Desde o martírio de Estevão, agravara -se em Jerusalém o movimento de
perseguição a todos os discípulos ou simpatizantes do “Caminho”.
Como se
fora tocado de verdadeira alucinação, ao substituir Gamaliel nas funções
religiosas mais importantes da Cidade, Saulo de Tarso deixava -se fascinar por
sugestões de fanatismo cruel.
Impiedosas devassas foram ordenadas a respeito de todas as famílias que
revelassem inclinação e simpatia pelas idéias do Messias Nazareno.
A igreja
modesta, onde a bondade de Pedro prosseguia socorrendo os mais
desgraçados, era rigorosamente guardada por sol dados, com ordem de impedir
as prédicas que representavam o brando consolo dos infelizes.
Obcecado pela idéia de resguardar o patrimônio farisaico, o moço tarsense
entregava-se aos maiores desmandos e tiranias.
Homens de bem foram
expulsos da cidade por meras suspeitas.
Operários honestos e até mães de
família eram interpelados em escandalosos processos públicos, que o per –
seguidor fazia questão de movimen tar.
Iniciou-se um êxodo de grandes
proporções, como Jerusalém de há muito não via.
A cidade começou a
despovoar-se de trabalhadores.
O “Caminho” havia seduzido para as suas
doces consolações a alma do povo, cansada na incom preensão e no sacrifício.
Livre das prestigiosas advertências de Gamaliel, que se retirara para o deserto,
e sem a carinhosa assistência de Abigail, que lhe facultava generosas
inspirações, o futuro rabino parecia um louco, em cujo peito o coração
estivesse ressequido.
Debalde, mulhere s indefesas suplicavam-lhe piedade;
inutilmente, crianças misérrimas pediram complacência para os pais,
abandonados como prisioneiros infelizes.
O moço de Tarso parecia dominado por uma indi ferença criminosa.
As
rogativas mais sinceras encontravam no seu espírito um rochedo áspero.
Incapaz de compreender as circunstâncias que lhe haviam modifi cado os
planos e esperanças da vida, imputava o insucesso dos seus sonhos de
mocidade àquele Cristo que não conseguira entender.
Odiá -lo-ia enquanto
vivesse.
Não sendo possível encontrá-lo para uma vingança direta, persegui-loia
na pessoa dos seus caudatários, atra vés de todos os caminhos.
A seu ver,
era ele, o carpinteiro anônimo, o causador dos seus fracassos em relação ao
amor de Abigail, agora envenenado no s eu coração impulsivo por sentimentos
estranhos, que, dia a dia, ca vavam profundos abismos entre sua figura
inolvidável e as lembranças que lhe eram mais carinhosas.
Não mais voltara à
casa de Zacarias, e, embora os amigos da estrada de Jope instassem por suas
notícias, mantinha-se irredutível no círculo do seu egoísmo sufocante.
De vez
em quando, sentia-se premido por uma saudade singular.
Experimentava
imensa falta da ternura de Abigail, cuja lembrança nunca mais se lhe havia
apartado da alma enrijecida e ansiosa.
Mulher alguma poderia substitui -la no
carinho do seu coração.
Entre angústias extremas, recordava a agonia de
Estevão, sua invejável paz de consciência, as palavras de amor e de perdão;
em seguida, via a noiva genuflexa, implorando -lhe amparo com um clarão de
generosidade nos olhos súplices.
Jamais esqueceria aquela prece angustiada
e comovedora, que ela fizera ao abraçar o irmão nos der radeiros instantes de
vida.
Não obstante a perseguição cruel que o transformara em mola -central de
todas as atividades contra a igreja humilde do “Caminho”, Saulo sentia que as
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necessidades espirituais se multiplicavam no espírito sedento de consolação.
Oito meses de lutas incessantes passaram sobre a morte de Estevão,
quando o moço tarsense, capitulando ante a sa udade e o amor que lhe
dominavam a alma, resolveu rever a paisagem florida da estrada de Jope, onde
por certo reconquistaria o afeto de Abigail, de maneira a reorganizarem todos
os projetos de um futuro ditoso.
Tomou o carro minúsculo com o coração opresso .
Quantas hesitações não
vencera para retornar à antiga situação, humilhando a vaidade de homem
convencionalista e inflexível! A luz crepuscular enchia a Natureza de reflexos
de ouro fulgurante.
Aquele céu muito azul, a verdura agreste, as brisas
caridosas da tarde, eram os mesmos.
Sentia -se reviver.
Sonhos e esperanças
continuavam, também, intangíveis.
