Pouco a pouco, o diálogo vai se desenvolvendo, a partir de uma espécie de monólogo, pois, no princípio, como vimos, é necessário deixar o Espírito falar, para que informe sobre si mesmo, o que acaba acontecendo.
Muitos o fazem logo de início, dizendo prontamente a que vieram e o que pretendem.
Mesmo a estes, porém, é preciso deixar falar, a fim de nos aproximarmos do âmago de seus problemas.
Outros são bem mais artificiosos.
Usam da ironia, fogem às perguntas, respondendo-nos com outras perguntas ou com sutis evasivas, que nada dizem.
É comum tentarem envolver o grupo todo na conversa.
Várias artimanhas são empregadas para esse fim.
Dirigem perguntas aos demais circunstantes; dizem gracejos, para provocar o riso; tentam captar a atenção por meio de gestos e toques, nos braços ou nas mãos dos que lhes ficam mais próximos; ensaiam a indução hipnótica ou o passe magnético.
Muita atenção com estes artifícios.
Eles trazem em si uma sutileza perigosa e envolvente, pois constituem uma técnica de penetrar o psiquismo alheio.
Um companheiro esclarecido e experimentado que, do mundo invisível, nos orientava, costumava sempre dar uma palavra inicial, de estímulo e encorajamento, para as árduas tarefas que nos esperavam cada noite, todas as semanas.
Ele tinha o hábito de fazer uma saudação geral, e depois dirigir-se a cada um de nós em particular, com uma palavra mais pessoal, afetuosa e cordial.
Seu objetivo não era o de distinguir este ou aquele, e nem mesmo de dar conselhos individuais sobre nossos problemas humanos; era apenas o de estabelecer, entre nós todos e ele, um vínculo positivo, que nos predispunha ao trabalho em equipe e certamente contribuía para que nos mantivéssemos, todos, em boa faixa de equilíbrio e concentração.
Suas palavras singelas, a cada um de nós, criavam, pois, este elo, necessário ao trabalho.
Neste caso, a técnica era obviamente utilizada para o bem, mas, sem dúvida alguma, os Espíritos desarmonizados também a conhecem e procuram empregá-la, com finalidades muito diversas.
Se um companheiro desavisado responde, mesmo com um simples sorriso, os resultados podem se tornar desastrosos.
Tivemos disso um exemplo, certa vez, quando alguém, em nosso grupo, achou graça num comentário do manifestante.
O Espírito começou a dirigir-se a ele, esquecendo aparentemente a presença do doutrinador e suas palavras, pois isto faz parte da técnica.
Como o companheiro correspondeu à sua abordagem, o Espírito sentiu-se à vontade para prosseguir e foi muito franco e espontâneo ao manifestar sua satisfação, por ver que encontrava apoio num dos componentes do grupo, muito embora soubéssemos perfeitamente que este não o estava apoiando, mas certamente o estava favorecendo involuntariamente.
Sentiu-se fortalecido e disse, mesmo, após longo tempo de conversa, que não
se retirava — esta é outra técnica intimidadora, que ainda estudaremos — com a clara intenção de desmoralizar o doutrinador, que ficaria falando sozinho.
Há, pois, excelentes razões para manter como regra, de raríssimas exceções, o princípio de deixar que apenas o doutrinador fale com o manifestante.
Ë através daquele que atuam os Espíritos orientadores, que ficariam com seu esforço dispersado se tivessem que dar atenção e atuar, via intuição, sobre todos os componentes do grupo incumbidos ou autorizados a falar com o Espírito.
O doutrinador tem que estar, assim, bem atento aos seus companheiros encarnados, em torno da mesa, médiuns ou não, para que se mantenham firmes nas suas posições, o que é importante para o desenvolvimento das tarefas.
Estes companheiros não devem fechar-se na indiferença, quanto ao que se passa, pois emprestam seu apoio vibratório silencioso ao doutrinador; mas não devem cometer o engano de se envolver na conversa, a ponto de, mesmo mentalmente, interferir no difícil diálogo que o doutrinador está tentando estabelecer, para perscrutar o arcabouço psicológico e moral do seu interlocutor invisível.
Às vezes, os circunstantes encarnados, não bem afinados afetivamente com o doutrinador, podem introduzir perigosos fatores de desagregação no grupo, se persistirem em acompanhar mentalmente a doutrinação, com um senso crítico imprudente, imaginando o que diriam em tais circunstâncias.
Os Espíritos manifestantes têm, freqüentemente, condições de captar-lhes o pensamento e, se o fizerem, certamente tirarão partido da discrepância, mesmo que ela fique imanifesta.
Por isso, tanto se insiste na importância da fraternidade, entendimento e compreensão entre todos os componentes do grupo encarnado.
Não que o doutrinador seja infalível, perfeito, nem que esteja sempre certo e com a razão; mas ele precisará do apoio e da compreensão de seus companheiros, ainda que tenha falhado; e, com freqüência, ele falha mesmo, porque o terreno em que pisamos, no trato com esses irmãos desarvorados.
é difícil.
imprevisível e traiçoeiro.
Dessa forma, alguém que não possa concordar com os métodos empregados pelo doutrinador, a ponto de tornar-se criticamente negativo, deve afastar-se do grupo.
Ê possível, claro, que ele esteja certo, e o doutrinador errado; mas é melhor excluir-se, do que permanecer no grupo como um ponto de atrito oculto, que mina o trabalho.
Se não pode ajudar, que, pelo menos, não acarrete maiores dificuldades.
Se ele estiver certo, na maneira de apreciar o trabalho do doutrinador, e este não possuir, mesmo, condições para a sua tarefa, as coisas encaminhar-se-ão para um desfecho natural; se apenas critica e discorda em razão de distorções de sua própria psicologia, então nada tem a contribuir de bom para o grupo e poderá acarretar-lhe considerável dano.
Lembremos, pois, a validade da regra que recomenda que apenas o doutrinador fale com o Espírito manifestante.
É comum que este procure burlar a norma, tentando arrastar outros membros do grupo ao debate.
Convém a eles a generalização da conversa, que afasta o doutrinador e o coloca mais ou menos à margem, numa técnica muito sutil de desmoralização.
Sob condições especiais, no entanto, é possível que ocorra a necessidade, ou a conveniência de alguém mais falar.
Pode ser, por exemplo, que alguém, no grupo, tenha qualquer problema pessoal com o Espírito manifestante, e se sinta fortemente impelido a dizer-lhe uma palavra de conciliação, fazer-lhe um pedido de perdão, um gesto de fraternidade mais objetivo, além do pensamento.
Também pode acontecer que o Espírito manifestante sinta real necessidade de uma palavra direta, com alguém presente que, por amá-lo particularmente, pode ajudar a despertá-lo, com a emoção de uma voz que há muito não ouve, ou com um gesto de que se lembre com saudade.
Em casos assim, o doutrinador julgará, segundo sua intuição ou a instrução dos mentores, permitindo que outra pessoa fale ao Espírito.
Claro que, mesmo assim, deve continuar atento, seguindo com extremo cuidado o diálogo, para retomá-lo quando julgar necessário, porque cabe a ele a responsabilidade por esse aspecto da tarefa; é ele quem está preparado para ela, em vista de suas ligações com os companheiros espirituais, através dos dispositivos especiais a que nos referimos alhures, neste livro.
Fora desses casos, que insistimos em qualificar de excepcionais, deve prevalecer a regra geral do silêncio e da sustentação psicológica aos médiuns e ao doutrinador.
Outra norma subsidiária: os circunstantes, como componentes encarnados do grupo, vigiem bem seus pensamentos.
Mantenham-se atentos ao diálogo, mas não se envolvam nele, nem mesmo por palavras inarticuladas, ou seja, apenas pensadas.
Enquanto isso se passa, a conversa prossegue.
Ainda não dispõe, o doutrinador, de elementos suficientes para formular um juízo acerca do caso que tem diante de si.
Talvez já saiba, por exemplo, a que veio o Espírito, ou seja, descobriu a razão pela qual foi atraido ao grupo.
Estamos tentando, digamos, subtrair, de sua influência obsessiva, alguém que nos pediu ajuda.
Mas é preciso saber por que ele (ou ela) persegue o companheiro encarnado.
Qual a sua ligação com o obsidiado? De onde vem, no tempo e no espaço, o choque que se criou entre eles? Em suma: quais são as fixações do Espírito? Todo processo obsessivo tem o seu núcleo: traição, vingança, espoliação, desamor.
É, quase sempre, um caso pessoal, de conotações essencialmente humanas, com problemas suscitados no relacionamento.
Dificilmente um Espírito obsidia outro apenas porque discorda dele em questões filosóficas ou religiosas, embora isto também seja possível, em casos extremos de fanatismo apaixonado.
Deixemo-lo falar, mas não tudo quanto queira, senão ficará andando em círculo, à volta de sua idéia central.
Neste caso, continuará a repetir incessantemente a mesma cantilena trágica: a vingança, o ódio, a impossibilidade do perdão, o desejo de fazer a vítima arrastar-se no chão, como um louco varrido, e coisas semelhantes.
O doutrinador precisa ter bastante habilidade para mudar o rumo de seu pensamento.
Terá que fazê-lo, não obstante, com muita sutileza, arriscando, aqui e ali, uma pergunta mais pessoal, falando-lhe de uma passagem evangélica, que se aplique particularmente ao seu caso e sempre haverá uma ou mais, que se adaptam perfeitamente às circunstâncias.
Deixe-o falar, porém.
Se grita e esbraveja, procure apaziguá-lo.
Não se esquecer de que, por mais errado que esteja, no seu ódio irracional, ele está convencido dos seus direitos e, até mesmo, da cobertura divina.
Muitos são os que invocam os dispositivos da Lei Maior, para exercerem suas vinganças e perseguições.
Além do mais — dizem —, se podem fazer aquilo, é que Deus o permite.
Ele não tem poderes para fazê-lo cessar tudo? Por que não exerce tais poderes?
Atenção, pois, para essas idéias fixas.
Por mais voltas que dê o Espírito, mesmo com a intenção consciente de ocultar sua motivação, ele não conseguirá isso por muito tempo.
No entanto, é preciso ajudá-lo a quebrar o terrível círculo vicioso em que se debate.
Veja bem: ajudá-lo a quebrar, não quebrar, arrancá-lo à força.
Ele tem que sair com seu próprio esforço.
Ajudar a fazer não é o mesmo que fazer, pelos outros, aquilo que lhes compete realizar.
Por outro lado, a fixação é, às vezes, tão pronunciada e tão absorvente, que o Espírito não tem condições, sequer, de ouvir o doutrinador, ou, pelo menos, não reage de maneira inteligível ao que este lhe diz.
Isto não significa que o doutrinador deve calar-se; continue a falar-lhe, que as palavras irão insensivelmente se depositando nele, e mesmo que ele pareça não ouvir — e isso ocorre, mesmo, em certos casos — seu próprio espírito sente as vibrações fraternas que sustentam as palavras.
Se é que o doutrinador realmente sente o que fala ou, melhor ainda, fala o que de fato sente.
Aguarde-se, pois, o momento de ajudá-lo a sair um pouco de si mesmo.
Tem que haver, na sua memória, outras lembranças, outros sentimentos e até mesmo outras angústias, além daquela que constitui o núcleo da sua problemática.
Coloque, de vez em quando, uma pergunta diferente, procurando atraí-lo para outras áreas da sua memória.
Como, por exemplo: teve filhos? