Durante três dias, Saulo deixou-se ficar em companhia dos amigos
generosos, recordando a noiva ines quecível.
Profundamente abatido,
procurava remédio para as mágoas íntimas, na contemplação da paisagem que
Abigail tanto amara.
Como triste consolo ao coração deses perado, buscava
inteirar-se das preocupações da morta nos últimos tempos e, de olhos úmidos,
ouvia as referências carinhosas de Ruth a tudo que se relacionava com a morta
querida.
Acusava a si próprio de não haver chegado mais cedo para arrebatá -la
à enfermidade dolorosa.
Pensamentos amargos o atormentavam, tomado de
angustioso arrependimento.
Afinal, com a rigidez das suas paixões, aniquilara todas as possibilidades
de ventura.
Com o rigorismo da sua perseguição implacável, Estevão
encontrara o suplício terrível; com o orgulho inflexível do coração, atirara com a
noiva ao antro indevassável do túmulo.
Entretanto, não podia esquecer que devia todas as coincidências penosas
àquele Cristo crucificado, que não pudera compreender.
Por que topava, em
tudo, traços do carpinteiro humilde de Nazaré, que seu espírito voluntarioso
detestava? Desde a primeira con trovérsia na igreja do “Caminho”, nunca mais
conseguira passar um dia sem encontrá-lo na fisionomia de algum transeunte,
na admoestação dos amigos, na documentação oficial das suas diligências
punitivas, na boca dos míseros prisioneiros.
Estevão expirara falando nele com
amor e júbilo; Abigail nos últimos instantes consolava -se em recordá-lo e o
exortava a segui-lo.
Por todo esse acervo de considera ções que se lhe
represavam na mente exausta, Saulo de Tarso galvanizara o ódio pessoal ao
Messias escarnecido.
Agora que se encontrava só, inteiramente liberto de
preocupações particulares, de natureza afetiva, buscaria concentrar esforços
na punição e corretivo de quantos encontrasse transviados da Lei.
Julgando -se
prejudicado pela difusão do Evangelho, renovaria os processos da perseguição
infamante.
Sem outras esperanças, sem novos ideais, já que lhe faltavam os
fundamentos para constituir um lar, entre gar-se-ia de corpo e alma à defesa da
Lei de Moisés, preservando a fé e a tranqüilidade dos compatrícios.
Na véspera do seu regresso a Jerusalém, vamos en contrar o jovem doutor
em conversa particular com Zacarias, que procurava ouvi -lo atentamente.
—Afinal de contas — exclamava Saulo sombria-mente preocupado —,
quem será esse velho que conse guiu fascinar Abigail, a ponto de ela abraçar
as doutrinas estranhas do Nazareno?
— Ora — replicava o outro sem maior interesse —, é um desses miseráveis
eremitas que se entregam comumente a longas meditações no deserto.
Zelando o patrimônio espiritual da pupila que Deus me confiou, indaguei da sua
origem e das atividades de sua vida, chegando a saber que se trata de um
homem honesto, apesar de extremamente pobre.
— Seja como for — objetava o rapaz com austeridade —, ainda não pude
compreender os motivos da tua tolerância.
Como não te insurgiste contra o
inovador? Tenho a impressão de que as idéias tristes e absurdas dos adeptos
do “Caminho” contribuíram, de modo de cisivo, para a moléstia que vitimou a
nossa pobre Abigail.
— Ponderei tudo isso, mas a atitude mental da querida morta revestiu -se
de imensa consolação, depois do contacto com esse anacoreta honesto e
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humilde.
Ananias tratou-a sempre com profundo respeito, atendeu-a sempre
alegre, não exigiu qualquer recompensa, e assim procedeu com os próprios
empregados, revelando uma bondade sem limites.
Seria, então, lícito
impugnar, desprezar benefícios? É verdade que, na esfera de minha
compreensão, não poderei acei tar outras idéias além das que nos foram
ensinadas por nossos avós, respeitáveis e generosos; mas não me julguei com
o direito de subtrair aos outros o objeto de suas consolações mais preciosas.
Tua ausência, ao demais, colocou -me em situação difícil.
Abigail fizera da tua
pessoa o centro de todos os seus interesses afetivos.
Sem compreender as
razões que te levaram a desaparecer de nossa casa, compadeci -me da sua
amargura íntima, a traduzir -se em tristeza inalterável.
A pobrezinha não
conseguia ocultar suas mágoas aos nossos olhos amorosos.
O encontro de um
remédio era providencial.
Desde a intervenção de Ananias, Abigail
transformou-se, parecia converter toda a angústia em esperanças de uma vida
melhor.
Embora doente, recebia os mendigos que lhe vinham fa lar desse Jesus
que, também, não consigo compreender.
