8 A morte de Estevão – PAULO E ESTEVÃO – FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

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Apesar das atividades intensas, o moço de Tarso não deixara de

comparecer pontualmente em casa de Zacarias, onde, no coração de Abigail,

encontrava o necessário repouso.
Se as lutas em Jerusalém consumiam-lhe as

forças, perto da mulher amada parecia recobrá -las, no doce encantamento com

que esperava a realização das mais caras esperanças.

Tinha a impressão de que o mundo era um campo de batalha, no qual lhe

cabia combater pela lei de Deus; todavia, como o Eterno era justo e generoso,

concedera-lhe, na dedicação da sua eleita, um pouso de consolação.

Abigail era o seu mundo sentimental.
As lutas de cada dia, as providências

rigorosas que lhe impunha o cargo, a rigidez com que de veria tratar as

questões confiadas ao seu foro, eram transvazadas no coração da noiva, cheio

de amor, de piedade e justiça.
Ela acolhia -lhe as idéias com atenção afetuosa,

parecia temperá-las na ternura da alma fraterna, restituindo -as ao noivo amado

em forma de sugestões carinhosas e justas.

Saulo habituara-se a esse precioso intercâmbio de cada dia.
Quando lhe

faltavam ao coração os brandos consolos da estrada de Jope, sentia -se

perturbado pelos próprios sentimentos enérgicos e impulsivos.
Abigail corrig ialhe

o espírito.
Aparava as arestas do seu ca ráter violento e rude, cooperava

para que se atenuasse o rigor das decisões autoritárias.

Horas a fio o jovem tarsense embevecia -se a ouvi-la, como se os seus

sentimentos de bondade fossem alimento suave par a sua alma, que os

raciocínios rígidos do mundo costumavam rescaldar.
Ele, que não

experimentara as aventuras ga lantes do tempo, cioso de conservar pura a

consciência em face da Lei, descobrira na criatura eleita a personi ficação de

todos os sonhos de sua mocidade esperançosa.

Na noite seguinte à memorável sessão do Sinédrio, Saulo de Tarso,

abandonando todas as preocupações de ordem imediata, buscou mais ansioso

a residência de Zacarias.
As fadigas do dia abalavam-lhe as forças.
Queria

vencer rapidamente a distância, absorver-se no afeto da noiva, olvidar as

preocupações que lhe ardiam na mente trabalhada pelos mais desencontrados

raciocínios.

A noite já desdobrava o manto de luar sobre a Natureza, quando o jovem

doutor transpôs o umbral, sur preendendo a generosa família com uma

saudação delicada e afetuosa.

A presença da noiva propiciava -lhe um bálsamo de suave refrigério ao

coração.
Em breves momentos, pa recia reconfortar-se.
Tomado de bomhumor,

agora que as energias interiores descansavam em branda s carícias,

narrou entusiasticamente os últimos sucessos.
Zacarias, como observador fiel

da Lei, dava-lhe razões de sobejo no caso das deliberações assumidas.
A

personalidade de Estevão foi discutida minuciosamente, O ex -discípulo de

Gamaliel, naturalmente, esclareceu o assunto a seu modo, retratando o

pregador do “Caminho” como homem inte ligente e, por isso mesmo, perigoso,

em virtude das idéias revolucionárias que o seu verbo fluente propagava.

Abigail e Ruth escutavam silenciosas, enquanto os dois manti nham a

palestra animada.

A certa altura, atenta a uma observação direta de Saulo, a jovem

murmurou:

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— Mas não haveria um meio de modificar, ao menos, a pena arbitrada?

— Que desejarias que fizéssemos? — disse o moço com ênfase.
— Não é

pouco havermos libertado os três cabeças mais em evidência, levando -se em

conta o atrevimento de suas estranhas prédicas.
Quanto a Estevão, tudo se fez

para que voltasse ao aprisco, como descenden te direto das tribos de Israel.

Entretanto, a rebeldia foi a sua condenação.
I nsultou-me publicamente no

Sinédrio, espezinhou nossos princípios mais sagrados, criticou as figuras mais

representativas do farisaísmo, com ilustra ções mentirosas e ingratas.

E concluía:

— De mim para comigo, estou satisfeito.
Considero o apedrejamento

esperado um dos feitos de mais impor tância para o futuro da minha carreira.

Atestará meu zelo na defesa do nosso patrimônio mais estimável.
Pre cisamos

considerar que Israel, nos dias mais sombrios, preferiu a emancipação religiosa

à independência política.
Poderíamos, porventura, expor nossos valores morais

mais preciosos à influência deprimente de um aventureiro qualquer?

O jovem procurou mudar o curso da conversação, enquanto Ruth mandava

servir uma taça de vinho reconfortante.

Antes de partir, o moço tarsense convidou a noiva ao passeio habitual.

Nessa noite, a Natureza parecia enfeitar -se de maravilhas.
O luar, que

destacava todas as flores em tons pálidos, estava saturado de perfumes

deliciosos.
Os dois, de mãos enlaçadas, no banco rústico, contemplav am o

quadro embevecidamente.
Saulo expe rimentava suave conforto.

Desafogava-se.
Se Jerusalém lhe obscurecia a mente num torvelinho de

preocupações, aquela mansão singela da estrada de Jope parecia des carregálo

de todos os desgostos, prodigalizando -lhe ao espírito enorme potencial de

consolação.

— Agora, minha querida, tudo está pronto — dizia solícito.
— De hoje a

seis dias Dalila virá buscar-te pessoalmente.
Conhecerás a cidade e os meus

amigos honrarão em tua alma generosa a minha feliz escolha.
Estás satisfeita?

— Muito — murmurava ela com ternura.

— Já organizamos vasto programa recreativo.
Quero levar -te a Jericó, onde

pessoas de nossas relações nos esperam com imensa alegria.
Em Jerusalém

far-te-ei conhecer todos os edifícios mais importantes.
Ficar ás deslumbrada

com o Templo e com os tesouros ali encerrados pela dedicação religiosa de

nossa raça.
Verás a torre dos romanos.
Meus conterrâneos que freqüentam a

Sinagoga dos cilícios querem oferecer -te valioso mimo.

Abigail extasiava-se, ouvindo-o discorrer.
Aquele moço impulsivo e rude a

olhos estranhos, mas afetuoso e sensível na intimidade, era justamente o seu

ideal, o homem esperado pela sua alma carinhosa.

—Ninguém poderá oferecer-me um presente mais precioso que o enviado

por Deus à minha existência, com o teu coração leal e generoso — murmurou

a jovem num franco sorriso.