E refletia na melhor maneira de reaver a
dedicação da mulher escolhida, sem humilhação para sua vaidade.
Contar -lheia
sua desesperação, diria das suas in sônias, da continuidade do imenso amor
que nenhuma circunstância conseguira destruir.
Embora mantivesse firme o
propósito de omitir toda e qualquer alusão ao carpinteiro de Nazaré, falaria a
Abigail do remorso por não lhe haver estendido mãos amigas no ins tante em
que todas as esperanças de sua alma feminina se haviam abalado, ante o
imprevisto da morte dolorosa do irmão, em circunstâncias tão amargas.
Esclareceria os detalhes de seus sentimentos.
Havia de referir -se à recordação
indelével da sua prece angustiosa e ardente, quando Estevão penetrava os
umbrais da morte.
Atraí-la-ia ao coração que jamais a esquecera, beijar -lhe-ia os cabelos,
formularia novos projetos de amor e felicidade.
Mergulhado em tais pensamentos, atingiu a porta de entrada, identifica ndo
as roseiras em flor.
Ocoração batia-lhe descompassado, quando Zacarias surgiu com grande
surpresa.
Um abraço demorado assi nalou o reencontro.
Abigail foi objeto de
sua primeira interrogação.
Com estranheza notou que Zacarias en tristeceu.
— Pensei que algum de teus amigos já te houvesse levado a desagradável
notícia – começou dizendo, enquanto o jovem buscava ouvi -lo ansioso.
—
Abigail, há mais de quatro meses, adoeceu dos pulmões e, para falar com
franqueza, não temos qualquer esperança.
Saulo fizera-se lívido.
—Logo depois que voltou precipitadamente de Je rusalém, esteve mais de
um mês entre a vida e a morte.
Em vão nos esforçamoS, eu e Ruth, para
restituir-lhe o viço e as cores da juventude.
A pobrezinha entrou a definhar e,
em pouco tempo, acamou-se abatida.
Solicitei tua presença, com ansiedade, a
fim de resolvermos o possível em seu benefício, mas não apareceste.
Pare ciame
que um ambiente novo lhe proporcionaria o resta belecimento da saúde,
mas, faltaram-me os recursos para uma iniciativa ma is ampla, tal como se
impunha.
—Mas, Abigail fez alguma queixa a meu respeito?
— perguntou Saulo, aflito.
—De modo algum.
Aliás, o regresso inesperado de Jerusalém, a
enfermidade súbita e teu injustificável afastamento desta casa eram de molde a
causar-nos dúvidas e receios; mas logo se verificaram melhoras positivas, após
o período mais agudo da febre, e ela nos tranqüilizou a respeito.
Explicou a
necessidade da tua ausência, disse estar ciente dos teus muitos afazeres e
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encargos políticos; referiu-se com gratidão ao acolhimento que lhe
dispensaram teus parentes e, quando Ruth, para confortá -la, qualifica de
ingrato o teu procedimento, Abigail é sempre a primeira a defender -te.
Saulo quis dizer alguma coisa, enquanto Zacarias fazia uma pausa, mas
nada lhe ocorreu à mente.
A emoção que lhe causava a nobreza espiritual da
noiva amada, paralisava-lhe as idéias.
— Apesar do seu esforço para tranqüilizar -nos — continuava o marido de
Ruth —, temos a impressão de que nossa filha adotiva se encontra dominada
por desgostos profundos, que procura ocultar.
Enquanto podia andar, visitava
os pessegueiros, à mesma hora em que costumava fazê -lo contigo.
A princípio,
minha mulher surpreendeu-a chorando, nas sombras da noite; mas, em vão
procuramos sondar a causa de seus í ntimos padecimentos.
O único motivo que
alegava era justamente o da enfermidade, que começava a minar -lhe o
organismo.
Mais tarde estagiou uma semana, por aqui, um pobre velho
chamado Ananias.
Deu-se então um fato estranho: Abigail encontrou -o em
casa dos nossos rendeiros e, todas as tardes, detinha -se a ouvi-lo horas a fio,
manifestando daí para cá muita fortaleza espiritual.
Ao despedir -se, o pobre
mendigo deu-lhe como lembrança alguns pergaminhos com os ensinamentos
do famoso carpinteiro de Nazaré.
.
.
— Do carpinteiro? — atalhou Saulo evidentemente contrariado.
— E
depois?
— Tornou-se dedicada leitora do chamado Evan gelho dos galileus.
Consideramos a conveniência de afastá -la de semelhante novidade espiritual,
mas Ruth ponderou ser essa, agora, a sua ún ica distração.