Eram amigos da vizinhança, gente
simples, com quem ela parecia alegrar -se.
Observando o mal irremediável que
a consumia, eu e Ruth acompanhávamos tudo isso enternecidamente.
Como
não proceder assim, se estava em jogo a paz espiritual de uma filha dileta, nos
derradeiros dias da sua vida? Épossível que ainda não consigas entender o
sentido da minha conduta, neste particular, mas em sã consciência estou
justificado, porqüanto sei que cumpri meu dever, não lhe embargando os
recursos que julgou necessários à sua consolação.
Saulo ouvia-o admirado.
A serenidade e a pondera ção de Zacarias
infirmavam-lhe os estos mais fortes de reprimenda e severidade.
As acusações
veladas ao seu afastamento da noiva, sem moti vo justificado, penetravam-lhe o
coração com pruridos de remorso pungente.
—Sim — revidou menos áspero —, reconsidero melhor as razões que te
induziram a suportar tudo isso, mas, não quero, não posso e não devo
exonerar-me do compromisso que assumi em d esafronta da Lei.
—Mas, a que compromisso te referes? — interrogou Zacarias
surpreendido.
—Quero dizer que preciso encontrar Ananias, a fim de castigá -lo
devidamente.
— Que é isso, Saulo? — objetou Zacarias penosamente impressionado.
— Abigail acaba de baixar ao sepulcro; seu espírito, de compleição
sensibilíssima e afetuosa, sofreu profundamente por motivos que igno ramos e
que talvez conheças; o conforto único que ela encontrou foi, justamente, a
amizade paternal desse velhinho bom e honesto; e queres puni-lo pelo bem
que nos fez e à criatura inesquecível?
— Mas é a defesa da Lei de Moisés que está em jogo — respondeu o moço
tarsense com firmeza.
— Entretanto — advertiu sensatamente Zacarias —, revistando os textos
sagrados, não encontrei qualquer disp ositivo que autorize a castigar os
benfeitores.
O doutor da Lei esboçou um gesto de contrariedade em face da
observação justa, mas, valendo -se da sua hermenêutica, considerou com
sagacidade:
— Mas uma coisa é estudar a Lei e outra é defender a Lei.
Na tare fa
superior em que me encontro, sou obrigado a examinar se o bem não oculta o
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mal que condenamos.
Aí reside a nossa divergência.
Tenho de punir os
transviados, como necessitas podar as árvores da tua chácara.
Fez-se prolongado silêncio.
Absortos em profund a meditação, separados
mental e intimamente, foi Saulo quem retomou a palavra perguntando:
— Desde quando Ananias se ausentou destas pa ragens?
— Há mais de dois meses.
— E chegaste a conhecer o rumo que tomou?
– Abigail disse-me que ele fora chamado a Jerusalém, a fim de confortar os
doentes dos bairros pobres, dada a situação difícil que por lá se criara com a
perseguição.
— Pois a sua nefasta influência será igualmente ju gulada pelas forças da
nossa vigilância.
Regressando à cidade, amanhã, como pretendo, procurarei localizar -lhe o
paradeiro.
Ananias não dementará outras cabeças! Jamais chegou a pensar na
reação que provocou em minhalma, embora não nos conheçamos
pessoalmente.
Zacarias não conseguiu dissimular o seu desgosto e sentenciou:
— Na simplicidade da minha vida rural não posso atinar com a razão das
lutas religiosas de Jerusalém; mas, enfim, trata -se de problemas inerentes aos
teus misteres profissionais e não devo intrometer -me nas providências que
mais convenham.
Saulo deixou-se ficar longo tempo pensativo, para, em seguida, imprimir
novos rumos à conversação.
No dia seguinte, muito consternado, regressou àcidade, ansioso por encher
o vácuo do coração, perdido no labirinto das horas vagas.
A ninguém revelou a
grande amargura que lhe ia na alma.
Fechando-se em mutismo absoluto,
retomou as funções religiosas, de semblante carregado.
Ao sol claro da manhã alta, vamos encontrá -lo no Sinédrio, interrogando
um auxiliar de serviço, com vivacidade:
— Isaac, cumpriste minhas ordens p ara os informes desejados?
— Sim, senhor, encontrei entre os prisioneiros um rapaz que conhece o
velho Ananias.
— Muito bem — disse o doutor de Tarso evidentemente satisfeito —, e
onde mora o tal Ananias?
— Ah! lá isso ele não quis dizer, apesar do muito que insisti.
Alegou que
não sabia.
— Entretanto, é possível que esteja mentindo —ajuntou Saulo com rancor.
— Esses homens são capazes de tudo.
Providencia, já, para que ele aqui
compareça quanto antes.
Saberei como arrancar -lhe a verdade.
Como quem já lhe conhecia as decisões irrevogáveis.
Isaac obedeceu com
humildade.
Daí a uma hora mais ou menos, dois soldados penetravam no
gabinete, acompanhando um rapaz de fisionomia miserável.
Sem trair qualquer
comoção, Saulo de Tarso mandou que se reco lhessem à sala de punições,
onde iria ter com o prisioneiro dentro de alguns minutos.
Terminada a escrituração de alguns papiros, diri giu-se, resoluto, ao salão
dos castigos.
Alinhavam-se, ali, todos os instrumentos odiosos e execráveis
das perseguições político-religiosas, que envenenavam Jerusalém nos
embates da época.
Depois de sentar-se enfaticamente, o moço de Tarso inquiriu o mísero
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encarcerado com aspereza:
—Teu nome?
—Matatias Johanan.
—Conheces o velho Ananias, pregador ambulante da igreja do “Caminho”?
—Sim, senhor.
—Desde quando?
—Conheci-o nas vésperas de minha prisão, que se verificou há um mês.
—E onde reside esse adepto do carpinteiro?
—Isso não sei — exclamou o interpelado em voz tímida.
— Quando o
conheci, morava num bairro pobre de Jerusalém, onde ensinava o Evangelho.
Mas Ananias não tinha pouso certo.
Veio de Jope, estacionando em diversas
aldeias, onde pregava as verdades de Jesus -Cristo.
Aqui, vivia de bairro em
bairro, no seu piedoso mister.
O moço tarsense não prestou atenção naquela ati tude de profunda
humildade, e, franzindo o sobrolho, acrescentou ameaçadoramente:
—Achas que podes mentir a um doutor da Lei?
—Senhor, eu juro.
.
.
— dizia o jovem ansiosamente.
Saulo não se dignou fixar-lhe o gesto suplicante.
Dirigindo-se a um dos
guardas, exclamou impassível:
—Júlio, não temos tempo a perder.
Necessito da informação necessária.
Aplica-lhe o tormento das unhas.
Acredito que, por esse processo, não se
animará a prosseguir na dissimulação da verdade.
A ordem foi logo cumprida.
Agu çadas pontas de ferro foram tiradas de um
grande armário cheio de pó.
Em poucos instantes, Júlio e o companheiro,
depois de amarrarem o pobre rapaz num tronco rústico, aplicavam -lhe os
instrumentos pontiagudos na ponta dos dedos, provocando -lhe gritos
lancinantes.
O jovem prisioneiro clamava, em vão, suas dores atrozes.
Os
verdugos ouviam-no com indiferença.
Quando o sangue começou a gotejar da
unha arrancada violentamente, a vítima bra dou em altas vozes:
— Por piedade!.
.
.
Confessarei tudo, direi onde ele está!.
.
.
Tende compaixão
de mim!.
.
.
Saulo ordenou sustassem a punição por momentos, a fim de ouvir as novas
declarações.
— Senhor! — acrescentou o infeliz entre lágrimas Ananias não se encontra
mais em Jerusalém.
– Em nossa última reunião, três dias ante s de cairmos
no cárcere, o velho discípulo do Evangelho se despediu, afir mando que ia
fixar-se em Damasco.
Aquela voz lamentosa era um eco de profundas amarguras a se
represarem num coração moço, mas repleto de penosas desilusões da vida.
Saulo, entretanto, parecia não ter olhos de ver sofrimentos tão comove dores.
— É tudo quanto sabes? — perguntou secamente.
— Juro-o — tornou o rapaz humildemente.
Diante daquela afirmação categórica, transparente no olhar sincero e na
inflexão da voz comovente e triste, o doutor da Lei deu-se por satisfeito,
mandando recolher o prisioneiro ao calabouço.
Daí a dois dias, o moço tarsense convocava uma reu nião no Sinédrio, à
qual atribuía singular importância.
Os colegas acorreram ao chamado, sem
exceção.
Abertos os trabalhos, o doutor de Tarso esclareceu o motivo da
convocação.
— Amigos — declarou ciosamente —, há tempos nos reunimos para
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examinar o caráter da luta religiosa que se criara em Jerusalém com as
atividades dos asseclas do carpinteiro de Nazaré.
Felizmente, no ssa
intervenção chegou a tempo de evitar grandes males, dada a argúcia dos
falsos taumaturgos exportados da Galiléia.
Á custa de grandes esforços, a
atmosfera desanuviou-se.
É verdade que os cárceres da cidade transbordam,
mas a medida se justifica, porqü anto é indispensável reprimir o instinto
revolucionário das massas ignorantes.
A chamada igreja do “Caminho” restringiu suas atividades àassistência aos
enfermos desamparados.
Nossos bairros mais humildes estão em paz.
Voltou
a serenidade aos nossos afaze res no Templo.