— Ganhei muito mais — tornava o doutor de Tarso recebendo a jóia rara

do teu afeto, que enriquecerá toda a minha vida.
Às vezes, Abigail —

continuava com o entusiasmo própr io da juventude sonhadora —, no meu

idealismo de vitórias para Jerusalém sobre as grandes cidades do mundo,

penso chegar à velhice como um triun fador cheio de tradições de sabedoria e

de glória.
Desde que te encontrei, aumentou -se-me a fé no destino; consolidei

minhas esperanças, terei teu concurso na tarefa imensa que se desdobra a

meus olhos.
Os romanos outorgam aos triunfadores uma coroa triunfal de

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louros e rosas.
Se um dia Jerusalém me conceder a sua coroa triunfal, não a

cingirei em minha fronte, para só deixá-la a teus pés como tributo de amor

eterno e único.

Ainda hoje — prosseguiu Saulo confiante no fu turo —, Gamaliel notificoume

que vai afastar-se breve do Sinédrio, para que eu lhe suceda no prestigioso

cargo.
Aí tens, querida, nossa primeira v itória de maiores proporções.
Tão logo

Dalila volte de Tarso, poderemos mar car o dia jubiloso das núpcias.
Presumo

que, em te tendo sempre a meu lado, corrigirei meus impulsos, a tarefa ser -meá

mais leve, a existência mais fácil e mais ditosa.
O lar é u ma bênção.
E nós

teremos esse lar.

—Nunca me senti tão venturosa — exclamou a jovem, com lágrimas de

alegria.

Ele acariciou-lhe as mãos e, como desejava que ela compartilhasse dos

seus sentimentos mais íntimos, acres centou:

— Chegarás conosco à cidade, justamente na véspera da morte do

pregador revolucionário.
O ato, como de justiça, obedecerá ao cerimonial

estabelecido pelos nossos costumes e eu pretendo que assistas a ele em

minha companhia.

— Mas, por quê? — perguntou ela estremecendo ligeiramente.

— Porque lá encontraremos nossos amigos mais eminentes e desejo valer –

me da oportunidade para apresentar-te, indiretamente, a todos eles.

— Não haveria um meio de me poupares a esse es petáculo? — insistiu

timidamente.
— A morte de meu pai, no suplício, di ante da soldadesca brutal,

jamais me saiu da mente.

Saulo não dissimulou a contrariedade e respondeu:

— Porventura não estarás compreendendo? O caso de Estevão é muito

diferente.
Trata-se de um homem sem significação para nós outros, que se

arvorou em reformador sedicioso e insolente.
Sua personalidade re presenta, de

fato, a continuidade do desrespeito e do insulto à Lei de Moisés, iniciados em

movimento de vastas proporções por um carpinteiro alucinado, de Na zaré.

Achas, então, que se não deve punir o la drão que assalta uma residência? Não

merecerão castigo os que blasfemam no santuário do Eterno?

A jovem, compreendendo que desagradaria ao noivo se lhe demonstrasse

divergência de opinião, acrescentou:

— Vejo que tens muita razão.
Não devo discutir os teus conceitos, sábios e

justos.
Aliás, tenho mesmo a intenção de conquistar a amizade dos teus

amigos do Sinédrio, pois não perco a esperança de sua proteção para o caso

de Jeziel, logo que se ofereça uma oportu nidade para novas pesquisas na

Acaia.
Mas ouve, Saulo:

se permitires, irei quando a cerimônia estiver a findar.
Está dito?

Notando a boa-vontade conciliatória, o moço tar sense abriu o semblante

num belo sorriso de satisfação.

— Sim, ficamos de acordo.
Espero, porém, que assistas a tudo com

serenidade, segura de que eu só poderia tomar encargos justos e decisões

estimáveis no cumprimento do dever.
É lamentável que o prisioneiro se haja

mostrado recalcitrante a ponto de me compelir a providências extremas.
No

entanto, podes crer que tudo fiz por evitar o derradeiro recurso.

Empreguei todos os processos conciliatórios para dissuadi -lo de tão

perigosas ilusões, mas sua conduta foi de tal modo irritante que toda

transigência se tornou praticamente impossível.

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Trocaram-se ainda, por longo tempo, impressões af etuosas que a noite

amiga guardava, solicitamente, sob o manto luminoso das estrelas.
Eram juras

caridosas de um amor imortal, ante a bênção de Deus, tomada como objeto

mais alto de seus santificados pensamentos.
projetos e esperanças de futuro.

Era tarde quando Saulo se despediu, regressando a Jerusalém, de alma

feliz.

Daí a dias, Abigail, em companhia do noivo e da irmã, demandou a cidade,

cujo perfil interessante apresentava novos quadros para os seus olhos.
A casa

de Dalila, na mesma noite de sua cheg ada, encheu-se de amigos que iam levar

à escolhida de Saulo a homenagem da sua admiração; e a jovem de Corinto a

todos seduzia por seus dotes naturais, aliados à sólida e bem cuidada

formação de espírito.
Sua palavra, cheia de ternura, parecia distanciar -se

profundamente das futilidades que caracterizavam a mocidade da época.
Sabia

aplicar os mais delicados conceitos, no trato de todos os assuntos a que era

convocada, tirando formosas ilações da Lei e dos Escritos Sagrados, para

definir a posição da mulher em face dos mais íntimos deveres na vida familiar.

O doutor de Tarso sentia-se orgulhoso, ao notar a admi ração geral em torno de

sua personalidade vibrante e carinhosa.
Abigail, sintetizando o seu maior ideal,

enchia-lhe o coração de maravilhosas promess as.
A surpresa dos amigos, que

o felicitavam com o olhar, punha-lhe na alma ardente um júbilo novo.

O dia seguinte rompeu claro e lindo.
Ao sol rútilo de Jerusalém, Saulo

despediu-se da noiva amada, por atender, ainda cedo, aos trabalhos do

Sinédrio.

—Então, até logo, no Templo — disse carinhosamente.

—No Templo? — perguntou Dalila admirada, abra çando-se a Abigail.

—Sim — explicou solícito —, Abigail irá assistir à parte final da punição de

Estevão.

—Mas como? — interrogou ainda a jovem senho ra.
— Mulheres na

cerimônia?

—A lapidação se dará nas proximidades do altar dos holocaustos e não

nos átrios sagrados — esclareceu.
A meu ver, não haverá impedimento de

representações femininas, e ainda que isso constitua resolução de última hora,

a critério dos sacerdotes, a medida não poderá atingir decisão pessoal de

minha parte e eu desejo que Abigail participe do meu primeiro triunfo na defesa

dos nossos princípios soberanos.

Ambas sorriram, venturosas, observando -lhe as disposições excelentes.

—Em último recurso, Saulo — disse Abigail num gesto de tranqüilidade e

ternura —, não deixes de oferecer ao condenado uma derradeira oportunidade

para salvar-se da morte.

Após dois meses de cárcere, é possível que tenha refundido os

sentimentos mais profundos.
Pergunta -lhe, mais uma vez, se insiste em insultar

a Lei.
O moço tarsense enviou-lhe um olhar satisfeito e reconhecido, jubiloso por

verificar tanta grandeza de coração, e acentuou:

– Assim farei.