Com efeito, desde
que começou a falar no discutido Jesus Nazareno, observamos que Abigail se
enchera de profundas consolações.
E o fato é que não mais a vimos chorar,
embora se lhe não apagasse do semblante aba tido a dolorosa expressão de
amargura e melancolia.
Sua conversação, daí por diante, parece haver
adquirido inspirações diferentes.
A dor transformou -se-lhe em confortadora
expressão de alegria íntima.
E fala a teu respeito com um amor cada vez mais puro.
Dá impres são de
haver descoberto nos misteriosos escaninhos da alma, a energia de uma vida
nova.
Depois de um suspiro, Zacarias terminava:
— E, contudo, a mudança não alterou a marcha da enfermidade que a.
devora devagarinho.
Dia a dia, vemo -la inclinar-se para o túmulo, como flor que
tomba do hastil ao sopro do vento forte.
Saulo experimentava indisfarçável angústia.
Penosa emoção revolvia -lhe a
alma generosa e sensível.
Como definir -se? Esmagavam-lhe o espírito
amargurosas interrogações.
Quem era, afinal, aquele Jesus que o topava em toda parte? O interesse
de Abigail pelo Evangelho perseguido revelava a vitória do carpinteiro nazareno
a contrastar os próprios sonhos da sua mocidade.
— Mas, Zacarias — perguntou irritadiço o doutor de Tarso —, por que não
impediste semelhante contacto? Esses velhos feiticeiros percorrem as estradas
disseminando a confusão.
Surpreende-me essa condescendência, porqüanto
nossa fidelidade à Lei não admite, ou, pelo menos, nunca deverá admitir
transigências.
O interpelado recebeu a recriminação com seren idade e acentuou:
—Antes de tudo, importa considerar que pedi em vão o socorro da tua
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presença, para orientar-me.
E, além do mais, quem teria coragem de sonegar o
remédio ao doente amado?
Desde que lhe vi a resignação santificada, fiz o propósito de não m e referir
aos seus novos pontos de vista em matéria de crença religiosa.
E como Saulo estivesse engolfado em profundas cismas, sem saber o que
responder, o bom homem rematou:
—Vem comigo, verás com os próprios olhos!.
.
.
O rapaz seguiu-lhe os passos, cambaleando.
As idéias baralhavam-Se-lhe
no cérebro dolorido.
Aquelas notícias inesperadas envenenavam -lhe o coração.
Reclinada no leito, assistida pela afeição maternal de Ruth, a moça de
Corinto estampava no rosto um profundo abatimento.
Muito magra, a epide rme
adquirira a cor do marfim, mas o olhar lúcido denotava absoluta calma
espiritual.
Carinhosa serenidade estampava-se-lhe na fisionomia entristecida.
De vez em quando, renovava-se a dispnéia com prolongada aflição, vol tandose
então para a janela aberta, como se dali esperasse remédio ao seu
cansaço, através das brisas frescas que chegavam do seio generoso da
Natureza.
Ao vê-la, Saulo não dissimulou o seu espanto.
A jovem, por sua vez,
recebendo a jubilosa surpresa, tomou-se de sincera e transbordante alegria.
Saudações afetuosas se trocaram entre ambos, en quanto os olhos
traduziam a saudade angustiosa com que haviam esperado aquele momento.
O futuro rabino acariciou-lhe as mãos mimosas, que pareciam agora
modeladas em cera translúcida.
Falaram da e sperança que os alentara,
constante, antes do reencontro.
Notando que eles desejavam ficar sós, para
confidenciar mais à vontade, Zacarias e Ruth retiraram -se discretamente.
— Abigail! — exclamou Saulo comovidíssimo, logo que se viram a sós —
abdiquei o meu orgulho e a minha vaidade de homem público para vir até aqui,
perguntar se me perdoaste, se me não esqueceste!
— Esquecer-te? — respondeu ela de olhos úmidos.
Por mais rude e longa
que seja a estação de sol ardente, a folha do deserto não poderá esquecer a
chuva benéfica que lhe deu vida.
Não me fales, igualmente, em perdão, pois
acaso poderá alguém perdoar -se a si mesmo?
E nós, Saulo, pertencemo-nos um ao outro para a eternidade.
Não me
disseste, muitas vezes, que eu era o coração do teu cérebro?
Ouvindo o timbre caricioso daquela voz amada, o jovem de Tarso comovia –
se nas entranhas do próprio ser arrebatado e ardente.
Aquela humildade e
aquele tom de ternura penetravam-lhe o coração, reconquistando -lhe o
discernimento para o caminho reto.