Entretanto, não se pode afirmar
o mesmo quanto às cidades vizinhas.
Minhas consultas às autoridades religiosas de Jope e Cesaréia dão a
conhecer os distúrbios que os adeptos do Cristo vêm provocando,
acintosamente, com prejuízo sério para a ordem pública.
Não somente nesses
núcleos precisamos desenvolver a obra saneadora, mas, ainda agora, che gamme
notícias alarmantes de Damasco, a requererem providências imediatas.
Localizam-se ali perigosos elementos.
Um velho, chamado Ananias, lá está
perturbando a vida de quantos necessitam de paz nas sinago gas.
Não é justo
que o mais alto tribunal da raça se desinteresse das coletividades israelitas
noutros setores.
Proponho, então, estendermos o benefício dessa cam panha a
outras cidades.
Para esse fim, ofereço todos os meus préstimos pessoais, sem
ônus para a casa a que servimos.
Bastar -me-á, tão-só, o necessário
documento de habilitação, a fim de acionar todos os recursos que me pareçam
acertados, inclusive o da própria pena de morte, quando a julg ue necessária e
oportuna.
A proposta de Saulo foi recebida com demonstrações de simpatia.
Houve
mesmo quem chegasse a propor um voto especial de louvor ao seu zelo
vigilante, com aplausos unânimes da reduzida assembléia.
Faltava ao cenáculo
a ponderação de um Gamaliel, e o sumo-sacerdote, compelido pela aprovação
geral, não hesitou em conceder as cartas indispensáveis, com ampla
autorização para agir discricionariamente.
Os presentes abraçaram o jovem ra –
bino com muitos encômios ao seu espírito arguto e e nérgico.
Francamente,
aquela mentalidade moça e vigorosa constituía auspicioso penhor de um futuro
maior, com a emancipação política de Israel.
Alvo das referências lisonjeiras e
estimuladoras dos amigos, Saulo de Tarso aguçava o orgulho de sua raça,
esperançoso nos dias do porvir.
Verdade é que sofria amargamente com a
derrocada dos sonhos da juventude, mas empregaria a soledade da existência
nas lutas que reputava sagradas, ao serviço de Deus.
De posse das cartas de habilitação para agir con venientemente, em
cooperação com as Sinagogas de Damasco, aceitou a companhia de três
varões respeitáveis, que se ofereceram a acompanhá -lo na qualidade de servidores
muito amigos.
Ao fim de três dias, a pequena caravana se deslocou de Jerusalém para a
extensa planície da Síria.
Na véspera da chegada, quase a termo da viagem difícil e penosa, o moço
tarsense sentia agravarem-se as recordações amargas que lhe assomavam
constantes.
Forças secretas impunham-lhe profundas interrogações.
Passava
em revista os primeiros sonhos da juventude.
Sua alma desdobrava -se em
perguntas atrozes.
Desde a adolescência que encarecia a paz interior: tinha
sede de estabilidade para realizar a sua carreira.
Onde en contrar aquela
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serenidade, que, tão cedo, fora objeto das suas cogitações mai s íntimas? Os
mestres de Israel preconizavam, para isso, a observância integral da Lei.
Mais
que tudo, havia ele guardado os seus princípios.
Desde os impulsos iniciais da
juventude, abominava o pecado.
Consagrara -se ao ideal de servir a Deus com
todas as suas forças.
Não hesitara na execução de tudo que considerava
dever, ante as ações mais violentas e rudes.
Se era incontestável que tinha
inúmeros admiradores e amigos, tinha igualmente poderosos adversá rios,
graças ao seu caráter inflexível no cumprimen to das obrigações que
considerava sagradas.
Onde, então, a paz espiritual que tanto almejava nos
esforços comuns? Por mais energias que despendesse, via -se como um laboratório
de inquietações dolorosas e profundas.
Sua vida assinalava -se por
idéias poderosas, mas, no seu íntimo, lutava com antagonismos
irreconciliáveis.
As noções da Lei de Moisés pareciam não lhe bastar à sede
devoradora.
Os enigmas do destino empolgavam -lhe a mente.
O mistério da
dor e dos destinos diferenciais crivava -o de enigmas insolúveis e sombrias
interrogações.
Entretanto, aqueles adeptos do carpinteiro crucificado
ostentavam uma serenidade desconhecida! A alegação de ignorância dos
problemas mais graves da vida não prevalecia no caso, pois Estevão era uma
inteligência poderosa e mostrara, ao morrer, uma paz impressionante,
acompanhada de valores espirituais que infundiam assombro.
Por mais que os companheiros lhe chamassem a atenção para os
primeiros quadros de Damasco, que se desenhavam ao longe, Saulo não
conseguia forrar-se ao solilóquio sombrio.