Nesse dia, desde muito cedo, o mais alto Tribunal de Israel apresentava

desusado movimento.
A execução do pregador do “Caminho” constituía objeto

de largos comentários.
Sobretudo os fariseus faziam questão de todos os

informes.
Ninguém queria perder o angustioso espe táculo.
A igreja modesta de

Simão Pedro, entretanto, não ousou aproximar -se para qualquer indagação.

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Saulo, como perseguidor declarado e usando das prerrogativas da investidura

legal, mandara anunciar que nenhum adepto do “Caminho” poderia assistir à

execução a efetivar-se num dos grandes pátios do santuário.
Longas filas de

soldados foram dispostas na grande praça, para dispersar quaisquer grupos de

mendigos que se formassem com intuitos desconhecidos e, desde as primeiras

horas da manhã, numerosos pedintes de Jerusalém eram corridos das

imediações a golpes de chanfalho.

Depois do meio-dia, autoridades e curiosos reuniam-se, ávidos de

sensação, no recinto do Sinédrio, em aba fado vozerio.
Aguardava-se o

sentenciado, que chegou, finalmente, cercado de escolta armada, como se fora

um malfeitor comum.

Estevão apresentava-se bastante desfigurado, embora o semblante não

traisse a peculiar serenidade.
O passo tardio, o cansaço extremo, as

equimoses das mãos e dos pés, patenteavam os pesados tormentos físicos

que lhe eram infligidos à sombra do calabo uço.
A barba crescida alterava-lhe o

aspecto fisionômico, todavia, os olhos tinham a mesma fulgurância de cristalina

bondade.

Em meio da curiosidade geral, Saulo de Tarso o encarou satisfeito.

Estevão pagaria, afinal, as incompreensões e os insultos.

No instante aprazado, o doutor inflexível fez a lei tura do libelo.
Antes,

porém, de pronunciar a sentença última, fiel ao que prometera, mandou que os

soldados empurrassem o condenado até à sua tribuna.
Enfrentan do o pregador

do Evangelho, sem qualquer expre ssão de piedade, interrogou com aspereza:

— Estarias disposto, agora, a jurar contra o car pinteiro Nazareno? Lembrate

que é a última oportunidade de conservares a vida.

Tais palavras, pronunciadas mecanicamente, soaram de modo estranho

aos ouvidos do moço de Corinto, que as recebeu, na alma sensível e generosa,

como novos dardos de ironia.

— Não insulteis o Salvador! — disse o arauto do Cristo, com desassombro.

— Nada no mundo me fará renunciar à sua tutela divina! Morrer por Jesus

significa uma glória, quando sabemos que ele se imolou na cruz pela

Humanidade inteira!

Mas, uma torrente de impropérios cortava -lhe a palavra.

— Basta! Apedrejemo-lo quanto antes! Morte ao imundo! Abaixo o

feiticeiro! Blasfemo!.
.
.
Caluniador!

A gritaria tomava proporções assu stadoras.
Alguns fariseus mais irritados,

burlando os guardas, aproximaram-se de Estevão tentando arrastá -lo sem

compaixão.
Entretanto, ao primeiro puxão na gola rota, um pedaço da túnica

rafada ficava-lhes nas mãos.
Foi necessário a intervenção da força armada

para que o moço de Corinto não fosse estraçalhado, ali mesmo, pela multidão

furiosa e delirante.
Saulo, em altas vozes, ordenou a intervenção dos soldados.

Queria a execução do discípulo do Evangelho, mas, com todo o cerimonial

previsto –

Estevão tinha agora o rosto enrubescido, envergo nhado.
Seminu, foi

auxiliado por um legionário romano a recompor os sobejos da veste em

frangalhos, acima dos rins, para não ficar inteiramente nu.
Com a mão trêmula,

pelos maus tratos recebidos, procurava limpar a sa liva que os mais exaltados

lhe haviam esputado em pleno rosto – Forte pancada no ombro causava -lhe

intensa dor no braço todo.
Compreendeu que lhe chegavam os últimos

instantes de vida.
A humilhação doía -lhe fundo.
Mas recordou as descrições de

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Simão a respeito de Jesus, no derradeiro transe.
Em frente de Herodes

Antipas, o Cristo sofrera dos israelitas idênticas ironias.
Fora açoitado,

ridicularizado, ferido.
Quase nu, suportara todos os agravos sem uma queixa,

sem uma expressão menos digna.
Ele que amara o s infelizes, que trabalhara

por fundar uma doutrina de concórdia e de amor para todos os homens, que

abençoara os mais desgraçados e os acolhera com carinho, recebera o

galardão da cruz em suplícios imensuráveis.
E Estevão pensou: — “Quem sou

eu e quem era o Cristo ?“ Essa íntima interrogação propiciava -lhe certo

consolo.
O Príncipe da Paz fora arrastado pelas ruas de Jerusalém, sob o

escárnio das maiores injúrias, e era o Messias esperado, o Ungido de Deus!

Por que, sendo ele homem falível, portador de num erosas fraquezas,

haveria de hesitar no momento do testemunho? E, com o pranto a escorrer -Lhe

no rosto lacerado, escutava a voz cariciosa do Mestre no coração:

“Todo aquele que desejar participar do meu reino, negue -se a si mesmo,

tome sua cruz e siga os meus passos”.
Era preciso negar -se para aceitar o

sacrifício proveitoso.
Ao fim de todos os martírios, deveria encontrar o amor

glorioso de Jesus, com a beleza da sua ternura imortal.
O pregador humilhado

e ferido recordou o passado de trabalhos e esperança s.

Parecia-lhe rever a infância saudosa, na qual o zelo materno lhe incutira os

fundamentos da fé confortadora; depois, as nobres aspirações da mocidade, a

dedicação paterna, o amor da irmãzinha que as circunstâncias do destino lhe

haviam arrebatado.
Ao pensar em Abigail, experimentou certa angústia no

coração.
Agora, que deveria enfrentar a morte, desejava revê -la para as

últimas recomendações.
Relembrou a derradeira noite em que haviam

permutado tantas impressões de ternura, tantas promessas fraternai s, na

lôbrega prisão de Corinto.

Apesar dos movimentos reno vadores da fé, de cujos trabalhos

compartilhava ativamente em Jerusalém, jamais pudera esquecer o dever de

procurá-la, fosse onde fosse.
Enquanto em derredor se multiplicavam

impropérios no turbilhão de gritos e ameaças revoltantes, o sentenciado

chorava com as suas recordações.
Socorrendo-se das promessas do Cristo no

Evangelho, experimentava brando alívio.
A idéia de que a irmãzinha ficaria no

mundo, entregue a Jesus, suavi zava-lhe as angústias do coração.

Mal não saíra de suas dolorosas reminiscências, ouviu a voz imperiosa de

Saulo dirigindo-se aos guardas:

— Algemai-o novamente, tudo está consumado, si gamos para o átrio.

O discípulo de Simão Pedro, estendendo os pulsos para receber as

algemas, sofreu pancadas tão fortes de um soldado inescrupuloso, que dos

pulsos feridos começou a jorrar muito sangue.

