1 Rumo ao deserto – PAULO E ESTEVÃO – FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

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—Aonde iremos, senhor? — atreveu-se Jacob a perguntar, timidamente,

logo que entraram nas ruas tortuoSas.

O moço tarsense pareceu refletir um minuto e ac entuou:

—É verdade que trago comigo algum dinheiro; en tretanto, estou em

situação muito difícil: sinto precisar mais de assistência moral que de repouso

físico.
Tenho necessidade de alguém que me ajude a compreender o que se

passou.
Sabes onde reside Sadoc?

—Sei — respondeu o servo compungido.

—Leva-me até lá.
.
.
Depois de me avistar com algum amigo, pensarei numa

estalagem.

Não se passou muito tempo e ei -los à porta de um edifício de singular e

soberba aparência.
Muralhas bem delineadas cercavam extens o átrio adornado

de flores e arbustos.

Descansando junto ao portão de entrada, Saulo recomendou ao

companheiro:

— Não convém que me aproxime assim, sem aviso.
Jamais visitei Sadoc

nestas condições.
Entra no átrio, chama -o e conta-lhe o que se passou comigo.

Esperarei aqui, mesmo porque não posso dar um passo.

Oservo obedeceu prontamente.
O banco de repouso distava alguns

passos do largo portão de acesso, mas ficando só, ansioso de ouvir um amigo

que o compreendesse, Saulo identificou o muro, tatean do-o.
Vacilante e

trêmulo, arrastou-se dificilmente e atingiu a entrada, ali permanecendo.

Acudindo ao chamado, Sadoc procurou saber o mo tivo da visita

inesperada.
Jacob explicou, com humil dade, que vinha de Jerusalém,

acompanhando o doutor da Lei e desf iou os mínimos incidentes da viagem e os

fins colimados; mas, quando se referiu ao episódio prin cipal, Sadoc arregalou

os olhos estupidificado.
Custava -lhe acreditar no que ouvia, mas não podia

duvidar da sinceridade do narrador, que, por sua vez, mal en cobria o próprio

assombro.
O homem falou, então, do mísero estado do chefe: da sua cegueira,

das lágrimas copiosas que vertia.
Saulo a chorar? O amigo de Damasco re –

cebia as estranhas notícias com imensa surpresa, sinteti zando as primeiras

impressões numa resposta desconcertante para Jacob:

— O que me conta é quase inverossímil; entretanto, em tais circunstâncias,

torna-se impossível acolhê-los aqui.
Desde anteontem tenho a casa cheia de

amigos importantes, recém-chegados de Citium (1) para uma boa reuniã o na

sinagoga, sábado próximo.
Cá por mim, suponho que Saulo se perturbou,

inesperadamente, e não quero expô -lo a juízos e comentários menos dignos.

— Mas, senhor, que lhe direi? — interpôs Jacob hesitante.

— Diga que não estou em casa.

— Entretanto.
.
.
encontro-me só com ele, assim perturbado e enfermo e,

como vedes, a noite é tempes tuosa.
.
.

Sadoc refletiu um momento e acrescentou:

— Não será difícil remediar.
Na próxima esquina vocês encontrarão a

chamada “rua Direita” e, depois de caminhar alguns passos, encontrarão a

estalagem de Judas, que tem sempre muitos cômodos disponíveis.
Mais tarde,

procurarei lá chegar para saber do ocor rido.

126

(1) Nota da Editora — Cicio, cidade da ilha de Chipre.

Ouvindo palavras tais, que pareciam mais uma ordem que respost a a um

apelo amigo, Jacob despediu-se surpreso e desanimado.

— Senhor — disse ao rabino, regressando ao portão de entrada —,

infelizmente vosso amigo Sadoc não se encontra em casa.

— Não está? — exclamou Saulo admirado — daqui lhe ouvi a voz, embora

não distinguisse o que dizia.
Será possível que meus ouvidos estejam

igualmente perturbados?

Diante daquela observação tão expressiva e sincera, Jacob não conseguiu

dissimular a verdade e contou ao rabino o acolhimento que tivera, a atitude

reservada e fria de Sadoc.

Seguindo as pisadas do guia, Saulo tudo ouviu, mudo, enxugando uma

lágrima.
Não contava com seme lhante recepção da parte de um colega que

sempre considerara digno e leal, em todas as circunstâncias da vida.
A

surpresa chocava-o.
Era natural que Sadoc temesse pela renovação de suas

idéias, mas não era justo aban donasse um amigo doente, às intempéries da

noite.
No entanto, no rebojar de mágoas que começavam a intu mescer-lhe o

coração, recordou repentinamente a visão de Jesus e refletiu que,

efetivamente, possuía agora experiências que o outro não pudera conhecer,

chegando à conclusão de que talvez fizesse o mesmo se os papéis estivessem

invertidos.

Concluído o relato do companheiro, comentou re signado:

— Sadoc tem razão.
Não ficava bem perturbá -lo com a descrição do fato,

quando tem à mesa amigos de responsabilidade na vida pública.
Além disso,

estou cego.
.
.
Seria um estafermo e não um hóspede.

Essas considerações comoveram o companheiro, que, aliás, deixara

perceber ao jovem rabino os própr ios receios.
Nas palavras de Jacob, Saulo

entrevira uma vaga expressão de temores injustificáveis.
O procedimento de

Sadoc talvez lhe houvesse aumentado as desconfianças.
Suas advertências

eram reticenciosas, hesitantes.
Parecia intimidado, como se antevi sse

ameaças à sua tranqüilidade pessoal.
Nos conceitos mais simples evidenciava

o medo de ser acusado como portador de alguma expressão do “Caminho”.
Na

sua amplitude de senso psicológico, o moço tarsense tudo compreendia.
Fora

verdade que ele, Saulo, representava o chefe supremo da campanha

demolidora, mas, de ora em diante, consagraria a vida a Jesus, assim

comprometendo a quantos dele se aproximassem direta e ostensivamente.

Sua transformação provocaria muitos protestos no ambiente farisaico.

Pressentiu nas indecisões do guia o receio de ser acusado de algum sor tilégio

ou bruxedo.

Com efeito, depois de convenientemente instalados na modesta estalagem

de Judas, o companheiro falou-lhe preocupado:

— Senhor, pesa-me alegar minhas conveniências, mas, consoante os

projetos feitos, preciso regressar a Jerusalém, onde me esperam dois filhos, a

fim de nos fixarmos em Cesaréia.

— Perfeitamente — respondeu Saulo, respeitando-lhe os escrúpulos —,

poderás partir ao amanhecer.

Aquela voz, antes agressiva e aut oritária, tornara-se agora compassiva e

meiga, tocando o coração do servo nas suas fibras mais sensíveis.

— Entretanto, senhor, estou hesitando — disse o velho já picado de

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remorso —, estais cego, necessitais de auxílio para recobrar a vista e sinto

sinceramente deixar-vos ao abandono.

— Não te preocupes por minha causa — exclamou o doutor da Lei

resignado —; quem te disse que ficarei abandonado? Estou convicto de que

meus olhos estarão curados muito em breve.

Aliás — continuou Saulo como a confortar -se a si mesmo —, Jesus

mandou-me entrar na cidade, a fim de saber o que me convinha.
Certo, não me

deixará ignorando o que devo fazer.

Assim falando, não pôde ver a expressão de piedade com que Jacob o

contemplava, desconcertado e oprimido.

Entretanto, mau grado à mágoa que lhe causava o chefe em semelhante

estado, e recordando os castigos infligidos aos seguidores do Cristo, em

Jerusalém, não conseguiu subtrair -se aos íntimos temores e partiu aos

primeiros albores da manhã.

Saulo, agora, estava só.
No véu espes so das sombras, podia entregar-se

às suas meditações profundas e tristes.

A bolsa farta e franca assegurou -lhe a solicitude do estalajadeiro, que, de

quando em quando, vinha saber suas necessidades, mas, em vão, o hóspede

foi convidado a repastos e divers ões, porque nada o demovia do seu taciturno

insulamento.

Aqueles três dias de Damasco foram de rigorosa disciplina espiritual.
Sua

personalidade dinâmica havia estabelecido uma trégua às atividades

mundanas, para examinar os erros do passado, as dificuldad es do presente e

as realizações do futuro.
Precisava ajustar -se à inelutável reforma do seu eu.

Na angústia do espírito, sentia-se, de fato, desamparado de todos os amigos.
A

atitude de Sadoc era típica e valeria pela de todos os correligionárioS, que

jamais se conformariam com a sua adesão aos novos ideais.
Ninguém

acreditaria no ascendente da conversão inesperada; entretanto, havia que lutar

contra todos os cépticos, de vez que Jesus, para falar -lhe ao coração,

escolhera a hora mais clara e ruti lante do dia, em local amplo e descampado e

na só companhia de três homens muito menos cultos que ele, e, por isso

mesmo, incapazes de algo compreenderem na sua pobreza mental.
No

apreciar os valores humanos, experimentava a insuportável angústia dos que

se encontram em completo abandono, mas, no torvelinho das lem branças,

destacava os vultos de Estevão e Abigail, que lhe proporcionavam

consoladoras emoções.
Agora compreendia aquele Cristo que viera ao mundo

principalmente para os desventurados e tristes de cor ação.
Antes, revoltava-se

contra o Messias Nazareno, em cuja ação presumia tal ou qual

incompreensível volúpia de sofrimento; todavia, chegava a.
examinar -se

melhor, agora, haurindo na própria experiência as mais proveitosas ilações.

Não obstante os títulos do Sinédrio, as responsabilidades públicas, o renome

que o faziam admirado em toda parte, que era ele senão um necessitado da

proteção divina? As convenções mundanas e os preconceitos reli giosos

proporcionavam-lhe uma tranqüilidade aparente; mas, basto u a intervenção da

dor imprevista para que ajuizasse de suas necessidades imensas.

Abismalmente concentrado na cegueira que o envolvia, orou com fervor,

recorreu a Deus para que o não deixasse sem socorro, pediu a Jesus lhe

clareasse a mente atormentada pe las idéias de angústia e desamparo.

No terceiro dia de preces fervorosas, eis que o hote leiro anuncia alguém

que o procura.
Seria Sadoc? Saulo tem sede de uma voz carinhosa e amiga.

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Manda entrar.
Um velhinho de semblante calmo e afetuoso ali está, sem que o

convertido possa ver-lhe as cãs respeitáveis e o sorriso generoso.

O mutismo do visitante indiciava o desconhecido.

—Quem sois? — pergunta o cego admirado.

—Irmão Saulo — replica o interpelado com doçu ra —, o Senhor, que te

apareceu no caminho, enviou-me a esta casa para que tornes a ver e recebas

a iluminação do Espírito Santo.

Ouvindo-o, o moço de Tarso tateou ansiosamente nas sombras.
Quem

seria aquele homem que sabia os feitos lá da estrada! Algum conhecido de

Jacob? Mas.
.
.
aquela inflexão de voz enternecida e carinhosa?

—Vosso nome? — perguntou quase aterrado.

—Ananias.

A resposta era uma revelação.
A ovelha perseguida vinha buscar o lobo

voraz.
Saulo compreendeu a lição que o Cristo lhe ministrava.
A presença de

Ananias revoca-lhe à memória os apelos mais sagrados.
Fora ele o iniciador de

Abigail na doutrina e o motivo da viagem a Damasco, onde encontrara Jesus e

a verdade renovadora.
Tomado de profunda veneração, quis avan çar, ajoelharse

ante o discípulo do Senhor, que lhe chamava ternamente “irmão”, oscularlhe

enternecido as mãos benfazejas, mas apenas tateou o vácuo, sem

conseguir a execução do gratíssimo desejo.

—Quisera beijar vossa túnica — falou com humildade e reconhecimento —

, mas, como vedes, estou cego!.
.
.

—Jesus mandou-me, justamente para que tivesses, de novo, o dom da

vista.

Comovidíssimo, o velho discípulo do Senhor notou que o perseguidor cruel

dos apóstolos do “Caminho” estava totalmente transformado.
Ouvindo -lhe a

palavra plena de fé, Saulo de Tarso deixava transparecer, n o semblante, sinais

de profunda alegria interior.
Dos olhos ensombrados, manaram lágrimas

cristalinas.
O moço apaixonado e caprichoso aprendera a ser humano e

humilde.

—Jesus é o Messias eterno! Depus minha alma em suas mãos!.
.
.
— disse

entre compungido e esperançoso.
Penitencio-me do meu caminho!.
.
.

Banhado no pranto do arrependimento sincero, sem saber manifestar o

reconhecimento daquela hora, em vir tude das trevas que lhe dificultavam os

passos, ajoelhou-se com humildade.

O velhinho generoso quis adiantar-se, impedir aquele gesto de renúncia

suprema, considerando a sua própria condição de homem falível e imperfeito;

mas, desejando estimular todos os recursos daquela alma ardente, em favor da

sua completa conversão ao Cristo, aproximou -se comovido e, colocando a mão

calosa naquela fronte atormentada, exclamou:

—Irmão Saulo, em nome de Deus Todo -Poderoso eu te batizo para a nova

fé em Cristo Jesus!.
.
.

Entre as lágrimas ardentes que corriam dos olhos, o moço tarsenSe

acentuou, contrito:

—Digne-se o Senhor perdoar meus pecados e ilumi nar meus propósitos

para uma vida nova.

—Agora — disse Ananias, impondo-lhe as mãos nos olhos apagados e

num gesto amoroso —, em nome do Salvador, peço a Deus para que vejas

novamente.

—Se é do agrado de Jesus que isso acon teça — advertiu Saulo

129

compungido —‘ ofereço meus olhos aos seus santos serviços, para todo o

sempre.

E como se entrassem em jogo forças poderosas e invisíveis, sentiu que das

pálpebras doridas caíam subs tâncias pesadas como escamas, à proporção que

a vista lhe voltava, embebendo-se de luz.
Através da janela aberta, viu o céu

claro de Damasco, experimentando indefinível ventura naquele oceano de

claridades deslumbrantes.
A aragem da manhã, como perfume do Sol, vinha

banhar-lhe a fronte, traduzindo para o seu coração uma bênção de Deus.

—Vejo!.
.
.
Agora vejo!.
.
.
Glória ao redentor de minha alma!.
.
.
— exclamava

estendendo os braços num transporte de gratidão e de amor.

Ananias também não se conteve mais; em face da quela prova inaudita da

misericórdia de Jesus, o velho discípulo do Evangelho abraçou -se ao jovem de

Tarso, a chorar de reconhecimento a Deus pelos favores rece bidos.
Trêmulo

de alegria, levantou-o em seus braços generosos, amparando -lhe a alma

surpreendida e perturbada de júbilo.

—Irmão Saulo — disse pressuroso —, este é o nosso grande dia;

abracemo-nos na memória sacrossanta do Mestre que nos irmanou em seu

grande amor!.
.
.

O convertido de Damasco não disse palavra.
As lágrimas de gratidão

sufocavam-no.

Abraçando-se ao antigo pregador, num gesto expressivo e mudo, fê-lo

como se houvesse encontrado o pai dedicado e amoroso da sua nova

existência.
Por momentos, ficaram mudos, maravilhados com a intervenção

divina, como dois irmãos muito queridos que se houvessem reconciliado sob as

vistas de Deus.

Saulo sentia-se agora fortalecido e ágil.
Num minuto, pareceu reaver todas

as energias de sua vida.
Voltando a si do contentamento divino que o felicitava,

tomou a mão do velho discípulo e beijou -a com veneração.
Ananias tinha os

olhos rasos de pranto.
Ele próprio não podia prever as alegrias infinitas que o

esperavam na pensão singela da “rua Direita”.

—Ressuscitastes-me para Jesus — exclamou jubiloso —; serei dele

eternamente.
Sua misericórdia suprirá minhas fraquezas, compadecer -se-á de

minhas feridas, enviará auxílios à miséria de minhalma pecadora, para que a

lama do meu espírito se converta em ouro do seu amor.

— Sim, somos do Cristo — ajuntou o generoso velhinho com a alegria a

transbordar dos olhos.

E, como se fosse de súbito transformado num menino ávido de

ensinamentos, Saulo de Tarso, sentando -se junto do benfeitor amigo, rogou -lhe

todos os informes a respeito do Cristo, dos seus postulados e atos imor –

redouros.
Ananias contou-lhe tudo quanto sabia de Jesus, por intermédio dos

Apóstolos, depois da crucificação a que ele também assistira, em Jerusalém,

na tarde trágica do Calvário.
Esclareceu que era sapateiro em Emaús e tinha

ido à cidade santa para as comemorações do Tem plo, tendo acompanhado o

drama pungente nas ruas regurgitantes de povo.
Falou da compaixão que lhe

causara o Messias coroado de espinhos e apupado pela turba furiosa e

inconsciente.
Profunda a emoção, ao descrever a marcha penosa com a cruz,

protegido por soldados impiedosos, da fúria popular, que vociferava o crime

hediondo.
Curioso pelo desenrolar dos acontecimentos, seguira o condenado

até ao monte.
Da cruz do martírio, Jesus lançára -lhe um olhar inesquecível.

Para o seu espírito, aquele olhar traduzia um chamamento sagrado, que era

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indispensável compreender.
Profundamente impressionado, a tudo assistiu até

ao fim.
Daí a três dias, ainda sob o peso daquelas angustiosas impressões, eis

que lhe chega a nova alvissareira de que o Cristo havia ressuscitado dos

mortos para a glória eterna do Todo -Poderoso.
Seus discípulos estavam ébrios

de ventura.
Então, procurou Simão Pedro para conhecer melhor a

personalidade do Salvador.
Tão sublime a narrativa, tão elevados os

ensinamentos, tão profunda a revelação que lhe aclarava o espírito, que

aceitou o Evangelho sem mais hesitação .
Desejoso de compartilhar o trabalho

que Jesus legara aos que lhe pertenciam, regressou a Emaús, dispôs dos bens

materiais que possuía e esperou os Apóstolos galileus em Jerusalém, onde se

associou a Pedro nas primeiras atividades da igreja do “Caminho”.
A essência

dos ensinamentos do Cristo vitalizara -lhe o espírito, Os achaques da velhice

haviam desaparecido.
Logo que João e Filipe chegaram a Jerusalém para

cooperar com o antigo pescador de Cafarnaum na edificação evangélica,

combinaram sua transferência para Jope, a fim de atender a inúmeros pedidos

de irmãos desejosos de conhecer a doutrina.
Ali estivera até que as

perseguições intensificadas com a morte de Estevão obrigaram -no a retirar-se.

Saulo bebia-lhe as palavras com singular enlevo como quem fr anqueava

um mundo novo.
A referência às perseguições avivava os remorsos acerbos –

Em compensação, a alma estava repleta de votos sinceros, pro missores de

uma vida nova.

— É verdade — dizia, enquanto o narrador fazia longa pausa —, vim a

Damasco com outorga do Templo para vos levar preso a Jerusalém, mas

fostes vós que chegastes com outorga de Jesus e a Ele me jungistes para

sempre.
Se vos algemasse, na minha ignorância, levar -vos-ia ao tormento e à

morte; vós, salvando-me do pecado, me transformastes em escravo voluntário

e feliz!

Ananias sorriu, sumamente satisfeito.

Saulo pediu-lhe, então, falasse de Estevão, no que foi atendido, com

solicitude.
Em seguida, pediu informes da sua viagem de Jope a Jerusalém.

Com muita prudência, desejava do benfeitor qu alquer alusão a Abigail.

Formulando o pedido, fê-lo com tal inflexão carinhosa, que o velho discípulo,

adivinhando-lhe o intuito, falou com brandura:

— Não precisarás confessar teus anseios de moço.
Leio em teus olhos o

que principalmente desejas.
Entre Jo pe e Jerusalém, descansei muito tempo

na vizinhança de um compatrício que, apesar de fariseu, nunca privou os

empregados de receberem as sagradas alegrias da Boa Nova.
Esse homem,

Zacarias, tinha sob seu teto um verdadeiro anjo do céu.

Era a jovem Abigail, que, depois de receber o batismo de minhas mãos,

confessou que te amava muito.
Falava do teu amor com ternura ardente e

muitas vezes me convidou a orar pela tua conversão a Jesus -Cristo! .
.
.

Saulo ouvia emocionado e, após ligeiro intervalo em que o amoros o

velhinho parecia meditar, voltou a dizer como se falasse consigo:

— Sim, se ela ainda vivesse!.
.
.

Ananias recebeu a observação sem surpresa e acen tuou:

—Desde que se aproximou de mim, notei que Abigail não ficaria muito

tempo na Terra.

Suas cores esmaecidas, o brilho intenso dos olhos, falavam -me da sua

condição de anjo exilado.
Mas, devemos crer que ela viva no plano imortal.
E

quem sabe? Talvez suas rogativas aos pés de Jesus hajam contribuído para

131

que o Mestre te convocasse à luz do Eva ngelho, às portas de Damasco!.
.
.

O velho discípulo do “Caminho” estava comovido.
Recebendo aquelas

carinhosas evocações, Saulo chorava.
Compreendia, sim, que Abigail não

poderia estar morta.
A visão de Jesus redivivo bastava para dissipar -lhe todas

as dúvidas.
Certamente, a escolhida de sua alma apie dara-se de suas

misérias, rogara ao Salvador, com insis tência, lhe socorresse o espírito

mesquinho e, por venturosa coincidência, o mesmo Ananias que lhe havia

preparado o coração para as bênçãos do Céu, esten dera-lhe igualmente as

mãos amigas, cheias de caridade e perdão.
Agora, pertenceria para sempre

àquele Cristo amoroso e justo, que era o Messias prometido.
Nas emoções

extremas que lhe caracterizavam os sentimen tos, passou a considerar o poder

do Evangelho, examinando seus ilimitados recursos transformadores.

Queria mergulhar o espírito nas suas lições iluminadas e subli mes, banharse

naquele rio de vida, cujas águas do amor de Jesus fecundavam os corações

mais áridos e desertos.
Aquela meditação profun da empolgava-lhe, agora, a

alma toda.

—Ananias, meu mestre — disse o ex-rabino, com entusiasmo —, onde

poderei obter o Evangelho sagrado?

O antigo discípulo sorriu com bondade, e observou:

— Antes de tudo, não me chames mestre.
Este é e será sempre o Cris to.

Nós outros, por acréscimo da misericórdia divina, somos discípulos, irmãos na

necessidade e no trabalho redentor.
Quanto à aquisição do Evangelho,

somente na igreja do “Caminho”, em Jerusalém, poderíamos obter uma cópia

integral das anotações de Levi.

E revolvendo o interior de surrada patrona, reti rava alguns pergaminhos

amarelentos, nos quais conseguira reunir alguns elementos da tradição

apostólica.
Apresentando essas notas dispersas, Ananias acrescen tava:

— Verbalmente, tenho de cor quase todos os ensinamentos; mas, no que

se refere à parte escrita, aqui tens tudo que possuo.

O moço convertido recebeu as anotações, assaz admi rado – Debruçou-se

imediatamente sobre os velhos rabis cos e devorava-os com indisfarçável

interesse.

Depois de refletir alguns minutos, acentuava:

— Se possível, pedir-vos-ia deixar-me estes preciosos ensinamentos, até

amanhã.
Empregarei o dia em copiá -los para meu uso particular.
O

estalajadeiro me comprará os pergaminhos necessários.

E como que já iluminado daquele espí rito missionário que lhe assinalou as

menores ações, para o resto da vida, ponderava atento:

— Precisamos estudar um meio de difundir a nova revelação com a maior

amplitude possível.
Jesus é um socorro do Céu.
Tardar na sua mensagem é

delongar o desespero dos homens.
Aliás, a palavra “evangelho” significa “boas

notícias”.
É indispensável espalhar essas notícias do plano mais elevado da

vida.
Enquanto o velho pregador do “Caminho” obser vava-o interessado, o

convertido de Damasco chamou o hoteleiro para com prar os pergaminhos.

Judas surpreendeu-se ao verificar a cura insólita.
Satisfazendo -lhe a

curiosidade, o jovem de Tarso falou sem rebuços:

— Jesus enviou-me um médico.
Ananias veio curar -me em seu nome.

E antes que o homem se recobrasse do espanto, cumul ava-o de

recomendações a respeito dos pergami nhos que desejava, entregando-lhe a

132

quantia necessária.

Dando largas ao entusiasmo que lhe ia nalma, diri giu-se novamente a

Ananias, expondo-lhe seus planos:

— Até aqui, ocupava o meu tempo no estudo e na exeg ese da Lei de

Moisés; agora, porém, encherei as horas com o espírito do Cristo.
Trabalharei

nesse mister até ao fim dos meus dias.
Buscarei iniciar meu trabalho aqui

mesmo em Damasco.

E, fazendo uma pausa, perguntava ao benfeitor que o ouvia em silêncio:

—Conheceis na cidade um rapaz fariseu de nome Sadoc?

—Sim, é quem tem chefiado as perseguições nesta cidade.

— Pois bem — continuava o jovem tarsense aten cioso —, amanhã é

sábado e haverá preleção na sinagoga.
Pretendo procurar os amigos e falar –

lhes publicamente do apelo que o Cristo me endereçou.
Quero estudar vos sas

anotações ainda hoje, porque me darão assunto para a primeira prédica do

Evangelho.

—Para ser sincero — disse Ananias com a sua experiência dos homens —

, acho que deves ser muito prudente nesta nova fase religiosa.
É possível que

teus amigos da sinagoga não estejam preparados para rece ber a luz da

verdade toda.
A má-fé tem sempre caminhos para tentar a confusão do que é

puro.


Mas se eu vi Jesus, não tenho o direito de ocultar uma revela ção

incontestável — exclamou o neófito, como a salientar, antes de tudo, a boa

intenção que o animava.

—Sim, não digo que fujas do testemunho — explicou, calmo, o velho

discípulo —‘ mas devo encarecer a maior prudência nas atitudes, não pela

doutrina do Cristo, superior e invulnerável a quaisquer ataques dos homens,

mas, por ti mesmo.

—Por mim nada posso temer.
Se Jesus me res tituiu a luz dos olhos, não

deixará de iluminar meus caminhos.
Quero comunicar a Sadoc a ocorrência

que deu novos rumos ao meu de stino.
E o ensejo não poderia ser mais

oportuno, porque sei que hospeda em sua casa, ainda agora, alguns levitas de

renome, recém-chegados de Chipre.

—Que o Mestre te abençoe os bons propósitos — disse o velho sorridente.

Saulo sentia-se feliz.
A presença de Ananias confortava-o sobremodo.

Como velhos e fiéis amigos, almo çaram juntos.
Em seguida e sempre

satisfeito, o generoso enviado do Cristo retirou-se, deixando o ex-rabino todo

entregue à meticulosa cópia dos textos.

No dia seguinte, Saulo de Tarso levantou-se lépido e bem disposto.
Sentiase

revigorado para uma vida nova.
As recordações amargas lhe desertaram da

memória.
A influência de Jesus enchia -o de alegrias substanciosas e

duradouras.
Tinha a impressão de haver aberto uma porta nova em sua a lma,

por onde sopravam céleres as inspirações de um mundo maior.

Depois da primeira refeição, não obstante o dissa bor que a atitude de

Sadoc lhe causara, procurou avis tar-se com o amigo, levado pela sinceridade

que lhe pautava os mínimos atos da vida.
Nã o o encontrou, contudo, na

residência particular.
Um servo informou que o amo saíra com alguns

hóspedes em direção à sinagoga.

Saulo foi até lá.
Os trabalhos do dia estavam ini ciados.
Fora feita a leitura

dos textos de Moisés.
Um dos levitas de Citium ha via tomado a palavra para os

respectivos comentários.

133

A entrada do ex-rabino provocou curiosidade geral.
A maioria dos

presentes tinha conhecimento da sua importância pessoal, bem como do seu

verbo ardoroso e seguro.
Sadoc, porém, ao vê -lo, fez-se pálido, e mais ainda

quando e jovem de Tarso lhe pediu uma palavra em particular.
Embora

contrafeito, foi-lhe ao encontro.
Cumprimentaram-se sem dissimular a nova

impressão que, já agora, mantinham entre si.

Em face das primeiras observações do novel evan gelista, formuladas em

tom amável, o amigo de Damasco explicou, evidenciando o seu orgulho

ofendido:

— De fato, sabia que estavas na cidade e cheguei mesmo a procurar -te na

pensão de Judas; tais foram, porém, as informações do hoteleiro, que me

abstive de ir ao teu aposento.
E cheguei até a pedir -lhe segredo da minha

visita.
Com efeito, parece incrível que te ren desses, também tu, passivamente,

aos sortilégios do “Caminho”! Não posso compreender semelhante transmuta –

ção em tua robusta mentalidade.

—Mas, Sadoc — replicou o jovem tarsense muito calmo —, eu vi Jesus

ressuscitado.
.
.

O outro fez grande esforço para conter uma ruidosa gargalhada.

—Será possível — objetou com zombaria — que tua índole sentimental,

tão contrária a manifestações de misticismo, tenha capi tulado nesse terreno?

Acreditarias mesmo em tais visões? Não poderias imaginar -te vítima de algum

desfaçado adepto do carpinteiro? Tuas atitudes de agora nos causarão

profunda vergonha.
Que dirão os homens irresponsáveis, que nada conhecem

da Lei de Moisés? E a nossa posição no partido dominante, da raça? Os

colegas do farisaísmo hão de arregalar os olhos, quando souberem da tua

clamorosa defecção.

Quando aceitei o encargo de perseguir os companheiros do operá rio de

Nazaré, reprimindo-lhes as atividades perigosas, fi-lo pela amizade que te

consagrava; e não te doerá a traição dos votos anteriores? Considera como se

dificultará nosso escopo, quando se espalhar a notícia de que capitulaste

perante esses homens sem cultura e sem consciência.

Saulo fitou o amigo, revelando imensa preocupação no olhar ansioso.

Aquelas acusações eram as premissas do acolhimento que o aguardava no

cenáculo dos velhos companheiros de lutas e edificações religiosas.

—Não — disse ele sentindo fundamente cada pa lavra —, não posso

aceitar as tuas argüições.
Repito que vi Jesus de Nazaré e devo proclamar que

nele reconheço o Messias prometido pelos nossos profetas mais eminentes.

Enquanto o outro fazia largo gesto admirativo, ao observar aquela inflexão

de certeza e sinceridade.
Saulo continuava convicto:

— Quanto ao mais, considero que, a todo tempo, devemos e podemos

reparar os erros do passado.
E é com esse ardor de fé que me proponho

regenerar minhas próprias estradas.

Trabalharei, doravante, pela minha certeza em Cristo Jesus.
Nã o é justo

que me perca em ponderações sentimentalistas, olvidando a ver dade; e assim

procederei em benefício dos meus pró prios amigos.
Os amantes das

realidades da vida sempre foram os mais detestados, ao tempo em que

viveram.
Que fazer? Até aqui, minhas pregações nasciam dos textos recebidos

dos antepassados veneráveis, mas, hoje, minhas asserções se baseiam não

somente nos repositórios da tradição, senão também na prova testemunhal.

Sadoc não conseguiu ocultar a surpresa.

134

—Mas.
.
.
a tua posição? E os teus parentes? E

o nome? E tudo que recebeste dos que rodeiam tua personalidade com

fervorosos compromissos? — perguntou Sadoc revocando-o ao passado.

Agora, estou com o Cristo e todos nós lhe per tencemos.
Sua palavra

divina convocou-me a esforços mais ardentes e ativos.
Aos que me

compreenderem devo, naturalmente, a gratidão mais sagrada; entretanto, para

os que não possam entender guardarei a melhor atitude de serenidade,

considerando que o próprio Mes sias foi levado à cruz.

—Também tu com a mania do martírio?

O interpelado guardou uma bela expressão de digni dade pessoal e

concluiu:

—Não posso perder-me em opiniões levianas.
Espe rarei que o teu amigo

de Chipre termine a preleção, para relatar minha experiência diante de todos.

—Falar nisso aqui?

—Por que não?

—Seria mais razoável descansares da viagem e da enfermidade,

meditando melhor no assunto, mesmo por que tenho esperança nas tuas

reconsiderações, relativamente ao acontecido.

—Sabes, porém, que não sou nenhuma criança e cumpre -me esclarecer a

verdade, em qualquer circunstância.

—E se te apuparem? E se fores considerado traidor?

—A fidelidade a Deus deve ser maior que tudo isso, aos nossos olhos.

— É possível, no entanto, que não te concedam a palavra — ponderou

Sadoc após esbarrar com a força daquelas profundas convicções.

— Minha condição é bastante para que ninguém se atreva a negar -me o

que é de justiça.

— Então, seja.
Responderás pelas conseqüências — concluiu Sadoc

constrangido.

Naquele momento, ambos compreenderam a imen sidão da linha divisória

que os extremava.
Saulo per cebeu que a amizade que Sadoc sempre lhe

testemunhara baseava-se nos interesses puramente humanos.
Abando nando a

falsa carreira que lhe dava prestígio e brilho, via esfumar -se a cordialidade do

outro.
Mas, de tal cogitação, logo lhe veio à mente que, também ele, assim

procederia, provavelmente, se não tivesse Jesus no coração.

Sereno e desassombrado, evitou aproximar -Se do local onde se

acomodavam os visitantes ilustres, bus cando aproximar-se do largo estrado em

que se improvisara uma nova tribuna.
Terminada a dissertação do levita de

Citium, Saulo surgiu à vista de todos os presentes, que o saudaram com

olhares ansiosos.
Cumprimentou, afável, os diretores da reunião e pediu vênia

para expor suas idéias.

Sadoc não tivera coragem de criar um ambiente antipático, para deixar que

tudo corresse à feição das circunstâncias, e foi por isso que os sacerdotes

apertaram a mão de Saulo com a simpatia de sempre, acolhendo com imensa

alegria o seu alvitre.

Com a palavra, o ex-rabino ergueu a fronte, nobremente, como costumava

fazer nos seus dias triunfais.

— Varões de Israel! começou em tom solene — em nome do Todo-

Poderoso, venho anunciar-vos hoje, pela primeira vez, as verdades da nova

revelação.
Temos ignorado, até agora, o fato culminante da vida da Hu –

manidade, O Messias prometido já veio, consoante o afirmaram os profetas

135

que se glorificaram na virtude e no sofrimento.
Jesus de Nazaré é o Salvador

dos pecadores.

Uma bomba que estourasse no recinto, não causa ria maior espanto.
Todos

fixavam o orador, atônitos.
A assembléia estava obstúpida.
Saulo, contudo,

prosseguia intrépido, depois de uma pausa:

—Não vos assombreis com o que vos digo.
Conhe ceis minha consciência

pela retidão de minha vida, pela minha fidelidad e às leis divinas.
Pois bem: é

com este patrimônio do passado que vos falo hoje, reparando as faltas

involuntárias que cometi nos impulsos sinceros de uma perseguição cruel e

injusta.
Em Jerusalém fui o primeiro a condenar os apóstolos do “Caminho”;

provoquei a união de romanos e israelitas para a repressão, sem tréguas, a

todas as atividades que se prendessem ao Nazareno; varejei lares sagrados,

encarcerei mulheres e crianças, submeti alguns à pena de morte, ocasionei um

vasto êxodo das massas operárias que trabalhavam pacificamente na cidade

para seu progresso; criei para todos os espíritos mais sinceros um regime de

sombras e terrores.
Fiz tudo isso, na falsa suposição de defender a Deus,

como se o Pai Supremo necessitasse de míseros defensores!.
.
.
Mas, de

viagem para esta cidade, autorizado pelo Sinédrio e pela Corte Provincial, para

invadir os lares alheios e perseguir criaturas inofensivas e ino centes, eis que

Jesus me aparece às vossas portas e me pergunta, em pleno meio -dia, na

paisagem desolada e deserta: — Saulo, Saulo, por que me persegues?

A essa evocação, a voz eloqüente se enternecia e as lágrimas lhe corriam

copiosas.

Interrompera-se ao recordar a ocorrência decisiva do seu destino.
Os

ouvintes contemplavam-no assombrados.

—Que é isso? — diziam alguns.

—O doutor de Tarso graceja!.
.
.
— afirmavam outros sorrindo, convictos de

que o jovem tribuno estivesse buscando maior efeito oratório.

—Não, amigos — exclamou com veemência —, jamais gracejei convosco

nas tribunas sagradas.
O Deus justo n ão permitiu que minha violência

criminosa fosse até ao fim, em detrimento da verdade, e consentiu, por

misericórdia de acréscimo, que o mísero servo não encon trasse a morte sem

vos trazer a luz da crença nova!.
.
.

Não obstante o ardor da pregação, q ue deixava em todos os ouvidos

ressonâncias emocionais, rompeu no recinto estranho vozerio.
Alguns fariseus

mais exaltados interpelaram Sadoc, em voz baixa, quanto ao ines perado

daquela surpresa, obtendo a confirmação de que Saulo, de fato, parecia

extremamente perturbado, alegando ter visto o carpinteiro de Nazaré nas

vizinhanças de Damasco.
Imediatamente estabeleceu -se enorme confusão em

toda a sala, porque havia quem visse no caso perigosa defecção do rabino, e

quem opinasse por enfermidade súbita, que o houvesse dementado.

—Varões de minha antiga fé — trovejou a voz do moço tarsense, mais

incisiva —, é inútil tentardes empanar a verdade.
Não sou traidor nem estou

doente.
Estamos defrontando uma era nova, em face da qual todos os nossos

caprichos religiosos são insignificantes.

Uma chuva de impropérios cortou-lhe repentina-mente a palavra.

— Covarde! Blasfemo! Cão do “Caminho”!.
.
.
Fora o traidor de Moisés!.
.
.

Os apodos partiam de todos os lados.
Os mais afei çoados ao ex-rabino,

que se inclinavam a supô-lo vítima de graves perturbações mentais, entraram

em conflito com os fariseus mais rudes e rigorosos.
Algumas ben galas foram

136

atiradas à tribuna com extrema violencia.
Os grupos, que se haviam atracado

em luta, espalhavam forte celeuma na sinagoga, percebendo o orador que se

encontravam na iminência de irreparáveis desastres.

Foi quando um dos levitas mais idosos assomou ao grande estrado,

levantando a voz com toda a energia de que era capaz e rogando aos

presentes acompanhá-lo na recitação de um dos Salmos de David.
O convite

foi aceito por todos.
Os mais exaltados repetiram a prece, tomados de

vergonha.

Saulo acompanhava a cena com profundo interesse.

Terminada a oração, disse o sacerdote, com ênfase irritante:

— Lamentemos este episódio, mas evitemos a confusão que em nada

aproveita.
Até ontem, Saulo de Tarso honrava as nossas fileiras como

paradigma de triunfo; hoje, sua palavra é para nós um galho de espinhos.
Com

um passado respeitável, esta atitude de agora só nos merece condenação.

Perjúrio? Demência? Não o sabemos com certeza.
Outro fora o tribuno e

apedrejá-lo-íamos sem pestanejar; mas, com um antigo colega os processos

devem ser outros.
Se está doente, só merece compaixão; se traidor, só poderá

merecer absoluto desprezo.
Que Jerusalém o julgue como seu embaixador.

Quanto a nós, encerremos as pregações da sinagoga e recolhamo -nos à paz

dos fiéis cumpridores da Lei.

O ex-rabino suportou a increpação com grande sere nidade a lhe

transparecer dos olhos.

Intimamente, sentia-se ferido no seu amor-próprio.
Os remanescentes do

“homem velho” exigiam revide e reparação imediata, ali mesmo, à vista de

todos.
Quis falar novamente, exigir a palavra, obrigar os companheiros a ouvi –

lo, mas sentia-se presa de emoções incoercíveis, que l he infirmavam os

ímpetos explosivos.
Imóvel, notou que velhos afeiçoa dos de Damasco

abandonavam o recinto calmamente, sem lhe fazer sequer uma ligeira

saudação.

Observou, também, que os levitas de Citium pareciam entendê -lo, através

de um olhar de simpatia, ao mesmo tempo que Sadoc fixava -o com ironia e

risinhos de triunfo.
Era o repúdio que chegava.
Acostumado aos aplausos onde

quer que aparecesse, fora vítima da própria ilusão, acreditando que, para falar

com êxito, sobre Jesus, bastavam os lour os efêmeros já conquistados ao

mundo.
Enganara-se.
Seus cômparas punham-no à margem, como inútil.

Nada lhe doía mais que ser assim desaproveitado, quando lhe ardia nalma

a devoção sacerdotal.
Preferia que o esbofeteassem, que o prendessem, que o

flagelassem, mas não lhe tirassem o ensejo de discutir sem peias, a todos

vencendo e convencendo com a lógica de suas definições.
Aquele abandono

feria-o fundo, porque, antes de qual quer consideração, reconhecia não laborar

em benefício pessoal, por vaidade ou egoísmo, mas pelos próprios

correligionários atidos às concepções rígidas e inflexíveis da Lei.
Aos poucos a

sinagoga ficara deserta, sob o calor ardente das primeiras horas da tarde.

Saulo sentou-se num banco tosco e chorou.
Era a luta entre a vaidade de

outros tempos e a renúncia de si mesmo, que começava.
Para conforto da

alma opressa, recordou a narrativa de Ananias, no capítulo em que Jesus

dissera ao velho discípulo que lhe mostraria quanto importava sofrer por amor

ao seu nome.

Acabrunhado, retirou-se do Templo, em busca do benfeitor, a fim de

reconfortar-se com a sua palavra.

137

Ananias não se mostrou surpreendido com a expo sição das ocorrências.

—Vejo-me cercado de enormes dificuldades — dizia Saulo um tanto

perturbado.

Sinto-me no dever de espalhar a nova doutrina, felicitando os nossos

semelhantes; Jesus encheu-me o coração de energias inesperadas, mas a

secura dos homens é de amedrontar os mais fortes.

—Sim — explicava o ancião paciente —, o Senhor conferiu-te a tarefa do

semeador; tens muito boa-vontade, mas, que faz um homem recebendo

encargos dessa natureza? Antes de tudo, procura ajuntar as sementes no seu

mealheiro particular, para que o esforço seja profícuo.

O neófito percebeu o alcance da comparação e per guntou:

—Mas, que desejais dizer com isso?

—Quero dizer que um homem de vida pura e reta, sem os erros da própria

boa-intenção, está sempre pronto a plantar o bem e a justiça no roteiro que

perlustra; mas aquele que já se enganou, ou que guarda alguma culpa, tem

necessidade de testemunhar no sofrimento próprio, antes de ensinar.
Os que

não forem integralmente puros, ou nada sofreram no caminho, jamais são bem

compreendidos por quem lhes ouve simplesmente a palavra.
Contra os seus

ensinos estão suas próprias vidas.
Além do mais, tud o que é de Deus reclama

grande paz e profunda compreensão.
No teu caso, deves pensar na lição de

Jesus permanecendo trinta anos entre nós, preparando -se para suportar nossa

presença durante apenas três.
Para receber uma tarefa do Céu, David con –

viveu com a Natureza apascentando rebanhos; para desbravar as estradas do

Salvador, João Batista meditou muito tempo nos ásperos desertos da Judéia.

As ponderações carinhosas de Ananias caíam-lhe na alma opressa como

bálsamo vitalizante.

— Quando hajas sofrido mais — continuava o benfeitor e amigo sincero —,

terás apurado a compreensão dos homens e das coisas, Só a dor nos ensina a

ser humanos.
Quando a criatura entra no período mais perigoso da existência,

depois da matinal infância e antes da noite da velhice; qua ndo a vida exubera

energias, Deus lhe envia os filhos, para que, com os tra balhos, se lhe

enterneça o coração.
Pelo que me hás confessado, é possível não venhas a

ser pai, mas terás os filhos do Calvário em toda parte.
Não viste Simão Pedro,

em Jerusalém, rodeado de infelizes? Naturalmente, encontrarás um lar maior

na Terra, onde serás chamado a exercer a fraternidade, o amor, o perdão.
.
.
É

preciso morrer para o mundo, para que o Cristo viva em nós.
.
.

Aquelas observações tão sadias e tão mansas pene traram o espírito do exrabino

como bálsamo de consolação de horizontes mais vastos.
Suas palavras

carinhosas fizeram-no recordar alguém que o amava muito.
De cérebro

cansado pelos embates do dia, Saulo esfor çava-se por fixar melhor as idéias.

Ah!.
.
.
agora se lembrava perfeitamente.
Esse alguém era Gamaliel.
Veio -lhe de

súbito o desejo de se avistar com o velho mestre.
compreendia a razão

daquela lembrança.
É que, também ele, pela última vez, lhe falara da

necessidade que sentia dos lugares ermos, para medi tar as sublimes verdades

novas.
Sabia-o em Palmira, na companhia de um irmão.
Como não se

recordara ainda do antigo mestre, que lhe fora quase um pai? Certamente,

Gamaliel recebê-lo-ia de braços abertos, regozijar -se-ia com as suas

conquistas recentes, dar-lhe-ia conselhos generosos quanto aos rumos a

seguir.

Engolfado em recordações cariciosas, agradeceu a Ananias com um olhar

138

significativo, acrescentando sen sibilizado:

— Tendes razão.
.
.
Buscarei o deserto em vez de voltar a Jerusalém

precipitadamente, sem forças, talvez, para enfrentar a incompreensão dos

meus confrades.
Tenho um velho amigo em Palmira, que me acolherá de bom

grado.
Ali repousarei algum tempo, até que possa internar -me pelas regiões

ermas, a fim de meditar as lições recebidas.

Ananias aprovou a idéia com um sorriso.
Ainda ficaram conversando longo

tempo, até que a noite mergulhou a alma das coisas no seu velário de sombras

espessas.

O velho pregador conduziu, então, o novo adepto para a humilde reunião

que se realizava nesse sábado de grandes desilusões para o ex-rabino.

Damasco não tinha propriamente uma igreja; en tretanto, contava

numerosos crentes irmanados pelo ideal religioso do “Caminho”.
O núcleo de

orações era em casa de uma lavadeira humilde, companheira de fé, que

alugava a sala para poder acudir a um filho paralítico.
Profundamente

admirado, o moço tarsense enxergou ali a miniatura do quadro observado pela

primeira vez, quando tivera a curiosidade invencível de assistir às célebres

pregações de Estevão em Jerusalém.
Em torno da mesa rústica, juntavam-se

míseras criaturas da plebe, que ele sempre mantivera separada da sua esfera

social.
Mulheres analfabetas com crianças ao colo, velhos pe dreiros rudes,

lavadeiras que não conseguiam conjugar duas palavras certas.
Anciães de

mãos trêmulas, amparando-se a cajados fortes, doentes misérrimos que

exibiam a marca de enfermidades dolorosas.
A cerimônia parecia ainda mais

simples que as de Simão Pedro e seus com panheiros galileus.
Ananias

chefiava e presidia o ato.
Sentando -se à mesa, qual patriarca no seio da

família, rogou as bênçãos de Jesus para a boa -vontade de todos.
Em seguida,

fez a leitura dos ensinos de Jesus, respi gando algumas sentenças do Mestre

Divino nos pergaminhos esparsos.
Depois de comentar a página lida,

ilustrando-a com a exposição de fatos significativos, do seu conhecimento, ou

da sua experiência pessoal, o velho discípulo do Evangelho deixava o lugar,

percorria as filas de bancos e impunha as mãos sobre os doentes e

necessitados.
Comumente, segundo o hábito das primeiras células cristãs do

primeiro século, ao memorar as alegrias de Jesus quando servia o repasto aos

discípulos, fazia-se modesta distribuição de pão e água pura, em nome do

Senhor.
Saulo serviu-se do bolo simples, enternecidamente.
Para sua alma, o

cibo mesquinho tinha o sabor divino da fraternidade universal.
A água clara e

fresca da bilha grosseira soube-lhe a fluído de amor que partia de Jesus,

comunicando-se a todos os seres.
Ao fim da reunião, Ananias orava

fervorosamente.
Depois de contar a vi são de Saulo e a sua própria, nos

comentários singelos daquela noite, pedia ao Salvador prote gesse o novo

servo em demanda a Palmira, a fim de meditar mais demoradamente na

imensidão de suas misericórdias.
Ouvindo-lhe a rogativa que o calor da

amizade revestia de amavio singular, Saulo chorou de reconheci mento e

gratidão, comparando as emoções do rabino que fora, com as do servo de

Jesus que agora queria ser.
Nas reuniões suntuosas do Sinédrio, jamais ouvira

um companheiro exorar ao Céu com aquela sincer idade superior.
Entre os

mais afeiçoados só encontrara elogios vãos, prontos a se transformarem em

calúnias torpes, quando lhes não podia conceder favores materiais.
Em toda

parte, admiração superficial, filha do jogo dos interesses inferiores.
Ali, a

situação era outra.
Nenhuma daquelas criaturas desfavorecidas da sorte viera

139

pedir-lhe fácilidades; todos pareciam satisfeitos ao serviço de Deus, que assim

os congregava a termo de trabalhos exaustivos e penosos.
E, por fim, ainda

rogavam a Jesus lhe concedesse paz de espírito para o seu empreendimento.

Terminada a reunião, Saulo de Tarso tinha lágri mas nos olhos.
Na igreja do

“Caminho”, em Jerusalém, os Apóstolos galileus o trataram com especial

deferência, atentos à sua posição social e política, senhor da s regalias que as

convenções do mundo lhe conferiam; mas os cristãos de Damasco

impressionaram-no mais vivamente, arrebataram-lhe a alma, conquistando-a

para uma afeição imorredoura, com aquele gesto de confiança e cari nho,

tratando-o como irmão.

Um a um, apertaram-lhe a mão com votos de feliz viagem.
Alguns velhos

mais humildes beijaram-lhe as mãos.
Tais provas de afeto davam-lhe novas

forças.
Se os amigos do judaísmo lhe desprezavam a palavra, acintosos e

hostis, começava agora a encontrar no seu camin ho os filhos do Calvário.

Trabalharia por eles, consagraria ao seu consolo as energias da mocidade.

Pela primeira vez na vida, revelou interesse pelo sor riso das criancinhas.
Como

se desejasse retribuir as demonstrações de carinho recebidas, tomou nos

braços um menino doente.
Diante da pobre mãe sorridente e agradecida, fez –

lhe festas, acariciou-lhe os cabelos desajeitadamente.
Entre os acúleos

agressivos de sua alma apaixonada, começavam a desabrochar as flores de

ternura e gratidão.

Ananias estava satisfeito.
Junto dos irmãos de mais confiança,

acompanhou o neófito até à pensão de Judas.
Aquele modesto grupo

desconhecido percorreu as ruas banhadas de luar, estreitamente unido e

reconfortando-se em comentários cristãos.
Saulo admirava -se de haver

encontrado tão depressa aquela chave de harmonia que lhe proporcionava

segura confiança em todos.
Teve a impressão de que nas genuínas

comunidades do Cristo a amizade era diferente de tudo que lhe dava

expressão nos agrupamentos mundanos.
Na diversidade das lutas sociais o

traço dominante das relações cifrava -se agora, a seus olhos, nas vantagens do

interesse individual; ao passo que, na unidade de esforços da tarefa do Mestre,

havia um cunho divino de confiança, como se os com promissos tivessem o

ascendente divino, original.

Todos falavam, como nascidos no mesmo lar.
Se expunham uma idéia

digna de maior ponderação, faziam-no com serenidade e geral compreensão

do dever; se versavam assuntos leves e simples, os comentários timbravam

franca e confortadora alegria.
Em nenhum deles notava a preocupação de

parecer menos sincero na defesa dos seus pontos de vista; mas, ao invés,

lhaneza de trato sem laivos de hipocrisia, porque, em regra, sentiam -se sob a

tutela do Cristo, que, para a consciência de cada um, era o amigo i nvisível e

presente, a quem ninguém deveria enganar.

Consolado e satisfeito de haver encontrado amigos na verdadeira acepção

da palavra, Saulo chegou à estalagem de Judas, despedindo -se de todos

profundamente comovido.
Ele próprio surpreendia -se com o sabor de

Intimidade com que as expressões lhe afloravam aos lábios.
Agora

compreendia que a palavra “irmão”, lar gamente usada entre os adeptos do

“Caminho”, não era fútil e vã.
Os companheiros de Ananias conquistaram -lhe o

coração.

Nunca mais esqueceria os irmãos de Damasco.

No dia imediato, contratando um serviçal indicado pelo estalajadeiro, Saulo

140

de Tarso, ao amanhecer, embora surpreendesse o dono da casa com o seu

ânimo resoluto, pôs-se a caminho da cidade famosa, situada num oásis em

pleno deserto.

Nas primeiras horas da manhã, saíam das portas de Damasco dois

homens modestamente trajados, à fren te de pequeno camelo carregado das

necessárias provisões.

Saulo fizera questão de partir assim, a pé, de modo a iniciar a vida com

rigores que lhe seriam sumamente benéficos mais tarde.
Não viajaria mais na

qualidade de doutor da Lei, rodeado de servos, sim como discípulo de Jesus,

adstrito aos seus programas.
Por esse motivo, considerou preferível viajar

como beduíno, para aprender a contar, sempre, com as pró prias forças.
Sob o

calor calcinante do dia, sob as bênçãos refrigeradoras do crepúsculo, seu

pensamento estava fixo naquele que o chamara do mundo para uma vida nova.

As noites do deserto, quando o luar enche de sonho a desolação da paisagem

morta, são tocadas de misteriosa beleza.
Sob as frondes de alguma tamareira

solitária, o convertido de Damasco aproveitava o silêncio para profundas

meditações.
O firmamento estrelado tinha, agora, para seu espírito,

confortadoras e permanentes mensagens.
Estava convi cto de que sua alma

havia sido arrebatada a novos horizontes, porque, através de todas as coisas

da Natureza, parecia receber o pensamento do Cristo que lhe falava

carinhosamente ao coração.

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