Guardando, entre as suas, as mãos pálidas da noiva, exclamou com um
lampejo de alegria nos olhos:
— Por que dizes que “eras o coração”, se ainda és e sê -lo-ás para sempre?
Deus abençoará nossas esperanças.
Realizaremos nosso ideal.
Voltei para
levar-te comigo.
Teremos um lar, serás nele a rainha!.
.
.
Dominada por indefinível alegria, a noiva, que o contemplava com lágrimas,
murmurou:
— Desconfio, Saulo, que os lares da Terra não foram feitos para nós!.
.
.
Deus sabe quanto desejei, ardentemente, ser a mãe carinhosa de teus filhos;
como conservei o ideal acima de todas as circunstâncias, para aformo sear tua
existência com o meu carinho! Desde menina, em Corinto, vi mulheres que
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desbaratavam os tesouros do Céu, simbolizados no amor do esposo e dos
filhinhos; e pensei que o Senhor me concederia o mesmo patrimônio de
esperanças divinas, pois aguardava as bênçãos do santuário doméstico para
glorificá-lo de todo o coração.
Para exaltá -lo, idealizei a vida do homem amado,
que me auxiliaria a erguer o altar da prole; e, assim que m e chegaste, organizei
vastos planos de uma vida santa e venturosa, na qual pudéssemos honrar a
Deus.
Saulo escutava comovido.
Nunca lhe observara ta manha largueza de
raciocínio e lucidez, naquele tom de ternura tranqüila.
Mas o Céu — prosseguiu resignada — retirou-me as possibilidades de
semelhante ventura na Terra.
Nos meus primeiros dias de solidão, visitava os
lugares ermos, como a procurar -te, requisitando o socorro do teu afeto.
Os
pessegueiros de nossa predileção pareciam dizer que nunca mais voltari as; a
noite amiga aconselhava-me a esquecer; o luar, que me ensinaste a bem –
querer, agravava as minhas recordações e amortecia as minhas esperanças.
Da peregrinação de cada noite, voltava com lágri mas nos olhos, filhas do
desespero do coração.
Embalde pr ocurava tua palavra confortadora.
Sentia -me
profundamente só.
Para lembrar e seguir tuas advertências, recordava que me
chamaste a atenção, à última vez que nos encontramos, para a amizade de
Zacarias e de Ruth.
É verdade que não tenho outros amigos mais f iéis e
generosos que eles; entretanto, não lhes poderia ser mais pesada na vida,
além do que sou.
Evitei, então, con fiar-lhes minhas angústias.
Nos primeiros
meses da tua ausência, amarguei sem consolo a minha grande desdita.
Foi
quando surgiu aqui um velhinho respeitável, chamado Ananias, que me deu a
conhecer as luzes sagradas da nova revelação.
Conheci a história do Cristo, o
Filho de Deus Vivo; devorei o seu Evangelho de redenção, edi fiquei-me nos
seus exemplos.
Desde essa hora, compreen di-te melhor, conhecendo a minha
própria situação.
Súbito acesso de tosse cortou-lhe a narrativa.
As palavras da noiva caíam-lhe no coração como gotas de fel.
Nunca
experimentara dor moral tão aguda.
Verificando a sinceridade natural, o carinho
doce daquelas confissões, sentia-se pungido de acerbos remorsos.
Como
pudera abandonar, assim, a escolhida de sua alma, olvidando -lhe a fidelidade e
o amor? Onde encontrara tamanha dureza de espírito para esquecer deveres
tão sagrados? Agora, vinha encontrá -la exânine, desiludida de realizar na Terra
os sonhos da juventude.
Além de tudo, o carpinteiro odiado parecia tomar -lhe o
lugar no coração da noiva adorada.
Naquele momento, não experimentava
apenas o desejo de lhe arrasar a doutrina e os adeptos, mas sentia ciúmes
dele na alma caprichosa.
De que poderes podia dispor o nazareno obscuro e
martirizado na cruz, para conquistar os sentimentos mais puros da noiva
carinhosa?
— Abigail — disse comovido —, abandona as idéias tristes que poderiam
envenenar os sonhos de nossa mo cidade.
Não te entregues a ilusões.
Renovemos nossas esperanças.
Breve estarás restabelecida.
Sei que me per –
doaste a morte de teu irmão, e minha família te receberá em Tarso com júbilos
sinceros! Seremos felizes, muito felizes!.
.
.
Seus olhos pareciam pairar numa região de sonhos deliciosos, procurando
reavivar no coração amado os seus projetos de felicidade terrena.
Ela, porém, misturando sorrisos e lágrimas, acres centava:
— Francamente, querido, eu também desejaria re viver!.
.
.
Ser tua,
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entretecer teus sonhos de juventude, inventar estrelas para o céu da tua
existência; tudo isso constitui meu ideal de mulher!.
.
.
Ah! se pudesse, buscaria
os teus parentes com amor, haveria de con quistá-los para o meu coração, ao
preço de um grande afeto; mas, pressinto que os planos de Deus são diferentes,
no que concerne aos nossos destinos.
Jesus cha mou-me para a sua
família espiritual.
.
.
— Ai de mim! — exclamou Saulo cortando-lhe a palavra — em toda parte,
topo expressões do carpinteiro de Nazaré! Que flagelo! Não repitas semelhante
coisa.
Deus não seria justo se te seqüestrasse ao meu afeto.
-Quem poderia,
então, como esse Cristo, interpor -se aos nossos votos?
Mas Abigail fixou-o com um gesto súplice e falou:
— Saulo, de que nos valeria a desesperação? Não será melhor incl inarmonos
com paciência aos sagrados desígnios? Não alimentemos dúvidas
prejudiciais.
Este leito é de meditação e de morte, O sangue, várias vezes, já
me golfou prenunciando o fim.
Mas nós cremos em Deus e sabemos que esse
fim é apenas corporal.
Nossa alma não morrerá, amar-nos-emos
eternamente.
.
.
— Não concordo — respondia ele extremamente aflito —, essas
presunções são fruto de ensinamentos absurdos, quais os desse fanático
nazareno que morreu na cruz, entre a humilhação e a covardia.
Nunca assim
foste, melancólica e desalentada; somente os sortilégios galileus podiam
convencer-te de tais absurdos funestos.
Mas, procura raciocinar por ti mesma!
Que te deu o crucificado senão tristeza e desolação?
—Enganas-te, Saulo! Não me sinto desanimada, embora convic ta da
impossibilidade de minha ventura terrena.
Jesus não foi um mestre vulgar de
sortilégios, foi o Messias dispensador de consolação e vida.
Sua influência
renovou-me as forças, saturou-me de bom ânimo e verdadeira compreensão
dos desígnios supremos.
Seu Evangelho de perdão e amor é o tesouro di vino
dos sofredores e deserdados do mundo.
O jovem não conseguia dissimular a irritação que lhe vagava na alma.
—Sempre o mesmo refrão — disse confuso — invariavelmente, a
afirmativa de ter vindo para os infeli zes, para os doentes e infortunados.
Mas,
as tribos de Israel não se compõem apenas de criaturas dessa es pécie.
E os
homens valorosos do povo escolhido? E as famílias de tradições respeitáveis?
Estariam fora da influência do Salvador?
—Tenho lido os ensinamentos de Jesus — respondeu a moça com firmeza
— e suponho compreender as tuas objeções.
O Cristo, cumprindo a sagrada
palavra dos profetas, revela-nos que a vida é um conjunto de nobres
preocupações da alma, a fim de que marchemos para Deus pelos cami nhos
retos.
Não podemos conceber o Criador como juiz ocioso e isolado, senão
como Pai desvelado no benefício de seus filhos.
Os homens valo rosos a que te
referes, os forros de enfermidades e so frimentos, na posse das bênçãos reais
de Deus, deviam ser filhos laboriosos, preocupados com o rendimento da
tarefa que foram chamados a cumprir, a prol da feli cidade de seus irmãos.
Mas,
no mundo, temos contra nossas tendências superiores o inimigo que se instala
em nosso próprio coração.
O egoísmo ataca a saúde, o ciúme prejudica o
mandato divino, como a ferrugem e a traça que inutilizam nossas vestes e
instrumentos, quando nos descuidamos.
São poucos os que se recor dam da
proteção divina, nos dias alegres da fartura, como raríssimos os que trabalham
à revelia do aguilhão.
Isso demonstra que o Cristo é um roteiro para todos,
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constituindo-se em consolo para os que choram e orien tação para as almas
criteriosas, chamadas por Deus a contribuir nas santas preocupações do bem.
Saulo estava impressionado com aquela cla reza de raciocínio.
Mas a
conversação exigira da enferma maior esforço e conseqüente fadiga.
A
respiração tornara-se difícil, e não tardou que o sangue lhe borbotasse do peito
em prolongada hemoptise.
Aquele sofrimento, adornado de ternura e
humildade, comovia e exasperava profundamente o noivo.
Compreendeu que
seria impiedoso atacar perante a noiva aquele Jesus que lhe cumpria perseguir
até ao fim.
Não queria crer que a sua Abigail estivesse nas vésperas da morte.
Preferia encarar o futuro com otimismo.
Restabelecida, fá-la-ia voltar aos seus
antigos pontos de vista.
Não toleraria a intromis são do Cristo no santuário
doméstico.
No esforço introspectivo, entretanto, concluiu que precisava dar
uma trégua aos seus pensamentos antagônicos, para cogitar dos problemas
essenciais da sua própria tranqüilidade.
A jovem enferma, após a crise que
durara minutos longos e tristes, tinha os grandes olhos serenos e lúci dos.
Contemplando-a naquela doce atitude de suprema resignação, Saulo de Tarso
experimentou enternecedoras comoções íntimas.
Seu temperamento
arrebatado entregava-se facilmente às impressões extremadas.
Aproximando-se mais da noiva amada, tinha os olhos úmidos.
Desejou
acariciá-la como se o fizesse a uma criança.
— Abigail — murmurou ternamente —, não falemos mais de idéias
religiosas.
Perdoa-me! Recordemos nosso porvir de flores, esqueçamos tudo
para consolidar as melhores esperanças.
E as palavras lhe borbulhavam ardentes de emo ção.
O carinho que
evidenciavam era sintoma do arre pendimento e das aspirações nobres e
sinceras que lhe trabalhavam, agora, no espírito angustiado.
Entretanto, como
se fora presa de singular abatimento depois do esforço despendido, a jovem de
Corinto estava lânguida, receando prosseguir no colóquio, em virtude dos
acessos de tosse que a ameaçavam freqüentemente.
O noivo, preocupado,
compreendeu a situação e, apertando -lhe as mãos transparentes, beijou -as
enternecido.
— Precisas repousar — disse com inflexão carinhosa —, não te preocupes
por minha causa.
Dar-te-ei de minhas próprias forças.
Breve estarás
restabelecida.
E, depois de envolvê-la num olhar cheio de gratidão e infinita ternura,
rematava:
— Voltarei a ver-te todas as noites que possa afas tar-me de Jerusalém, e
logo que puderes voltaremos a ver o luar, lá no j ardim, para que a Natureza
abençoe os nossos sonhos, sob as vistas de Deus.
— Sim, Saulo — disse pausadamente —, Jesus nos concederá o melhor.
De qualquer modo, no entanto, esta rás no meu coração, sempre, sempre.
.
.
O doutor da Lei ia despedir-se, mas refletiu que a noiva nada lhe dissera
com referência ao irmão.
A generosidade daquele silêncio impressionava -o.
Preferia ser acusado, discutir o feito com as suas penosas circunstân cias, para
que também se justificasse.
Mas, em vez de reprimendas, encontrava carícias,
em vez de exprobraçÕes, uma tranqüilidade generosa, com que a meiga jovem
sabia ocultar as profundas feridas que lhe iam nalma.
— Abigail — exclamou algo hesitante —, antes de partir, quisera saber
francamente se me desculpaste pela morte de Es tevão.
Nunca mais pude falar –
te das contingências que me levaram a tão triste desfecho; no entanto, estou
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convicto de que tua bondade olvidou minha falta.
— Por que te recordas disso? — respondeu-lhe esforçando-se por manter
a voz firme e clara.
— Minhalma está agora tranqüila.
Jeziel está com o Cristo
e morreu legando-te um pensamento amistoso.
Que poderia eu reclamar de
minha parte, se Deus tem sido tão misericordioso para comigo? Ainda agora,
estou agradecendo ao Pai justo, de todo o coração, a dádiva da tua presença
nesta casa.
Há muito vinha pedindo ao Céu não me dei xasse morrer sem te
rever e ouvir.
.
Saulo calculou a extensão daquela generosidade es pontânea e teve os
olhos úmidos.
Despediu-se.
A noite fresca estava repleta de sugestões para o
seu espírito.
Nunca meditara nos insondáveis desígnios do Eterno, como
naquele momento em que recebera tão profundas lições de humildade e amor,
da mulher amada.
Experimentava na alma opressa o embate de duas forças
antagônicas, que lutavam entre si para a pos se do seu coração generoso e
impulsivo.
Não compreendia Deus senão como um senhor po deroso e inflexível.
À
sua vontade soberana, dobrar -se-iam todas as preocupações humanas.
Mas
começava a perquirir o motivo de suas dolorosas inquietudes.
Por que não
encontrava, em parte alguma, a paz anelada ardentemente? E, todavia, aquela
gente miserável do “Caminho” entregava -se às algemas do cárcere, sorridente
e tranqüila.
Homens enfermos e valetudinários, isentos de qualquer esperança
do mundo, suportavam-lhe as perseguições com louvores no coração.
O
próprio Estevão, cuja morte lhe servira de exemplo inesquecível, aben çoara-o
pelos sofrimentos recebidos por amor ao carpin teiro de Nazaré.
Aquelas
criaturas desamparadas gozavam de uma tranqüilidade que ele desconh ecia,
O quadro da noiva doente não lhe saía dos olhos.
Abigail era sen sível e
afetuosa, mas lembrava sua ansiedade feminina, a intensidade de suas
preocupações de mulher, quando, eventualmente, não conseguia comparecer
com pontualidade no adorável recanto da estrada de Jope.
Aquele Jesus
desconhecido proporcionara-lhe forças ao coração.
Se era inconteste que a
enfermidade lhe extinguia a vida aos poucos, também evidente era o
rejuvenescimento das suas energias espirituais.
A noiva falara -lhe como que
tocada de novas inspirações; aqueles olhos pareciam con templar interiormente
a paisagem de outros mundos.
Essas reflexões não lhe deram ensejo à admiração da Natureza.
Reentrando em Jerusalém, guardou a impres são de que despertava de um
sonho.
À sua frente desenhavam-se as linhas majestosas do grande santuário.
O orgulho de raça falava-lhe mais forte ao espírito.
Era impossível conferir superioridade aos homens do “Cami nho”.
Bastou a
visão do Templo para que encontrasse em si mesmo os esclarecimentos que
desejava.
A seu ver, a serenidade dos discípulos do Cristo provinha, natural –
mente, da ignorância que lhes era apanágio.
Geralmente, os que se
afeiçoavam aos galileus eram, apenas, criaturas que o mundo desclassificara
pela decadência física, pela educação fa lha, pelo supremo abandono.
O
homem de responsabilidade, por certo, não poderia encontrar a paz a preço tão
vil.
Figurarase-lhe haver resolvido o problema.
Continuaria a luta.
Contava com
o breve restabelecimento da noiva; logo que possível desposaria Ab igail e, com
fácilidade, dissuadi-la-ia dos fantasiosos quão perigosos engodos daqueles
ensinamentos condenados.
Do âmbito do seu lar, feliz, prosseguiria na
perseguição de quantos esquecessem a Lei, trocando -a por outros princípios.
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Esses raciocínios lhe acalmaram, de certo modo, as inquietações.
Mas, no dia seguinte, manhã alta, um mensageiro de Zacarias golpeava –
lhe a alma com uma notícia grave:
Abigail piorara, estava agonizante!
Incontinenti, tomou o caminho de Jope, ansioso de arrebatar a bem -amada
ao perigo iminente.
Ruth e o marido estavam desolados.
Desde a ma drugada, a enferma caíra
em penosa prostração.
Os vômitos de sangue sucediam -se ininterruptos.
Dirse-
ia que só esperava a visita do noivo para morrer.
Saulo escutou -os, lívido
como cera.
Mudo, dirigiu-se para o quarto, onde o ar fresco penetrava
embalsamado, trazendo a mensagem das flores do pomar e do jardim, que
pareciam enviar despedidas às mãos delicadas e carinho sas que lhes haviam
dado a vida.
Abigail recebeu-o com um raio de infinita alegria nos olhos translúcidos.
O tom
de marfim do semblante abatido acentuara -se rapidamente.
O peito arfava-lhe
precípite, o coração batia sem ritmo.
Sua expressão geral evidenciava a
derradeira agonia.
Saulo aproximou -se angustiado.
Pela primeira vez na vida,
sentia-se trémulo diante do irremediável.
Aquele olhar, aquela palidez de
mármore, aquela aflição tocada de angústia.
anuncia vam-lhe o desenlace.
Depois de inquiri-la, quanto à razão daquele abatimento inesperado,
tomou-lhe as mãos flácidas, banhadas do suor frio dos moribundos.
—Como foi isso, Abigail? — dizia perturbado —ainda ontem, deixei-te tão
esperançado.
.
.
Pedi sinceramente a Deus te curasse para mim!.
.
.
Extremamente sensibilizados, Zacarias e sua mulher afastaram -se.
Vendo que a noiva tinha imensa dificuldade em expor as últimas idéias,
Saulo ajoelhou-se a seu lado, cobriu-lhe as mãos de beijos ardentes.
A agonia
dolorosa parecia-lhe o sofrimento injustificável, que o céu houvera enviado a
um anjo.
Ele, que trazia o espírito res secado pela hermenêutica das leis
humanas, sentiu que chorava intensamente pela primeira vez.
Lendo -lhe a
sensibilidade através das lágrimas que lhe desciam silenciosamente dos olhos,
Abigail esboçou um gesto de carinho com dificuldade infinita.
Conhecia S aulo e
comprovara-lhe a rigidez do caráter.
Aquele pranto revelava o calvário íntimo
do bem-amado, mas demonstrava, igualmente, o alvorecer de uma vida nova
para o seu espírito.
—Não chores, Saulo — murmurou dificilmente a morte não é o fim de
tudo.
.
.
—
Quero-te comigo em toda a vida — replicou o rapaz desfeito em
lágrimas.
— E, contudo, é preciso morrer para vivermos ver dadeiramente
acrescentava a agonizante, cortando as palavras com a respiração opressa.
—
Jesus nos ensinou que a semente caindo na terra fica só, mas se morrer dá
muitos frutos!.
.
.
Não te rebeles contra os desígnios supremos que me
arrebatam do teu convívio material! Se nos uníssemos pelo matrimônio, talvez
tivéssemos muitas alegrias; teríamos um lar com os nossos filhos; mas
destruindo nossas esperanças de uma felicidade passa geira na Terra, Deus
nos multiplica os sonhos genero sos.
.
.
Enquanto esperarmos a união
indissolúvel, auxiliar-te-ei de onde estiver e te consagrarás ao Eterno, em
esforços sublimes e redentores.
.
.
Via-se que a agonizante movimentava recursos su premos para pronunciar
as derradeiras palavras.
112
—Quem te deu semelhantes idéias? — perguntou o jovem ralado de
angústia.
– Esta noite, depois que partiste, senti que alguém se aproximava
enchendo o quarto de luz.
.
.
Era Jeziel que vinha ver -me.
.
.
Ao avistá-lo, lembreime
de Jesus no inefável mistério da sua ressurreição.
Anunciou -me que Deus
santificava os nossos propósitos de ventura, mas que eu seria levada ainda
hoje à vida espiritual.
Ensinou-me a quebrar o egoísmo de minhalma, encheume
de bom ânimo e trouxe-me a grata nova de que Jesus ama -te muito, tem
esperanças em ti!.
.
.
Refleti, então, que seria útil entregar -me jubilosa às mãos
da morte, pois, quem sabe, se ficasse no mundo não iria perturbar a missão
que o Salvador te destinou.
.
.
Jeziel afirmou que nós te ajudaremos de um plano
mais alto! Por que, então, deixarei de ser tua companheira?.
.
.
Seguirei teus
passos no caminho, levar-te-ei onde se encontrem nossos irmãos do mundo,
em abandono, auxiliarei teus raciocínios a descobrir sempre a verdade!.
.
.
Ainda
não aceitaste o Evangelho, mas Jesus é bom e terá algum meio de nos unir os
pensamentos na verdadeira compreensão!.
.
.
O esforço da moribunda havia sido imenso.
A voz extinguira -se-lhe na
garganta.
De seus olhos, profundamente lúcidos, as lágrimas corriam
abundantes.
—Abigail! Abigail! — gritava Saulo desesperado.
Mas, após longos minutos de angustiosa ansiedade, ela dizia num arranco
supremo:
—Jeziel já veio .
.
.
buscar-me.
.
.
Instintivamente, Saulo compreendeu que era chegado o momento fatal.
Em
vão chamou pela moribunda, cujos olhos se empanavam; debalde lhe beijou as
mãos geladas, agora cobertas de um palor de neve translúcida.
Como louco,
gritou por Zacarias e Ruth.
Esta, soluçante, desfeita em pran to, abraçou-se a
Abigail que, desde a morte do filho, resumia todo o seu tesouro maternal.
A agonizante fixou o olhar, respectivamente, em cada um, como a
evidenciar amoroso agradecimento.
Depois.
.
.
uma só lágrima silenciosa foi o
seu último adeus.
Do jardim próximo chegavam perfumes brandos; o céu crepuscular
tonalizava-se de nuvens aurifulgentes, enquanto os pássaros em recolhida
cruzavam os ares alegremente.
.
.
Pesada amargura abatera-se sobre a mansão da estrada de Jope.
Alara -se
ao céu a filha dileta, a noiva amada, a amiga carinhosa das flores e dos
passarinhos.
Saulo de Tarso ali se deixou ficar mudo, estarrecido enquanto Ruth, lavada
em lágrimas, cobria de rosas a morta adorada, que parecia dormir.