Estevão, porém, não fez o menor gesto de resis tência.
De quando em

quando, levantava os olhos como se implorasse os recursos do Céu para os

seus minutos supremos.
Não obstante os apupos e as chagas que o

dilaceravam, experimentava uma paz espiritual desconhecida.
Todos aqueles

sofrimentos do cerimonial eram pelo Cristo.
Aquela hora era a sua

oportunidade divina.
O Mestre de Nazaré havia convo cado o seu coração fiel

ao público testemunho dos valores espirituais da sua gloriosa doutrina.

Confiante, raciocinava: — “Se o Messias aceitara a morte infamante do

Calvário para salvar todos os homens, não seria uma honra dar a vida por Ele?

“Seu coração, sempre ávido de dar testemunho ao Senhor, desde que lhe

conhecera o Evangelho de reden ção.
não deveria rejubilar-se com o ensejo de

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oferecer-lhe a própria vida? Entretanto, a ordem de caminhar arran cou-o dos

mais elevados pensamentos.

O generoso pregador do “Caminho” hesitava nos passos cambaleantes,

mas tinha sereno e firme o olhar, revelando desassombro nos derradeiros

lances do testemunho.

Naquelas primeiras horas da tarde, o sol de Jeru salém era um braseiro

ardente.
Não obstante o calor insuportá vel, a massa deslocou-se com profundo

interesse.
Tratava-se do primeiro processo concernente às atividades do

“Caminho”, após a morte do seu funda dor.
Destacando-se de todas as

correntes judaicas ali presentes, em penhor de prestígio à Lei de Moisés, os

fariseus faziam grande alarde do feito.
Ladeando o condenado, faziam questão

de atirar-lhe em rosto as mais pesadas injúrias.

Ele, porém, embora evidenciasse profunda tristeza, caminhava seminu,

sereno, imperturbável.

A sala de reuniões do Sinédrio não dis tava muito do átrio do Templo, onde

se realizaria a macabra cerimônia.
Apenas alguns metros e a caminhada

terminava, justamente no local onde se erguia o enorme altar dos holocaustos.

Tudo estava preparado a caráter, como Saulo dei xara perceber em seus

propósitos.

Ao fundo do pátio espaçoso, Estevão foi atado a um tronco, para que o

apedrejamento se efetuasse na hora precisa.

Os executores seriam os representantes das diver sas sinagogas da

cidade, de vez que era função honrosa atribuida a quantos estives sem em

condições de operar na defesa de Moisés e de seus princípios.
Cada sinagoga

indicara o seu delegado e, ao iniciar a cerimônia, como chefe do movimento,

Saulo recebia um por um, junto da vítima, guardando nas mãos, de acordo com

a pragmática, os mantos brilhantes, enfeitados de púrpura.

Mais uma ordem do moço tarsense e a execução começou entre

gargalhadas.
Cada verdugo mirava friamente o ponto preferido, esforçando -se

para tirar maior partido.

Risos gerais seguiam-se a cada golpe.

Poupemos-lhe a cabeça — dizia um dos mais exaltados —, a fim de que o

espetáculo não perca a intensidade e o interesse.

Cada expressão do judaísmo acompanhava o ver dugo indicado pelos

maiorais da sinagoga, com atenção e entusiasmo, aos berros de “Morra o

traidor! o feiticeiro!.
.

— Fere no coração, em nome dos cilícios! — exclamava alguém, do meio

da turba.

— Separa-lhe a perna pelos idumeus! — secundava outra voz impudente.

Mais ou menos afastado da turba, seguindo de perto os movimentos do

condenado, Saulo de Tarso ap reciava a vibração popular, satisfeito e

confortado.
De qualquer maneira, a morte do pregador do Cristo representava

o seu primeiro grande triunfo na conquista das atenções de Jerusalém e de

suas prestigiosas corporações polí ticas.
Naquela hora em que focalizava tantas

aclamações do povo de sua raça, orgulhava -se com a decisão que o levara a

perseguir o “Caminho”, sem consideração e sem tréguas.
Aquela tranqüilidade

de Estevão, no entanto, não deixava de o impressionar bem no imo do coração

voluntarioso e inflexível.
Onde poderia ele haurir tal serenidade? Sob as pedras

que o alvejavam.
aqueles olhos encaravam os algozes sem pestanejar, sem

revelar temor nem turbação!

94

De fato, amarrado de joelhos ao tronco do suplício, o moço de Corinto

guardava impressionante característica de paz nos olhos translúcidos, de onde

as lágrimas silenciosas corriam abundantes, O peito descoberto era uma chaga

sangrenta.
As vestes esfrangalhadas cola vam-se ao corpo, empastadas de

suor e sangue.

O mártir do “Caminho” sentia-se amparado por forças poderosas e

intangíveis.
A cada novo golpe, sentia recrudescer os padecimentos infinitos

que lhe azorragavam o corpo macerado, mas, no íntimo, guardava a im pressão

de uma lenidade sublime.
O coração batia des compassadamente.
O tórax

estava coberto de feridas profundas, as costelas fraturadas.

Nesta hora suprema, recordava os mínimos laços de fé que o prendiam a

uma vida mais alta.
Lembrou todas as orações prediletas da infância.
Fazia o

possível por fixar na retina o quadro da morte do pai supliciado e

incompreendido.
Íntimamente, repetia o Salmo 23º de David, qual o fazia junto

da irmã, nas situações que pareciam insuperáveis.
“O Senhor é meu pastor.

Nada me faltará.
.
.
” As expressões dos Escritos Sagra dos, como as promessas

do Cristo no Evangelho, estavam-lhe no âmago do coração.
O corpo

quebrantava-se no tormento, mas o espírito estava tranqüilo e espe rançoso.

Agora, tinha a impressão de que duas mãos cari ciosas passavam de leve

sobre as chagas doloridas, proporcionando-lhe branda sensação de alívio.
Sem

qualquer receio, percebeu que lhe havia chegado o suor da agonia.

Dedicados amigos, do plano espiritual, rodeavam o mártir nos seus minutos

supremos.

No auge das dores físicas, como se houvesse transposto infinitos abismos

de percepção, o moço de Corinto notou que alguma coisa se lhe havia rasgado

na alma ansiosa.
Seus olhos pareciam mergulhar em quadros gloriosos de

outra vida.
A legião de emissários de Jesus, que o cercava carinhosa mente,

figurou-se-lhe a corte celestial.
No caminho de luz desdobrado à sua frente,

reconheceu que alguém se aproximava abrindo -lhe os braços generosos.
Pelas

descrições que ouvira de Pedro, percebeu que contemplava o próprio Mestre

em toda a resplendência de suas glórias divinas.
Saulo observou que os olhos

do condenado estavam estáticos e fulgurantes.
Foi quando o herói cristão,

movendo os lábios, exclamou em alta voz:

— Eis que vejo os céus abertos e o Cristo ressus citado na grandeza de

Deus!.
.
.

