermos, recolhidos ao casarão dos discípulos, recobraram a saúde.
Velhos desalentados encontravam bom ânimo sob a influência da sua palavra
inspirada na fonte divina do Evangelho.
Mães afl itas buscavam-lhe o conselho
seguro; mulheres do povo, esgotadas pelo trabalho e angústias da vida,
ansiosas de paz e consolação, disputavam o conforto da sua presença
carinhosa e fraterna.
Simão Pedro não cabia em si de contente, em face das vitórias do f ilho
espiritual.
Os necessitados tinham a impressão de haver recebido um novo
arauto de Deus para alívio de suas dores.
Em pouco tempo, Estevão tornou -se famoso em Jerusalém, pelos seus
feitos quase miraculosos.
Consi derado como escolhido do Cristo, sua a ção
resoluta e sincera arrigimentara, em poucos meses, as mais vastas conquistas
para o Evangelho do amor e do perdão.
Seu nobre esforço não se limitava à
tarefa de mitigar a fome dos desvalidos.
Entre os Apóstolos galileus, sua
palavra resplandecia nas pregações da igreja, iluminada pela fé ardente e pura.
Quando quase todos os companheiros, a pretexto de não ferirem velhos
princípios estabelecidos, deixavam de ampliar os comentários públicos para
além das considerações agradáveis ao judais mo dominante, Estevão
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apresentava à multidão, desas sombradamente, o Salvador do mundo na glória
das novas revelações divinas, indiferente às lutas que iria provocar,
comentando a vida do Mestre com o seu verbo inflamado de luz.
Os próprios
discípulos surpreendiam-se com a magia das suas profundas inspirações.
Alma
temperada na forja sublime do sofrimento, sua pregação estava cheia de
lágrimas e alegrias, de apelos e aspi rações.
Em poucos meses, seu nome era aureolado de uma veneração
surpreendente.
E, ao fim do dia, qua ndo chegavam as orações da noite, o
moço de Corinto, ao lado de Pedro e João, falava das suas visões e das suas
esperanças, cheio do espírito daquele Mestre adorável, que, através do seu
Evangelho, lhe semeara no coração as estrelas abençoadas de um júbi lo
infinito.