Parecia não ver os camelos resigna dos, que se arrastavam pesadamente
sob o sol de brasas, a pino, do meio -dia.
Embalde foi convidado à refeição.
Detendo-se por minutos num pequeno oásis delicioso, esperou que terminasse
o leve repasto dos companheiros e prosseguiu na marcha, absorvido pela
intensidade dos pensamentos íntimos.
Ele próprio não saberia explicar o que se passava.
Suas reminiscências
atingiam os períodos da primeira infância.
Todo o seu passado laborioso
aclarava-se, nitidamente, naquele exame introspectivo.
Dentre todas as figuras
familiares, a lembrança de Estevão e de Abigail destacava -se, como a solicitálo
para mais fortes interrogações.
Por que haviam adquirido, os dois irmãos de
Corinto, tal ascendência em todos os pr oblemas do seu ego? Por que esperava
Abigail através de todas as estra das da mocidade, na idealização de uma vida
pura? Recordava os amigos mais eminentes, e em nenhum deles encontrou
qualidades morais semelhantes às daquele jo vem pregador do “Caminho”, que
afrontara a sua autoridade político-religiosa, diante de Jerusalém em peso,
desdenhando a humilhação e a morte, para morrer depois, abençoando -lhe as
resoluções iníquas e implacáveis.
Que força os unira nos labirintos do mundo,
para que o seu coração nunca mais os esquecesse? A verdade dolorosa é que
se encontrava sem paz interior, não obstante a conquista e gozo de todas as
prerrogativas e privilégios, entre os vultos mais destacados da sua raça.
Enfileirava, no pensamento, as jovens que havia conhec ido no transcurso da
vida, as afeiçoadas da infância, e em nenhuma podia encontrar as mesmas
características de Abigail, que lhe adivinhava os mais recônditos desejos.
Atormentado pelas indagações profundas que lhe assoberbavam a mente,
pareceu despertar de um grande pesadelo.
Devia ser meio -dia.
Muito distante
ainda, a paisagem de Damasco apresentava os seus contornos: pomares
espessos, cúpulas cinzentas que se esboçavam ao longe.
Bem montado,
119
evidenciando o aprumo de um homem habituado aos prazeres do esporte,
Saulo ia à frente, em atitude dominadora.
Em dado instante, todavia, quando mal despertara das angustiosas
cogitações, sente-se envolvido por luzes diferentes da tonalidade solar.
Tem a
impressão de que o ar se fende como uma cortina, sob pressão invisível e
poderosa.
Íntimamente, considera -se presa de inesperada vertigem após o
esforço mental, persistente e doloroso.
Quer voltar -se, pedir o socorro dos
companheiros, mas não os vê, apesar da possibilidade de suplicar o auxílio.
—Jacob!.
.
.
Demétrio!.
.
.
Socorram-me!.
.
.
— grita desesperadamente.
Mas a confusão dos sentidos lhe tira a noção de equilíbrio e tomba do
animal, ao desamparo, sobre a areia ardente.
A visão, no entanto, parece
dilatar-se ao infinito.
Outra luz lhe banha os olhos deslumbrados , e no caminho,
que a atmosfera rasgada lhe desvenda, vê surgir a figura de um homem de
majestática beleza, dando-lhe a impressão de que descia do céu ao seu
encontro.
Sua túnica era feita de pontos luminosos, os cabelos tocavam nos
ombros, à nazarena, os olhos magnéticos, imanados de simpatia e de amor,
iluminando a fisionomia grave e terna, onde pairava uma divina tristeza.
O doutor de Tarso contemplava-o com espanto profundo, e foi quando,
numa inflexão de voz inesquecível, o desconhecido se fez ouvir:
—Saulo!.
.
.
Saulo!.
.
.
por que me persegues?
O moço tarsense não sabia que estava instintiva -mente de joelhos.
Sem
poder definir o que se passava, comprimiu o coração numa atitude
desesperada.
Incoercível sentimento de veneração apossou -se inteiramente
dele.
Que significava aquilo? De quem o vulto divino que entrevia no painel do
firmamento aberto e cuja presença lhe inundava o coração precípite de
emoções desconhecidas?
Enquanto os companheiros cercavam o jovem ge nuflexo, sem nada
ouvirem nem verem, não obstante haverem percebido, a princípio, uma grande
luz no alto, Saulo interrogava em voz trêmula e receosa:
— Quem sois vós, Senhor?
Aureolado de uma luz balsâmica e num tom de in concebível doçura, o
Senhor respondeu:
— Eu sou Jesus!.
.
.
Então, viu-se o orgulhoso e inflexível doutor da Lei curvar -se para o solo,
em pranto convulsivo.
Dir-se-ia que o apaixonado rabino de Jerusalém fora
ferido de morte, experimentando num momento a derrocada de todos os
princípios que lhe conformaram o espírito e o norteara m, até então, na vida.
Diante dos olhos tinha, agora, e assim, aquele Cristo magnânimo e
incompreendido! Os pregadores do “Caminho” não estavam iludidos! A palavra
de Estevão era a verdade pura! A crença de Abigail era a senda real.
Aquele
era o Messias! A história maravilhosa da sua ressurreição não era um recurso
lendário para fortificar as energias do povo.
Sim, ele, Saulo, via -o ali no
esplendor de suas glórias divinas!
E que amor deveria animar -lhe o coração cheio de augusta misericórdia,
para vir encontrá-lo nas estradas desertas, a ele, Saulo, que se arvorara em
perseguidor implacável dos discípulos mais fiéis!.
.
.
Na expressão de
sinceridade da sua alma ardente, considerou tudo isso na fugacidade de um
minuto.
Experimentou invencível vergonha do seu passado cruel.
Uma torrente
de lágrimas impetuosas lavava -lhe o coração.
Quis falar, penitenciar -se, clamar
suas infindas desilusões, protestar fidelidade e dedicação ao Messias de
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Nazaré, mas a contrição sincera do espí rito arrependido e dilacerado
embargava-lhe a voz.
Foi quando notou que Jesus se aproximava e, contem plando-o
carinhosamente, o Mestre tocou-lhe os ombros com ternura, dizendo com
inflexão paternal:
—Não recalcitres contra os aguilhões!.
.
.
Saulo compreendeu.
Desde o primeiro encontro com Estevão, forças
profundas o compeliam a cada momento, e em qualquer parte, à meditação
dos novos ensinamentos.
O Cristo chamara-o por todos os meios e de todos os
modos.
Sem que pudessem entender a grandeza divina da quele instante, os
companheiros de viagem viram-no chorar mais copiosamente.
O moço de Tarso soluçava.
Ante a expressão doce e persuasiva do
Messias Nazareno, considerava o tempo perdido em caminhos escabrosos e
ingratos.
Doravante necessitava reformar o patrimônio dos pensamentos mais
íntimos; a Visão de Jesus ressuscitado, aos seus olhos mortais, renovava -lhe
integralmente as concepções reli giosas.
Certo, o Salvador apiedara -se do seu
coração leal e sincero, consagrado ao serviço da Lei, e descera da sua glória
estendendo-lhe as mãos divinas.
Ele, Saulo, era a ovelha perdida no
resvaladouro das teorias escal dantes e destruidoras.
Jesus era o Pastor amigo
que se dignava fechar os olhos para os espinheirOS ingratos, a fim de salvá -lo
carinhosamente.
Num ápice, o jovem rabino considerou a ext ensão daquele
gesto de amor.
As lágrimas brotaram-lhe do coração amargurado, como a linfa
pura, de uma fonte desconhecida.
Ali mesmo, no santuário augusto do espírito,
fez o protesto de entregar-se a Jesus para sempre.
Recordou, de súbito, as
provações rígidas e dolorosas.
A idéia de um lar morrera com Abigail.
Sentia -se
só e acabrunhado.
Doravante, porém, entregar -se-ia ao Cristo, como simples
escravo do seu amor.
E tudo envidaria para provar -lhe que sabia compreender o seu sacrifício,
amparando-o na senda escura das iniqüidades humanas, naquele instante
decisivo do seu destino.
Banhado em pranto, como nunca lhe acontecera na
vida, fez, ali mesmo, sob o olhar assombrado dos companheiros e ao calor
escaldante do meio-dia, a sua primeira profissão de fé.
— Senhor, que quereis que eu faça?
Aquela alma resoluta, mesmo no transe de uma capitulaçãO incondicional,
humilhada e ferida em seus princípios mais estimáveiS, dava mostras de sua
nobreza e lealdade.
Encontrando a revelação maior, em face do amor que Jesus lhe
demonstraVa solícito, Saulo de Tarso não escolhe tarefas para servi -lo, na
renovação de seus esforços de homem.
Entregando-se-lhe de alma e corpo, como se fora ínfimo servo, interroga
com humildade o que desejava o Mestre da sua coop eração.
Foi aí que Jesus, contemplando -o mais amorosamente e dando-lhe a
entender a necessidade de os homens se harmonizarem no trabalho comum
da edificação de todos, no amor universal, em seu nome, esclareceu gene –
rosamente:
—Levanta-te, Saulo! Entra na cidade e lá te será dito o que te convém
fazer!.
.
.
Então, o moço tarsense não mais percebeu o vulto amorável, guardando a
impressão de estar mergulhado num mar de sombras.
Prosternado, continuava
121
chorando, causando piedade aos companheiros.
Esfregou os ol hos como se
desejasse rasgar o véu que lhe obscurecia a vista mas só conseguia tatear no
seio das trevas densas.
Aos poucos, começou a perceber a presença dos
amigos, que pareciam comentar a situação:
—Afinal, Jacob — dizia um deles, evidenciando grande p reocupação —,
que faremos agora?
—Acho bom — respondia o interpelado — enviarmos Jonas a Damasco,
requisitando providências imediatas.
—Mas, que se teria passado? — perguntava o velho respeitável que
respondia por Jonas.
– Não sei bem — esclarecia Jacob impressionado —, a princípio, notei
intensa luz nos céus e, logo em seguida, ouvi que ele pedia socorro.
Nem tive
tempo de atender, porque, no mesmo instante, ele caiu do ani mal, sem poder
esperar qualquer recurso.
—O que me preocupa — ponderava Demétrio — é esse diálogo com as
sombras.
Com quem conversará ele? Se lhe escutamos a voz e não vemos
ninguém, que se passará aqui, nesta hora, sem que possamos com preender?
— Mas não percebes que o chefe está em delírio? —-objetou Jacob
prudentemente — as grandes viagens, com o sol causticante, costumam abater
as organizações mais resistentes.
Além disso, como vimos, desde a manhã,
ele parece acabrunhado e doente.
Não se alimentou, en fraqueceu-se com o
esforço destes dias tão longos, que vimos atravessando, desde Jerusalém,
com grande sacrifício.
A meu ver — concluía abanando a cabeça entristecido
— trata-se de um desses casos de febres que atacam repentinamente no
deserto.
.
.
O velho Jonas, no entanto, de olhos arregalados, fixava o rabino solu çante,
com grande admiração.
Depois de ouvir a opinião dos companheiros, falou,
receoso, como se temesse ofender alguma entidade desconhecida:
—Tenho grande experiência destas marchas com o sol a pino.
Gastei a
mocidade conduzindo camelos através dos des ertos da Arábia.
Mas, nunca vi
um doente, nesses lugares, com estas características — a febre dos que caem
extenuados no caminho não se manifesta com delírio e com lágrimas.
O
enfermo cai abatido, sem reações.
Aqui, porém, observamos o patrão como se
estivesse a conversar com um homem invisível para nós.
Reluto em aceitar essa hipótese, mas estou desconfiado de que, em tudo
isso, haja sinal dos sortilégios do “Caminho” Os seguidores do carpinteiro
sabem processos mágicos que estamos longe de compreender.
Não ignoramos
que o doutor se consagrou à tarefa de persegui -los onde se encontrem.
Quem sabe planejaram contra ele alguma, vingança cruel?
Ofereci-me para vir a Damasco, a fim de fugir dos meus parentes, que
parecem seduzidos por essas doutrinas novas.
O nde já se viu curar a cegueira
de alguém com a simples imposição das mãos? Entretanto, meu irmão curou –
se com o famoso Simão Pedro.
Só a feitiçaria, a meu ver, esclarecerá essas
coisas.
Vendo tantos fatos misteriosos, em minha pró pria casa, tive medo de
Satanás e fugi.
Recolhido em si próprio, surpreendido no meio das trevas densas que o
envolviam, Saulo escutou os comen tários dos amigos, experimentando grande
abatimento, como se voltasse exausto e cego, de uma imensa derrota.
Limpando as lágrimas, chamo u um deles com profunda humildade.
Acudiram todos solicitamente.
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— Que aconteceu? — perguntou Jacob preocupado e ansioso.
—
Estamos aflitos por vossa causa.
Estais doente, senhor ?.
.
.
Providenciaremos o
que julgardes necessário.
.
.
Saulo fez um gesto triste e acrescentou:
—Estou cego.
—Mas que foi? — perguntoú o outro inquieto.
—Eu vi Jesus Nazareno! — disse contrito, inteiramente modificado.
Jonas fez um sinal significativo, como a afirmar aos companheiros que
tinha razão, entreolhando-se todos muito admirados.
Entenderam, de modo
instintivo, que o jovem rabino se havia perturbado.
Jacob, que era pes soa de
sua intimidade, tomou a iniciativa das primeiras providências e acentuou:
Senhor, lamentamos vossa enfermidade.
Precisa mos resolver quanto ao
destino da caravana.
O doutor de Tarso, entretanto, revelando uma humil dade que jamais se
coadunara com o seu feitio domina dor, deixou cair uma lágrima e respondeu
com profunda tristeza:
—Jacob, não te preocupes comigo.
.
.
Relativamente ao que me cumpre
fazer, preciso chegar a Damasco, sem demora.
Quanto a vocês.
.
.
— e a voz
reticenciosa quebrantara-se dolorosamente, como premida de grande an gústia,
para concluir em tom amargo —, façam como quiserem, pois, até agora, vocês
eram meus servos, mas, de ora em d iante, eu também sou escravo, não mais
me pertenço a mim mesmo.