Viram, então, que duas mulheres jovens aproxima vam-se do perseguidor

com gestos íntimos.
Dalila entregou Abigail ao irmão, despedindo -se logo para

atender ao chamado de outra amiga.
A noiva terna cingia uma túnica à moda

grega, que mais lhe realçava o formoso rosto.
Fosse pela dolorosa cena em

curso, ou pela presença da mulher amada, percebia -se que Saulo estava um

tanto perplexo e sensibilizado.
Dir -se-ia que a coragem indomável de Estevão o

levara a considerar a tranqüilidade desconhecida que deveria reinar no espírito

do mártir.

Em face da gritaria que a rodeava e notando a miserável situação da

vítima, a jovem mal pôde conter um grito de espanto.
Que homem era aquele,

atado ao tronco do suplício? Aquele peito arfante, empastado de sangue,

aqueles cabelos, aquele rosto pálido que a barba crescida des figurava, não

seriam de seu irmão? Ah! como falar das ansiedades imensas na surpresa im –

prevista de um minuto? Abigail tremia.
Seus olhos aflitos acompanhavam os

menores movimentos do herói, que parecia indiferente, no êxtase que o

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absorvia.
Embalde Saulo chamava-lhe a atenção, discretamente, de modo a

poupá-la de penosas impressões.
A moça parecia nada ver além do

sentenciado a esvair-se no sangue do martírio.
Lembrava -se agora.
.
.

Em se afastando do calabouço, depois da morte do pai, foi assim mesmo

que deixara Jeziel na posição do suplício.
O tronco execrável, as algemas

impiedosas e o pobrezinho de joelhos! Tinha ímpetos de atirar -se à frente dos

algozes, esclarecer a situação, saber a identidade daquele homem.

Nesse instante, ignorando-se alvo de tão singular atenção, o pregador do

“Caminho” saiu de sua impres sionante imobilidade.
Vendo que Jesus

contemplava, melancolicamente, a figura do doutor de Tarso, como a lamentar

seus condenáveis desvios, o discípulo de Simão experimentou pelo verdugo

sincera amizade no coração.
Ele conhecia o Cristo e Saulo não.

Assomado de fraternidade real e querendo defender o perseguidor,

exclamou de modo impressionante:

—Senhor, não lhe imputes este pecado!.
.
.

Isso dito, voltou os olhos para fixá -los no verdugo, amorosamente.
Eis,

porém, que divisou junto dele a figura da irmã, trajada como nos dias de júbilo,

na casa paterna.
Era ela, a irmãzinha amada, por cujo afeto tantas vezes lhe

palpitara o coração, de saudade e de esperança.
Como explicar sua presença?

Quem sabe havia sido também levada ao reino do Mestre e regres sava com

ele, em espírito, para trazer -lhe as boas-vindas, de um mundo melhor? Quis

bradar sua alegria infinita, atraí -la, ouvir-lhe a voz nos cânticos de David,

morrer embalado pelo seu carinho; mas a g arganta já não timbrava.
A emoção

dominara-o na hora extrema.
Sentiu que o Mestre de Nazaré acariciava -lhe a

fronte, onde a última pedrada abrira uma flor de sangue.
Ouvia, muito longe,

vozes argentinas que cantavam hinos de amor sobre os gloriosos motivo s do

Sermão da Montanha.
Incapaz de resistir por mais tempo ao suplício, o

discípulo do Evangelho sentia-se desfalecer.

Escutando as expressões do condenado e recebendo -lhe o olhar

fulgurante e límpido, Abigail não pôde dis simular a angustiosa surpresa.

—Saulo! Saulo!.
.
.
É meu irmão — exclamou aterradamente.

—Que dizes? — gaguejou baixinho o doutor de Tarso arregalando os

olhos.
— Não pode ser! Enlouqueceste?

—Não, não, é ele; é ele! — repetia tomada de extrema palidez.

—É Jeziel — insistia Abigail assombrada —, querido; concede-me um

minuto, deixa-me falar ao moribundo apenas um minuto.

—Impossível! — replicou o moço, contrafeito.

—Saulo, pela Lei de Moisés, pelo amor de nossos pais, atende —

exclamava torcendo as mãos.

O ex-discípulo de Gamaliel não acreditava na pos sibilidade de semelhante

coincidência.

Além do mais, havia a diferença do nome.
Convinha esclarecer esse

ponto, antes de tudo.

Certo, a falsa impressão de Abi gail se desfaria ao primeiro contacto direto

com o agonizante.
Sua índole, sensível e afetuosa, justificava o que a seu ver

era um absurdo.

Conjugando essas reflexões de um segundo, falou à noiva, com

austeridade:

— Irei contigo identificar o moribundo, mas, até que o possamos fazer, cala

as tuas impressões.
.
.
Nem uma palavra, ouviste? iË necessário não esquecer a

96

respeitabilidade do local em que te encontras!

Logo após, chamava um funcionário de alta cate goria, secamente:

— Manda levar o cadáver para o gabinete dos sa cerdotes.

— Senhor — respondeu o outro respeitoso —, o condenado ainda não está

morto.


Não importa, vai assim mesmo, pois arrancar -lhe-ei a confissão do

arrependimento na hora extrema.

A determinação foi cumprida sem mais demora, enquanto Saulo mandava

servir, de modo geral, aos amigos e admiradores, várias ânforas de vinho

delicioso, por comemorarem o seu primeiro triunfo.
Depois, cenho carregado,

apreensivo, esgueirou-se quase sorrateiramente até à sala reservada aos

sacerdotes de Jerusalém, em companhia da noiva.

Atravessando os grupos que o saudavam com fre néticas aclamações, o

moço tarsense parecia alheado de si mesmo.
Conduzia Abigail pelo braço,

delicadamente, mas não lhe dirigia palavra.
A surpresa emudecera -o.
E se

Estevão fosse, de fato, aquele Jeziel que aguarda vam com tamanha

ansiedade? Absorvidos em angustio sas reflexões, penetraram na câmara

solitária.
O jovem doutor ordenou a retirada dos auxiliares, fechou cuida –

dosamente a porta.

Abigail aproximou-se do irmão ensangüentado, com infinita ternura.
E,

como se sentisse chamado à vida por uma força poderosa e invencível, ambos

notaram que a vítima movia a cabeça sangrenta.
Evidenciando o penoso

esforço da derradeira agonia, Estevão murmurou:

—Abigail!.
.
.

Aquela voz era quase um sopro, mas o olhar estava calmo, límp ido.

Ouvindo-lhe a expressão vacilante e arrastada, o jovem tarsense recuou

tomado de espanto.
Que significava tudo aquilo? Não poderia duvidar.
A vítima

de sua perseguição implacável era o irmão bem -amado da mulher escolhida.

Que mecanismo do destino engendrara semelhante situação, que lhe havia de

amargurar toda a vida? Onde estava Deus, que não o inspi rara no dédalo de

circunstâncias que o levaram até àquele irremediável, cruel desfecho? Sentiu –

se possuído de um pesar sem limites.
Ele, que elegera Abig ail o anjo tutelar da

existência, seria obrigado a renunciar a esse amor para sempre.
O orgulho de

homem não lhe permitiria desposar a irmã do suposto inimigo, confes sado e

julgado reles criminoso.
Aturdido, deixou -se ali ficar, como se força incoercível

o chumbasse ao solo, transformando -o em objeto de insuportáveis ironias.

—Jeziel! — exclamou Abigail osculando e regando de lágrimas a fronte do

moribundo — como te vejo eu!.
.
.
Parece que o suplício te durou desde o dia em

que nos separamos!.
.
.
E soluçava .
.
.

—Estou bem.
.
.
— disse o discípulo de Jesus, fazendo o possível por mover

a destra quebrada e deixando perceber o desejo de acariciar -lhe os cabelos,

como nos dias da meninice e da primeira juventude.
— Não chores!.
.
.
Eu estou

com o Cristo!.
.
.

—Quem é o Cristo? — murmurou a jovem — Por que te chamam Estevão?

Como te modificaram assim?

—Jesus.
.
.
é o nosso Salvador.
.
.
— explicava o agonizante, no propósito de

não perder os minutos que se escoavam céleres.
— E, agora, chamam-me

Estevão.
.
.
porque um romano generoso me libertou.
.
.
mas pediu.
.
.
absoluto

segredo.
Perdoa-me.
.
.
Foi por gratidão que obedeci ao conselho.
Ninguém será

reconhecido a Deus se não mostrar agradecimento aos homens.
.
.

97

Vendo que a irmã prosseguia em soluços, continuou:

—Sei que vou morrer.
.
.
mas a alma é imortal.
.
Sinto deixar -te.
.
.
quando mal

torno a ver-te, mas hei de ajudar-te do lugar em que estiver.

— Ouve, Jeziel — exclamou a irmã num desabafo —, que te ensinou

esse Jesus para te levar a um fim tão doloroso? Quem assim abandona u m

servo leal, não será antes um senhor cruel?

O moribundo pareceu admoestá-la com o olhar.

—Não penses dessa maneira — prosseguiu com dificuldade.
— Jesus é

justo e misericordioso.
.
.
prometeu estar conosco até à consumação dos

séculos.
.
.
mais tarde compreenderás; a mim, ensinou-me amar os próprios

verdugos.
.
.

Ela abraçava-o, carinhosa, desfeita em lágrimas abundantes.
Depois de

uma pausa em que a vítima se revelava nos derradeiros instantes da vida

material, viu-se que Estevão se agitava em esforços supremos.

—Com quem te deixarei?

—Este é meu noivo — esclareceu a jovem apontando o moço de Tarso,

que parecia petrificado.

O moribundo contemplou-o sem ódio e acentuou:

—Cristo os abençoe.
.
.
Não tenho no teu noivo um inimigo, tenho um

irmão.
.
.
Saulo deve ser bom e generoso; defendeu Moisés até ao fim.
.
.
Quando

conhecer a Jesus, servi-lo-á com o mesmo fervor.
.
.
Sê para ele a companheira

amorosa e fiel.
.
.

Mas a voz do pregador do “Caminho” estava agora rouca e quase

imperceptível.
Nas vascas da morte, con templava Abigail fraternalmente

enternecido.

Ouvindo-lhe as últimas frases, o doutor de Tarso fizera -se lívido.
Queria ser

odiado, maldito.
A compaixão de Estevão, fruto de uma paz que ele, Saulo,

jamais conhecera no fastígio das posições mundanas, impressio nava-o

fundamente.
Entretanto, sem saber por quê, a resignação e a doçura do

agonizante assaltavam-lhe o coração enrijecido.
Trabalhava, porém,

intimamente, para não se comover com a cena dolorosa.
Não se dobraria por

uma questão de sentimentalismo.
Abomi naria aquele Cristo, que parecia

requisitá-lo em toda parte, a ponto de colocar -se entre ele e a mulher adorada.

O cérebro atormentado do futuro rabino suportava a pressão de mil fogos.

Desprezara o orgulho de família e elegera Abigail para companheira de lutas,

embora lhe não conhecesse os ascendentes familiares.
Amava -a pelos laços

da alma, descobrira no seu delicado coração feminino tudo quanto havia

sonhado nas cogitações de ordem temporal.
Ela sintetizava as suas

esperanças de moço; era o penhor do s eu destino, representava a resposta de

Deus aos apelos da sua juventude idealista.
Agora, abrira -se entre ambos um

abismo profundo.
Irmã de Estevão! Ninguém ousara afrontar -lhe a autoridade

na vida, a não ser aquele ardoroso pregador do “Caminho”, cujas id éias jamais

se poderiam casar com as suas.
Detestava aquele rapaz apaixonado pelo ideal

exótico de um carpinteiro, e tinha culminado nos propósitos de vin gança.
Se

desposasse Abigail, jamais seriam felizes.
Ele seria o verdugo, ela a vítima.

Além disso, sua família, aferrada ao rigorismo das velhas tradições, não

poderia tolerar a união, depois de conhecidas as circunstâncias.

Levou as mãos ao peito, dominado por angustioso desalento.

Em pranto, Abigail acompanhava a agonia dolorosa do irmão, cujos

derradeiros minutos se escoavam lentamente.
Penosa emoção apossara -se de

98

todas as suas energias.
Na dor que a dilacerava nas fibras mais sensíveis,

parecia não ver o noivo que lhe seguia os me nores movimentos, entre surpreso

e estarrecido.
Com muito cuidado, a jovem sustinha a fronte do moribundo,

depois de haver sentado para conchegá -lo carinhosamente.

Observando que o irmão lhe lançava o último olhar, exclamou angustiada:

— Jeziel, não te vás.
.
.
Fica conosco! Nunca mais nos separaremos!.
.
.

Ele, quase a expirar, ciciava:

— A morte não separa.
.
.
os que se amam.
.
.

E, como se houvera lembrado algo de muito grato ao coração, arregalou os

olhos desmesuradamente.
numa expressão de imenso júbilo:

— Como no Salmo.
.
.
de David.
.
.
— dizia arrastadamente — podemos.
.
.

dizer.
.
.
que o amor.
.
e a misericórdia.
.
.
seguiram.
.
.
todos os dias.
.
.
de nossa

vida.
.
.
(1)

A jovem escutava-lhe as derradeiras palavras, como vidíssima.
Enxugavalhe

o suor sanguinolento do rosto, que se iluminava de uma serenidade

superior.

— Abigail.
.
.
— murmurava ainda como num sopro —, vou-me em paz.
.
.

Quisera ouvir-te na prece.
.
.
dos aflitos e agonizantes.
.
.

Ela recordou os últimos momentos do suplício do genitor, no dia

inesquecível da separação nos calabouços de Corinto.
De relance,

compreendeu que, ali, outras forças se encontravam em jogo.
Não mais Licínio

Minúcio e os sequazes cruéis, mas o próprio noivo transfor mado em verdugo,

por um terrível engano.
Afagou com mais carinho a cabeça sangrenta.

Conchegou o moribundo ao coração como se fosse uma adorável criança.

Então, embora rígido e inquebrantável na aparência, Saulo de Tarso observou,

mais nitidamente, o quadro que nunca mais lhe sairia da imaginação.

Guardando o moribundo no regaço fraterno, a jovem elevou o olhar para o alto,

mostrando as lágrimas que lhe caíam pungentes.
Não cantava, mas a oração

lhe saía dos lábios como a súplica natural do seu espírito a um pai amoroso

que estivesse invisível:

Senhor Deus, pai dos que chorara,

Dos tristes, dos oprimidos,

Fortaleza dos vencidos,

Consolo de toda a dor,

Embora a miséria amarga

Dos prantos de nosso erro,

Deste mundo de desterro,

Clamamos por vosso amor!

Nas aflições do caminho,

Na noite mais tormentosa,

Vossa fonte generosa

É o bem que não secará.
.
.

Sois, em tudo, a luz eterna

Da alegria e da bonança

Nossa porta de esperança

Que nunca se fechará.

Quando tudo nos despreza

99

No mundo da iniqüidade

Quando vem a tempestade

Sobre as flores da ilusão!

Ó Pai, sois a luz divina,

Ocântico da certeza,

Vencendo toda aspereza,

Vencendo toda aflição.

No dia da nossa morte,

No abandono ou no tormento,

Trazei-nos o esquecimento

Da sombra, da dor, do mal.
.
.

Que nos últimos instantes,

Sintamos a luz da vida

Renovada e redimida

Na paz ditosa e imortal.

(1) Salmo 23º, de David.

Terminada a prece, Abigail tinha o rosto orvalhado de pranto.
Sob a carícia

suave de suas mãos, Jeziel aquietara -se.
Palidez de neve caracterizava -lhe a

face cadavérica, aliada à profunda serenidade fisionômica.
Saulo compreendeu

que ele estava morto.
E enquanto a jovem de Corinto se l evantava,

cuidadosamente, como se o cadáver do irmão requisitasse toda a ternura do

seu espírito bondoso, o moço tarsense aproximou -se de cenho carregado e

falou com austeridade:

— Abigail, tudo está consumado e tudo terminou, também, entre nós.

A pobre criatura voltou-se com assombro.
Então não lhe bastavam os

golpes recebidos? Seria possível que o noivo amado não tivesse uma palavra

de conciliação generosa naquela hora difícil da sua vida? Receberia a

humilhação mais fria com a morte de Jeziel e ainda p or cima o abandono?

Consternada por tudo que viera encontrar em Jerusalém, entendeu que

precisava utilizar todas as energias, para não cair nas provas ríspidas que lhe

haviam sido reservadas.
E viu logo que, no orgulho de Saulo, não encontraria

consolação.
Num momento, chegou às mais latas conclusões, quanto ao papel

que lhe competia em tão embaraçosas conjunturas.
Sem recorrer à

sensibilidade feminina, cobrou ânimo e falou com dignidade e nobreza:

—Tudo terminado entre nós, por quê? O sofrimento não dev eria escorraçar

o amor sincero.

—Não me compreendes? — replicou o orgulhoso rapaz.
.
.
— Nossa união

tornou-se inexeqüível.
Não poderei desposar a irmã de um inimigo de maldita

memória, para mim.
Fui infeliz escolhendo esta ocasião para tua visita a

Jerusalém.
Sinto-me envergonhado não só diante da mulher com quem nunca

mais poderei unir-me pelo matrimônio, como perante os parentes e amigos,

pela situação amarga que as circunstâncias interpuseram no meu caminho.
.
.

Abigail estava pálida e penosamente surpree ndida.

—Saulo.
.
.
Saulo.
.
.
não te envergonhes perante meu coração.
Jeziel morreu

estimando-te.

Seu cadáver nos escuta — acentuava com doloroso acento.
— Não posso

obrigar-te a desposar-me, mas não transformes nossa afeição em ódio surdo.
.
.

100

Sê meu amigo!.
.
.
Ser-te-ei eternamente grata pelos meses de ventura que me

deste.
Voltarei amanhã para casa de Ruth.
.
.

Não te envergonharás de mim! A ninguém direi que Jeziel era meu irmão,

nem mesmo a Zacarias! Não quero que algum amigo nosso te considere um

carrasco.

Observando-a naquela generosidade humilde, o moço de Tarso teve ímpetos

de estreitá-la ao coração, como se o fizera a uma criança.
Quis avançar,

apertá-la contra o peito, cobrir-lhe de beijos a fronte bondosa e inocente.

Súbito, porém, vieram-lhe à mente os seus títulos e atribuições; via Jerusalém

revoltada, tisnando-lhe a reputação de amargas ironias.
O futuro rabino não

poderia ser vencido; o doutor da Lei rígida, e implacável, devia sufocar o

homem para sempre.

Mostrando-se impassível, replicou em tom áspero:

—Aceito o teu silêncio em torno das lamentáveis ocorrências deste dia;

voltarás amanhã para casa de Ruth, mas não deves esperar a continuação das

minhas visitas, nem mesmo por cortesia injustificável, porque, na sinceridade

dos de nossa raça, os que não são amigos são inimigos.

A irmã de Jeziel recebia aquelas explicações com espanto profundo.

—Então, abandonas-me inteiramente, assim? —perguntou entre lágrimas.

—Não estás desamparada — murmurou inflexivelmente —, tens os teus

amigos da estrada de Jope.

—Mas, afinal, por que odiaste tanto a meu irmão? Ele foi sempre

bondoso.
.
Em Corinto nunca ofendeu a ninguém.

Era pregador do malfadado carpinteiro de Na zaré — esclareceu,

contrafeito e ríspido —; além disso, humilhou-se diante da cidade inteira.

Abigail, compelida pela severidade das respostas, calou -se inteiramente.

Que poder teria o Nazareno para atrair tantas dedicações e provocar tantos

ódios? Até ali, não se interessara pela figura do famoso carpinteiro, que

morrera na cruz, como malfeitor; mas o irmão lhe dissera ter encontrado nele o

Messias.
Para seduzir um caráter cristalino, como Jeziel, o Cristo não poderia

ser um homem vulgar.
Lembrava o passado do irmão para considerar que, no

caso da rebeldia paterna, conseguira manter -se acima dos próprios laços do

sangue para admoestar o genitor, amorosamente.
Se tivera forças para

analisar os atos paternos com o preciso discernimento, era preciso que aquele

Jesus fosse muito grande, para que a ele se consagrasse, oferecendo -lhe a

própria vida ao recobrar a liberdade.
Jeziel, a seu ver, não se enganaria.

