Estamos na velha Jerusalém, numa clara manhã do ano 35.
No interior de sólido edifício, onde tudo transpira conforto e luxo da época,
um homem ainda moço parece impaciente, à espera de alguém que se
demora.
Ao menor rumor da via pública, corre à janela, apressado, voltando a
sentar-se e a examinar papiros e pergaminhos, como quem se diverte matando
o tempo.
Chegando à cidade, depois de uma semana de via gem exaustiva, Sadoc
aguardava o amigo Saulo para o abraço afetuoso da sua amizade de muitos
anos.
Dentro em breve um carro minúsculo, semelhante às bigas romanas,
estacava à porta, tirado por dois soberbos cavalos brancos.
Num minuto, as
nossas personagens se abraçaram efusivamente, transbordantes de alegria e
juventude.
O jovem Saulo apresentava toda a vivacidade de um homem solteiro,
bordejando os seus trinta anos.
Na fisionomia cheia de virilidade e máscula
beleza, os traços israelitas fixavam-se particularmente nos olhos profundos e
percucientes, próprios dos temperamentos apaixonados e indomáveis, ricos de
agudeza e resolução.
Trajando a túnica do patriciato, falava de preferência o
grego, a que se afeiçoara na cidade natal, ao convívio de mestres bem –
amados, trabalhados pelas escolas de Atenas e Alexandria.
— Quando chegaste? — perguntou Sadoc, bem-humorado, ao visitante.
—Estou em Jerusalém desde ontem de manhã.
Aliás, estive com tua irmã
e teu cunhado, que me deram notícias tuas ao partirem para Lida.
—E como vais de vida lá por Damasco?
—Sempre bem.
Antes que se fizesse alguma pausa, o outro observou:
—Mas como estás modificado!.
.
.
Um carro à romana, a conversação em
grego e.
.
.
Saulo, porém, não o deixou prosseguir e rematou:
—E no coração a Lei, sempre desejoso de submeter Roma e Atenas aos
nossos princípios.
—Sempre o mesmo homem! — exclamou o amigo com um sorriso franco.
— Aliás, posso apresentar um complemento às tuas próprias explicações.
A
biga éindispensável’ às visitas a uma casinha florida, na estrada de Jope; e a
conversação grega é necessária aos colóquios com uma legítima descendente
de Issacar, nascida entre as flores e os mármores de Corinto.
—Como o sabes? — inquiriu Saulo admirado.
—Pois não te disse que estive ontem à tarde com tua irmã?
E os dois, acomodados em poltronas confortáveis da ép oca, entremeando
a conversação com algumas pe quenas taças do capitoso “Chipre”, esfloravam
largamente os problemas da vida pessoal, relacionando as pequenas
ocorrências de cada dia.
Jovialíssimo, Saulo contou ao amigo que, de fato, se enamorara de uma
jovem da sua raça, que aliava os dotes de peregrina beleza aos mais elevados
tesouros do coração.
Seu culto ao lar constituía um dos mais santificados
atributos femininos.
Explicou o primeiro encontro que tiveram.
Em companhia
de Alexandre e Gamaliel, fora, havia uns três meses, à festividade íntima que
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Zacarias ben Hanan, adiantado lavrador no caminho de Jope, oferecera a
alguns amigos bem colocados, em homenagem à circuncisão dos filhinhos de
seus servidores.
Acrescentou que o anfitrião era antigo comercian te israelita
emigrado de Corinto, após longos anos de trabalho na Acaia, desgostoso com
as perseguições de que fora vítima.
Após grandes provações na viagem de Cencréia a Cesaréia, Zacarias
chegara àquele porto em péssimas condições financeiras, mas foi au xiliado por
um patrício romano, que lhe facultou recursos para arrendar uma grande
propriedade na estrada de Jope, a regular distância de Jerusalém.
Acolhido
generosamente em sua casa, agora farta e feliz, ali conhecera na jovem Abigail
um terno coração de menina, dona dos mais belos predicados morais que
pudessem exornar uma filha da sua raça.
Era, de fato, o seu ideal de moço:
inteligente, versada na Lei e, sobretudo, dócil e carinhosa.
Adotada pelo casal
como filha muito cara, havia sofrido amargamente em Corinto, ali deixando o
pai morto e o irmão escravizado para sempre.
Havia três meses que se
conheciam, permutando-se as mais risonhas esperanças e, quem sabe? talvez
o Eterno lhes reservasse a união conjugal, como coroamento dos sonhos
sagrados da juventude.
Saulo falava com o entusiasmo próprio do seu
temperamento apaixonado e vibrátil.
No olhar pro fundo, notava-se-lhe a chama
viva dos sentimentos resolutos, com respeito à afeição que lhe dominava a
capacidade emotiva.
— E já comunicaste a teus pai s esses projetos? —perguntou Sadoc.
— Minha irmã pretende ir a Tarso nestes dois me ses e será a intérprete
dos meus votos, concernentes à organização do meu futuro.
Aliás, sabes, isso
não pode nem deve ser um problema de soluções precipitadas.
Penso que a o
homem não convém entregar—se assim, sem mais nem menos, a uma
questão decisiva do seu destino.
Obedecendo ao nosso velho instinto de
prudência, venho analisando demoradamente meus próprios ideais e ainda não
trouxe Abigail para conviver com Dalila, algun s dias, em nossa casa; pretendo
fazê-lo tão-só nas vésperas da visita de minha irmã ao lar paterno.
— Já que acalentas tantos projetos para o futuro adjuntou o amigo com
bondoso interesse —, em que pé estão as tuas pretensões ao cargo no
Sinédrio?
Não posso queixar-me, porqüanto o Tribunal me confere atualmente
atribuições especialissimas.
Sabes que Gamaliel há muito vem instando com
meu pai a respeito da minha transferência para Jerusalém, onde me prometem
lugar de relevo na administração do nosso povo.
Como sabemos, o antigo
mestre está idoso e deseja retirar -se da vida pública.
Não tardarei a substituí -lo
no voto das mais altas deliberações, além de auferir atualmente ótima
remuneração, independente da contri buição que me vem de Tarso
periodicamente.
Tenho, acima de tudo, o ideal político de aumentar meu
prestígio junto aos rabinos.
É preciso não esquecer que Roma é poderosa e
que Atenas é sábia, tornando-se indispensável acordar a eterna hegemonia de
Jerusalém como tabernáculo do Deus único.
Precisamo s, pois, dobrar os
joelhos de gregos e romanos ante a Lei de Moisés.
Sadoc, no entanto, deixando perceber que não pres tava muita atenção ao
seu idealismo nacionalista, retinha o pensamento na situação particular,
advertindo delicadamente.
—Pelo que me dizes, folgo em saber que teu pai vai melhorando,
progressivamente, as condições finan ceiras.
E dizer-se que foi tecelão
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humilde.
.
—Por isso mesmo, talvez — glosou Saulo —, ensinou-me a profissão,
quando menino, para que nunca me esquecesse de que o pro gresso de um
homem depende do seu próprio esforço.
Hoje, porém, depois de tantas fadigas
no tear, ele descansa, com justiça, numa velhice honrada e sem cuidados,
junto de minha mãe.
Suas caravanas e camelos percorrem toda a Cilícia e os
transportes lhe garantem um desenvolvimento de renda cada vez maior.
A palestra continuou animada e, em dado instante, o moço de Tarso
inquiriu o amigo sobre os motivos que o traziam a Jerusalém.
—Vim certificar-me da cura de meu tio Filodemos, que ficou curado da
velha cegueira, mediante processos misteriosos.