Ante aquela voz humilde e triste, Jacob começou a chorar.
Tinha plena
convicção de que Saulo enlouquecera.
Chamou os dois companheiros à parte
e explicou:
—Vocês voltarão para Jerusalém com a triste nova, enquanto me dirijo à
cidade próxima, com o doutor, a providenciar da melhor forma.
Levá -lo-ei aos
seus amigos e buscaremos o socorro de algum médico.
.
.
Noto -o extremamente
perturbado.
.
.
O jovem rabino cientificou-se das deliberações quase sem surpresa.
Conformou-se passivamente com a resolução do servo.
Naquela hora,
submerso em trevas densas e profundas, tinha a imaginação repleta de
conjeturas transcendentes.
A cegueira súbita não o afligia.
Do âmbito daquela
escuridão que lhe enchia os olhos da carne, parecia emergir o vulto radioso de
Jesus, aos seus olhos de Espírito.
Era justo que cessassem as suas per –
cepções visuais, a fim de conservar, para sempre, a lem brança do glorioso
minuto de sua transformação para uma vida mais subli me.
Saulo recebeu as observações de Jacob, com a humil dade de uma criança.
Sem uma queixa, sem resistência, ouviu o trotar da caravana que regressava,
enquanto o velho servidor lhe oferecia o braço amigo, tomado de infinitos
receios.
Com o pranto a escorrer dos olhos inexpressivos,
como perdidos nalguma visão indevassável no vácuo, o
orgulhoso doutor de Tarso, guiado por Jacob, seguiu a pé, sob o sol ardente
das primeiras horas da tarde.
Comovido pelas bênçãos que recebera das esferas mais elevadas da vida ,
Saulo chorava como nunca.
Es tava cego e separado dos seus.
Dolorosas
angústias represavam-se-lhe no coração opresso.
Mas a visão do Cristo
redivivo, sua palavra inesquecível, sua expressão de amor lhe estavam
presentes na alma transformada.
Jesus era o Senhor, inacessível à morte.
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Ele orientaria os seus passos no caminho, dar -lhe-ia novas ordens, secaria
as chagas da vaidade e do orgulho que lhe corroíam o coração; sobretudo,
conceder-lhe-ia forças para reparar os erros dos seus dias de ilusão.
Impressionado e triste, Jacob guiava o chefe amigo, perguntando a si
próprio a razão daquele pranto inces sante e silencioso.
Envolvido na sombra da cegueira temporária, Saulo não percebeu que os
mantos espessos do crepúsculo abraçavam a Natureza.
Nuvens escuras
precipitavam a queda da noite, enquanto ventos sufocantes sopravam da
imensa planície.
Dificilmente, acompanhava as pas sadas de Jacob, que
desejava apressar a marcha, receoso da chuva.
Coração resoluto e enérgico,
não reparava os obstáculos que se antepun ham à sua jornada dolorosa.
Faltava-lhe a visão, necessitava de um guia; mas Jesus recomendara que
entrasse na cidade, onde lhe seria dito o que tinha a fazer.
Era preciso
obedecer ao Salvador que o honrara com as supremas revelações da vida.
A
passos indecisos, ferindo os pés em cada movimento inseguro, caminharia de
qualquer modo para executar as ordens divinas.
Era indispensável não
observar as dificuldades, era imprescindível não esquecer os fins.
Que
importava o olhar em trevas, o regresso da caravana a Jerusalém, a penosa
caminhada a pé em demanda de Damasco, a falsa suposição dos
companheiros a respeito da inolvidável ocorrência, a perda dos títulos
honoríficos, o repúdio dos sacerdotes seus amigos, a incompreensão do
mundo inteiro, diante do fato culminante do seu destino?
Saulo de Tarso, com a profunda sinceridade que lhe caracterizava as
mínimas ações, só queria saber que Deus havia mudado de resolução a seu
respeito.
Ser-lhe-ia fiel até ao fim.
Quando as sombras crepusculares se faziam mais densas, dois homens
desconhecidos entravam nos subúr bios da cidade.
Embora a ventania
afastasse as nuvens tempestuosas na direção do deserto, grossos pingos de
chuva caíam, aqui e ali, sobre a poeira ardente das ruas.
As janelas das casas residenciais fechavam-se com estrépito.
Damasco podia recordar o jovem tarsense, formoso e triunfador.
Conhecia –
o nas suas festas mais brilhantes, costumava aplaudi -lo nas sinagogas.
Mas,
vendo passar na via pública aqueles dois homens cansados e tristes, jamais
poderia identificá-lo naquele rapaz que caminhava cambaleante, de olhos
mortos.
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