Conhecendo-lhe a índole, do berço, não era possível que se deixasse iludir em

suas convicções religiosas.
Sentia-se, agora, atraida para aquele Jesus

desconhecido e odiado injustamente.
Ele ensinara o irmão a bem-querer os

próprios verdugos.
Que lhe não reser varia, pois, ao seu coração sedento de

carinho e de paz? As últimas palavras de Jeziel exerciam sobre ela uma

influência profunda.

Abismada em profundas cogitações, notou que Saulo abrira a port a,

chamando alguns auxiliares, que se pre cipitaram por cumprir-lhe as ordens.

Em poucos minutos os despojos de Estevão eram removidos, enquanto amigos

numerosos cercavam o jovem par, expansivamente loquazes e satisfeitos.

— Que é isto — perguntou um deles a Abigail —, ao notar-lhe a túnica

manchada de sangue.

— O sentenciado era israelita — atalhou o moço tarsense, desejoso de

antecipar explicações — e, como tal, amparamo-lo na hora extrema.

101

Um olhar mais severo deu a entender à jovem quanto devia conter as

emoções próprias, longe e acima das ocorrências verídicas.

Daí a minutos, o velho Gamaliel chegava e solicitava ao ex -discípulo alguns

momentos de atenção, em par ticular.

– Saulo disse bondoso —, espero partir na semana próxima para além de

Damasco.
Vou descansar junto de meu irmão e aproveitar a noite da velhice

para meditar e repousar o espírito.
Já fiz a necessária noti ficação no Sinédrio e

no Templo, e acredito que, dentro de poucos dias, serás efetivamente provido

no meu cargo.

O interpelado fez um ligeiro gesto de agradecimento, cuja frieza mal

disfarçava o abatimento que lhe ia na alma.

— Entretanto — prosseguia o generoso rabino, so licitamente tenho um

último pedido a fazer-te: É que tenho Simão Pedro em conta de um amigo.

Esta confissão poderá escandallzarte mas, sinto-me bem ao fazê-la.
Acabo de

receber sua visita, pedindo a minha interferência para que o cadáver da vítima

de hoje seja entregue à igreja do “Caminho”, onde será sepultado com muito

amor.
Sou o intermediário do pedido e espero n ão me recuses o obséquio.

—Dizeis “vítima”? — perguntou Saulo admirado.

— A existência de uma vítima pressupõe um algoz e éu não sou verdugo

de ninguém.
Defendi a Lei até ao fim.

Gamaliel compreendeu a objeção e replicou:

—Não vejas laivo de recriminação nas minhas palavras.
Nem a hora, nem

o local, tampouco, se prestam a discussões.
Mas, para não faltar à sinceridade

que em mim sempre conheceste, devo dizer -te, rapidamente, que venho

chegando a profundas conclusões a respeito do chamado carpintei ro de

Nazaré.
Tenho refletido maduramente na sua obra entre nós; todavia, estou

velho e alquebrado para iniciar qualquer movimento renova dor no seio do

judaísmo.
Em nossa existência chega uma fase em que não nos é lícito intervir

nos problemas coletivos; mas, em qualquer idade, podemos e devemos operar

a iluminação ou o aprimoramento de nós mesmos.
É o que vou fazer.
O

deserto, na majestade silenciosa do insulamento, constituiu sempre a sedução

dos nossos antepassados.
Sairei de Jerusalém, fugirei do escâ ndalo que as

minhas novas idéias e atitudes certo provocariam; buscarei a solidão para

encontrar a verdade.

Saulo de Tarso estava estupefato.
Também Gama liel parecia sofrer a

influenciação de estranhos sortilé gios! Sem dúvida, os homens do “Caminho” o

enfeitiçaram, desbaratando-lhe as últimas energias.
.
.
o velho mestre acabara

capitulando, numa atitude de conseqüên cias imprevisíveis! Ia impugnar,

discutir, chamá-lo à realidade, quando o venerando mentor da mocidade fari –

saica, deixando entrever que perc ebia as vibrações antagônicas do seu espírito

ardoroso, sentenciou:

— Já sei o teor da tua resposta íntima.
Julgas -me fraco, vencido, e cada

qual analisa como pode; mas não me leves ao enfaro das controvérsias.
Aqui

estou somente para solicitar-te um favor e espero não mo negues.
Poderei

providenciar para remover os despojos de Estevão imediatamente?

Via-se que o moço de Tarso hesitava, premido por singulares

pensamentos.

— Concede, Saulo!.
.
.
Ë o último obséquio ao velho amigo!.
.
.

— Concedo — disse afinal.

Gamaliel despediu-se com um gesto de sincero reco nhecimento.

102

Novamente rodeado de muitos amigos, que procura vam alegrá-lo, o jovem

doutor da Lei revelava-se muito alheio de si mesmo.
Debalde erguia a taça das

saudações.
O olhar vago, cismativo, demonst rava o profundo alheamento em

que se engolfara.
Os inesperados acontecimentos acarretaram-lhe à mente um

turbilhão de pensamentos angustiados.
Queria pensar, desejava recolher -se

em si mesmo para o exame necessário das novas perspec tivas do seu destino,

mas, até ao pôr do sol, foi obrigado a manter -se no quadro das convenções

sociais, atendendo aos amigos até ao fim.

Alegando necessidade de trocar as vestes ensangüen tadas, Abigail

retirara-se logo após a entrevista de Gamaliel.

Na casa de Dalila, entretanto, a pobrezinha foi acometida de febre alta,

penalizando e alarmando a todos os que lá se encontravam.

Ao cair da noite, Saulo regressava ao lar da irmã, onde lhe comunicaram o

estado da enferma.

Resolvido a imprimir novos rumos à sua vida, pro curou sufocar a própria

emoção para encarar os fatos com a naturalidade possivel.

Em lágrimas, a jovem de Corinto pediu que a re conduzissem à casa de

Zacarias, receando a marcha da enfermidade.
Em vão, Dalila e os parentes

procuraram intervir com recursos afet uosos.
A súplica de Abigail ao espírito

enérgico de Saulo foi exposta comovedora -mente e, dentro da severidade que

lhe caracterizava as atitudes, o ex -discípulo de Gamaliel tomou todas as pro –

vidências para satisfazê-la.

E à noitinha, com muito cuidado, mo desta carreta saía de Jerusalém pela

estrada de Jope.

Ruth recebeu a jovem nos braços, emocionada e aflita.
Ela e o marido

recordaram, então, que, somente com a morte do pai, Abigail tivera febre tão

alta, acompanhada de abatimento tão profundo.
De cenho carregado, Saulo os

ouvia, esforçando-se por dissimular a emoção.
E enquanto os amigos da jovem

procuravam assisti-la carinhosamente, o futuro rabino, sucumbido num bulcão

de idéias antagônicas, dirigia-se para Jerusalém, com intenção de não mais

voltar a Jope.

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