E, como se trouxesse o cérebro onusto de interro gações de toda sorte,
para as quais não encontrava res posta nos próprios conhecimentos, acentuou:
— Já ouviste falar nos homens do “Caminho”?
— Ah! Andrônico falou-me a respeito deles, há muito tempo.
Não se trata
de uns pobres galileus mal trapilhos e ignorantes que se refugiam nos bairros
desprezíveis?
— Isso, justamente.
E contou que um homem chamado Estevão, por tador de virtudes
sobrenaturais, no dizer do povo, h avia devolvido a vista ao tio, com assombro
geral de muita gente.
— Como é isso? — disse Saulo admirado.
Como pôde Filodemos
submeter-se a experiências tão sórdidas? Acaso não terá compreendido que o
fato pode radicar nas artimanhas dos inimigos de Deus? V árias vezes, desde
que Andrônico me referiu o assunto pela primeira vez, tenho ouvido
comentários a respeito desses homens e cheguei mesmo a trocar idéias com
Gamaliel, no intuito de reprimir essas atividades perniciosas; entretanto, o
mestre, com a tolerância que o caracteriza, me fez ver que essa gente vem
auxiliando a numerosas pessoas sem recursos.
— Sim — atalhou o outro —, mas ouço dizer que as pregações de Estevão
estão arrebanhando muitos es tudiosos a novos princípios que, de algum modo,
infirmam a Lei de Moisés.
— Todavia, não foi um carpinteiro galileu, obscuro, sem cultura, que
originou tal movimento? Que pode ríamos esperar da Galiléia? Porventura terá
produzido outra coisa além de legumes e peixes?
E, contudo, o carpinteiro martirizado to rnou-se um ídolo para os sequazes.
Procurando desfazer as impressões de meu tio, chamando-o à razão com a
energia necessária, fui levado a visitar, ontem, as obras de caridade dirigidas
por um tal Simão Pedro.
É uma instituição estranha e que não deixa d e ser
extraordinária.
Crianças desamparadas que encontram carinho, leprosos que
recobram a saúde, velhos enfermos e des protegidos da sorte, que exultam de
conforto.
— Mas os doentes? Onde ficam esses doentes? —interrogou Saulo
assombrado.
— Todos se agasalham junto desses homens incompreensíVeiS.
— Estão todos malucos! — disse o moço de Tarso com a franqueza
espontânea que lhe marcava as atitudes.
Ambos trocaram impressões íntimas, sobre a nova doutrina, pontuando de
ironia o comentário de muitos fatos pi edosos que empolgavam a atenção do
povo simples de Jerusalém.
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Ao finalizar a conversa, Sadoc acrescentou:
— Não me conformo em ver os nossos princípioS aviltados e proponho -me
a cooperar contigo, embora es teja em Damasco, para estabelecermos a
imprescindível repressão a tais atividades.
Com as tuas prerrogativas de futuro
rabino, em destaque no Templo, poderás encabeçar uma ação decisiva contra
esses mistificadores e falsos taumaturgos.
— Sem dúvida — respondeu.
— E prontifico-me a executar todas as
providências que o caso requer.
Até agora, a atitude do Sinédrio tem sido da
máxima tolerância mas farei que todos os companheiros mudem de opinião e
procedam como lhes compete, em face dessas investidas que estão a desafiar
severa punição.
E, quase solene, concluía:
— Quais os dias de pregação desse tal Estevão?
— Os sábados.
—Pois bem; depois de amanhã iremos juntos apre ciar os sandeus.
Caso
verifique o caráter inofensivo dos seus ensinamentos, haverá que os deixar em
paz com a sua logomania, ao lado das mazelas do próximo; mas, caso
contrário, pagarão muito caro a audácia de ofender nossos códigos religiosos,
na própria metrópole do judaísmo.
Ainda por longo tempo comentaram os fatos sociais, as tricas do farisaísmo
a que pertenciam, os sucessos do presente e as esperanças do porvir.
Ao cair da tarde desse mesmo dia, a biga elegante de SauLo de Tarso
atravessava as portas de Jerusalém, tomando a direção do porto de Jope.
O sol ardente, alto ainda no horizonte, enchia o caminho com a sua luz
muito viva, O semblante do jovem doutor da Lei irradiava uma alegria louca, ao
trote largo dos animais, que, de quando em vez, passa vam a galopar.
Recordava, satisfeito, o esporte a que se afeiçoara na cidade natal, tão ao
gosto grego em que fora educado, gra ças à solicitude paterna.
Olhos fixos nos
cavalos árdegos e velozes, vinham-lhe à mente as vitórias alcançadas, entre os
parceiros de jogos na sua descuidosa adolescência.
Poucas milhas distante, erguia-se uma casa confortável, entre grandes
tamareiras e pessegueiros em flor.
Em torno, grandes plantações de legumes,
ao lado de tênue fio dágua inteligentemente aproveitado em extenso horto.
A
propriedade era parte integrante de uma das muitas pequenas aldeias que
rodeavam a cidade santa, onde quer que houves se condições favoráveis para
a pequena lavoura, de alto interesse nos mercados de Jerusalém, colocada no
meio de uma secura singular.
Era aí que Zacarias se instalara com a família,
para recomeçar a vida honesta, Ruth e Abigail procuravam ajudá -lo no seu
nobre esforço de homem ativo e traba lhador, cultivando frutos e flores, e com
isso aproveitando toda a terra disponível.
Deixando Corinto, o generoso israelita encontrou grandes dificuldades, até
que desembarcou em Cesaréia, onde se lhe esgotaram os últim os recursos,
Alguns conterrâneos, entretanto, o apresentaram a conhecido patrí cio romano,
grande proprietário na Samaria e que lhe emprestou avultada soma,
recomendando-lhe aquela zona de Jope onde poderia arrendar -lhe a
propriedade de um amigo.
Zacarias aceitou o auxílio e tudo ia às mil
maravilhas.
A venda de legumes e frutas, bem como a criação de aves e
animais pesados, compensavam-lhe as fadigas.
Embora distante de
Jerusalém, tivera ensejo de visitar a cidade, mais de três vezes, sendo que,
sob o amparo de Alexandre, parente próximo de Anás, conseguira incluir -se
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entre os negociantes privilegiados, que podiam vender animais para os
sacrifícios do Templo.
Auxiliado por amigos influentes, do estofo de Gamaliel e de Saulo de
Tarso, que se emancipara da c ondição de discípulo para graduar -se em
autoridade competente, no mais alto tribunal da raça, pudera resgatar grande
parte de suas dívidas, caminhando vertiginosamente para uma bela posição de
independência financeira, no país natal.
Ruth regozijava -se com a vitória do
marido, secundada por Abigail, em quem encontrara a dedicada afeição de
verdadeira filha.
A irmã de Jeziel parecia haver refundido a delica deza dos traços feminis,
na forja dos sofrimentos experimentados.
A gracilidade do semblante e o
negrume dos olhos haviam-se irmanado a um véu de formosa tris teza, que a
envolvera toda, a partir daqueles dias trá gicos e lúgubres, passados em
Corinto.
Quanto desejava uma notícia, ainda que ligeira e banal, do irmão que
o destino havia convertido em escra vo de verdugos cruéis!.
.
.
Para isso, desde
os primeiros tempos, Zacarias não poupara expedientes nem esforços.
Incumbindo a um fiel amigo da Acaia de promover diligências em tal sentido,
apenas fora informado de que Jeziel havia sido levado, quase a ferro s, para
bordo de um navio mercante que se destinava a Nicópolis.
Nada mais.
Abigail
instara novamente.
E de Corinto vinham novas promessas dos amigos, que
prosseguiriam investigando nas rodas afei çoadas a Licínio Minúcio, de modo a
descobrirem o paradeiro do jovem cativo.
Nesse dia, a moça recordava profundamente a figura do irmão querido, as
suas advertências e conselhos tão carinhosos sempre.
Desde que travara relações com o rapaz de Tarso e entrevira a
possibilidade de uma união conjugal, era com ansie dade que suplicava a Deus
a consoladora certeza da existência do irmão, fosse onde fosse.
A seu ver,
Jeziel gostaria de conhecer o eleito do seu coração, cujos pensamentos eram
igualmente iluminados pelo zelo sincero de bem servir a Deus.
Contar-lhe-ia que a afeição da sua alma era também entretecida de
comentários religiosos e filosóficos, e não tinham conta as vezes em que
ambos se submergiam na contemplação da Natureza, comparando as suas
lições vivas com os símbolos divinos dos Escritos Sagrados.
Saulo muito lhe ajudara no cultivo das flores da fé, que Jeziel havia
semeado em sua alma singela.
Não era ele um homem excessiva mente
sentimental, dado às efusões dos carinhos que passam sem maior significação,
mas, compreendera-lhe o espírito nobre e leal, que um profundo sentimento de
autodomínio assinalava.
Abigail estava certa de enten der-lhe as aspirações
mais íntimas, nos sonhos grandio sos que lhe empolgavam a mocidade.
Sublime atração, essa que a impelia para o jovem sábio, voluntarioso e sincero!
As vezes, parecia-lhe áspero e enérgico em demasia.
Suas concepções da Lei
não admitiam meios-termos.
Sabia ordenar e desagradava -lhe qualquer expressão
de desõbediência aos seus propósitos.
Aqueles meses de convívio,
quase diário, davam-lhe a conhecer o seu temperamento indômito e inquieto, a
par de um coração eminentemente generoso, onde uma fonte de ignorada
ternura se retraía em abismais profundezas.
Mergulhada em cismas, num gracioso banco de pedra junto dos
pessegueiros em festa primaveril, viu que o c arro de Saulo se aproximava ao
trote largo dos animais.
Zacarias o recebeu a distância e, juntos, em conver sação animada,
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demandaram o interior, para onde a jovem se dirigiu.
A palestra estabeleceu-se no tom de cordialidade, que se repetia várias
vezes na semana, e, como de costume, os dois jovens, no deslumbramento da
paisagem crepuscular, quase de mãos dadas como dois prometidos, desceram
ao pomar cuja relva se constituía de espaçosos canteiros de flores orientais.
O
mar estendia-se à distância de muitas milhas, mas o ar fresco da tarde dava a
impressão dos ventos suaves que sopram do litoral.
Saulo e Abigail falaram, a
princípio, das banalidades de cada dia; contudo, em dado momento,
reconhecendo o véu de tristeza que se estampava no rosto da compa nheira, o
moço interrogou-a com ternura:
— Por que estás tão triste hoje?
— Não sei — respondeu ela de olhos úmidos
mas tenho pensado muito em meu irmão.
Espero, ansiosa, notícias dele, pois
guardo a esperança de que te possa conhecer, mais cedo ou mais tarde.
Jeziel
acolheria tua palavra com entusiasmo e contentamento.
Um amigo de Zacarias
prometeu informações a respeito e estamos es perando notícias de Corinto.
Depois de pequena pausa, ergueu os grandes olhos e prosseguiu:
— Ouve, Saulo: Se Jeziel ainda estiver preso, prometes-me teu auxílio em
seu favor? Teus prestigiosos amigos de Jerusalém poderão intervir para libertá –
lo, junto do Procônsul da Acaia! Quem sabe? Minhas espe ranças, agora,
resumem-se exclusivamente em ti.
Ele tomou-lhe a mão e replicou enternecido:
— Farei tudo por ele.
E, fixando nela os olhos dominadores e apaixonados, acentuou:
— Abigail, amarias a teu irmão mais que a mim?
— Que dizes? — exclamou, compreendendo a deli cadeza da pergunta.
—
Entendes o meu coração fraterno e isso me exime de mais amplas explicações.
Como sabes, querido, Jeziel foi meu amparo nos dias da orfan dade materna.
Companheiro de infância e amigo da juventude sem sonhos, foi sempre o
irmão carinhoso que me ensinou a soletrar os mandamentos, a cantar os
Salmos de mãos-postas, livrando-me das veredas do mal e inclinando -me ao
bem e à virtude.
Tudo que encon traste em mim, constitui dádiva da sua
generosa assistência de irmão desvelado.
Saulo observou-lhe o olhar úmido de pranto e con siderou com bondade:
— Não chores.
Compreendo as tuas sagradas razões afetivas.
Se
necessário, irei ao fim do mundo descobrir Jeziel, caso ainda esteja vivo.
Levarei cartas de Jerusalém à Corte Provincial de Corinto.
Farei tudo.
Tran –
qüiliza-te, pois.
Pelos teus informes, presumo nele um santo.
Mas falemos de
outras coisas.
Há problemas imediatos a resolver.
E nossos projetos, Abigail?
— Deus há de abençoar-nos, murmurou a jovem, comovida.
— Ontem, Dalila e o esposo foram a Lida, em visita a alguns parentes
nossos.
Entretanto, ficou tudo combinado para que estejas conosco em Jerusalém,
daqui a dois meses.
Antes que minha irmã empreenda a pró xima viagem a
Tarso, quero que ela te conheça mais intimamente, a fim de que exponha, com
franqueza, a meus pais, o nosso projeto de casamento.
— Teu convite me sensibiliza sobremaneira, mas.
.
.
— Nada de restrições nem timidez.
Viremos bus car-te.
Combinarei todas
as providências indispensáveis, com Ruth e Zacarias, e, quanto ao necessário
para que te apresentes numa cidade grande, não permitirei que façam aqui
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despesa alguma.
Já estou providenciando para que recebas, em breves dias,
várias túnicas de modelo grego.
E rematava a observação com um belo sorriso:
— Quero que apareças em Jerusalém como expoente perfeito da nossa
raça, desenvolvida entre as antigas belezas de Corinto.
A moça fez um gesto tímido, demonstrando íntimo contentamento.
Mais alguns passos e sentaram-se sob velhos pessegueiros floridos,
respirando a longos haustos as virações suaves que perfumavam o ambiente.
A terra cultivada e colorida de rosas de todos os matizes, exalava delicioso
aroma.
O fim do crepúsculo está sempre cheio de sons que passam
apressados, como se a alma das coisas estivesse igualmente ansiosa pelo
silêncio, amigo do grande repouso.
.
.
Eram árvores frondosas q ue se velavam
nas sombras, derradeiros passarinhos errantes que voejavam céleres e as
brisas cariciosas que chegavam de longe, agitando as grandes ramarias e
acentuando os doces murmúrios do vento.
Saulo, inebriado de indefinível alegria, contemplou as pr imeiras estrelas
que sorriam no céu recamado de luz.
A Natureza é sempre o espelho fiel das
emoções mais íntimas, e aquelas vagas de perfume, que as vira ções traziam
de longe, encontravam eco de misterioso júbilo no seu coração.
— Abigail disse retendo-lhe a mãozinha entre as suas —, a Natureza canta
sempre com as almas esperançosas e crentes.
Com que ansiedade esperei -te
no caminho da vida!.
.
.
Meu pai falou-me do lar e das suas doçuras e eu
aguardava a mulher que me compreendesse inteiramente.
— Deus é bom — replicou ela com enlevo — e somente agora reconheço
que, depois de tantos sofrimentos, Ele me reservava, na sua misericórdia
infinita, o tesouro maior da minha vida, o teu amor, na terra de meus pais.
Teu
afeto, Saulo, concentra todos os meus ideais.
O Céu nos fará felizes.
Todas as
manhãs, quando estivermos casados, pedirei, em preces fervoro sas, aos anjos
de Deus que me ensinem a tecer a rede das tuas alegrias; à noite, quando a
bênção do repouso envolver o mundo, dar -te-ei um carinho sempre novo, do
meu afeto.
Tomarei tua cabeça atormentada pelos problemas da vida e ungirei
tua fronte com a carícia de minhas mãos.
Viverei com Deus e contigo,
somente.
Ser-te-ei fiel por toda a vida e amarei os próprios sofrimentos que
acaso o mundo possa acarretar-me, por amor à tua vida e ao teu nome.
Saulo apertou-lhe as mãos com mais enlevo, redargüindo deslumbrado:
— Dar-te-ei, por minha vez, meu coração dedicado e sincero.
Abigail, meu
espírito estava possuído somente do amor à Lei e a meus pais.
Minha
mocidade tem sido muito inquieta, mas pura.
Não te oferecerei uma flor sem
perfume.
Desde os primeiros dias da juventude, conheci companheiros que me
incitaram a lhes seguir os passos incertos na embriaguez dos sentidos,
precursora da morte de nossas preocu pações mais nobres neste mundo, mas
nunca traí o ideal divino que me vibraria alma sincera.
Depois dos estudos
iniciais da minha carreira, encontrei mulheres que me acenavam, levadas por
uma concepção perigosa e errônea do amor.
Em Tarso, nos dias suntuoso s
dos jogos juvenis, após a conquista das melhores láureas, recebia, de jovens
inquietas, declarações de amor e propostas de núpcias, mas, a verdade é que
permanecia insensível, a esperar -te como heroína ignota do meu sonho, nas
assembléias ostentosas de púrpuras e flores.
Quando Deus aqui me con duziu
ao teu encontro, teus olhos me falaram, num lampejo, de sublimes revelações.
És o coração do meu cérebro, a essência do meu raciocínio e serás a mão
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guiadora das minhas edificações, em toda a vida.
Enquanto a moça, sensibilizada e venturosa, tinha os olhos mareados de
pranto, o fogoso mancebo continuava:
— Viveremos um para o outro e teremos filhos fiéis a Deus.
Serei a
ordenação da nossa vida, serás a obe diência em nossa paz.
Nossa casa será
um templo.
O amor a Deus será sua maior coluna e, quando o trabalho exigir
minha ausência do altar doméstico, ficarás velando no tabernáculo da nossa
ventura.
— Sim, querido.
Que não faria por ti? mandarás e obedecerei.
Serás a
ordem de minha vida e eu rogarei ao Senho r que me auxilie a ser teu bálsamo
de ternura.
Quando estiveres fatigado, lembrar -me-ei de minha mãe e
adormecerei tua alma generosa com as mais formosas orações de David!.
.
.
Interpretarás para mim a palavra de Deus.
Serás a lei, serei tua serva.
Saulo enternecia-se ouvindo aquelas expressões blan diciosas.
Eram as
mais belas que já havia recolhido de um coração feminino.
Mulher alguma, que
não Abigail, jamais assim lhe falara ao espírito impetuoso.
Habituado aos
longos e difíceis raciocínios, escaldando o cérebro nos silogismos dos
doutores, em busca de futuro brilhante, sentia a alma ressecada, sedenta de
verdadeiro idealismo.
Desde criança, com a sadia educação doméstica,
guardava puros os primeiros impulsos do coração, sem jamais con taminá-los
na esteira dos prazeres fáceis ou do fogo das paixões violentas, que soem
deixar na alma o carvão das dores sem esperanças.
Acostumado ao esporte,
aos jogos da época, seguido sempre de muitos companheiros em desvario,
tivera o heroísmo sagrado de sobrepor as dispos ições da Lei às próprias
tendências naturais.
Sua concepção de serviço a Deus não admitia concessões
a si mesmo.
A seu ver, todo homem devia conservar -se indene de contactos
inferiores com o mundo, até que atingisse o tálamo nupcial.
O lar constituído
haveria de ser um tabernáculo das bênçãos eternas; os filhos, as primícias do
altar do Maior Amor, consagrado ao Senhor Supremo.
Não que a sua
juventude estivesse isenta de desejos.
Saulo de Tarso experimentava todos os
anseios da mocidade impetuosa do seu tempo.
Imaginava situações de anelos
satisfeitos, e, no entanto, sujeito aos carinhos ma ternos, prometera a si mesmo
jamais tergiversar.
A vida do lar é a vida de Deus.
E Saulo guardava -se para
emoções mais sublimadas.
De esperança em esperança, via passar os anos,
esperando que a inspiração divina determinasse a rota dos seus ideais.
Esperava e confiava.
Seus pais presumiam encontrar, ali ou acolá, aquela a
quem devesse ele eleger; entretanto, Saulo, enérgico e resoluto, removia a
intervenção dos entes caros, no concernente à escolha que afetava a decisão
do seu destino.
Abigail enchera-lhe o coração.
Era a flor mística do seu ideal, a
alma que lhe entenderia as aspirações em per feita ressonância de
pensamentos.
De olhos fixos nas suas feições delicadas, que o luar pálido
iluminava, teve ânsias de guardá-la para sempre nos braços fortes.
Ao mesmo
tempo, doce enternecimento lhe vibrava na alma.
Desejava atraí -la a si, como
se o fizesse a uma criança meiga e afagar -lhe os cabelos sedosos com todo o
cabedal do seu carinho.
Inebriados de gozo espiritual, falaram longo tempo do amor que os
identificava na mesma aspiração de ventura.
Todos os comentários mais
íntimos faziam de Deus o sagrado partícipe de suas esperanças no futuro que
se lhes auspiciava, santificado em júbilos infinitos.
De mãos dadas extasiaram-Se com o plenilúnio maravilhoso, Os eloendros
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pareciam sorrir-lhes.
As rosas orientais, aureoladas pelos raios da lua, eram –
lhes qual mensagem de beleza e perfume.
Ao despedir-se, Saulo acrescentou, venturoso:
— Dentro de dois dias voltarei a ver -te.
Ficamos combinados.
Quando
Dalila partir, levará notícias nossas a meus pais e, precisamente de hoje a seis
meses, quero ter-te comigo para sempre.
— Seis meses? — revidou ela meio ruborizada e surpreendida.
— Nada haverá, penso, que possa embargar esta resolução, de vez que já
temos o indispensável.
— E se ainda não tivermos, até lá, notícias de Jeziel? Por mim, desejaria
casar-me convicta do seu contentamento e aprovação.
Saulo esboçando leve sorriso, em que havia muito de contrariedade mal
dissimulada, esclareceu:
— Quanto a isso, fica tranqüila.
Cuidaremos primeiramente da atitude dos
meus, que se encontram em plano mais imediato; e tão logo resolvamos o
problema, se preciso for, irei pessoalmente a Acaia.
É impossível que Zacarias
não receba novas notícias de Corinto, nas próximas semanas.
Então,
providenciaremos com mais segurança.
Abigail teve um gesto de satisfação e reconheci mento.
Irmanados, agora, na mesma vibração de júbilo, antes que reentrassem em
casa, onde os donos os aguardavam entretidos com a leitura das Profecias,
Saulo levou a mão da jovem aos lábios e murmurou a despedida habitual:
— Fiel para sempre!.
.
.
Daí a minutos, depois de ligeira palestra com os amigos, ouvia -se o trotear
dos animais estrada em fora, de regresso a Jerusalém.
O carro minúsculo
rodava, celeremente, ao luar, sob uma nuvem de pó.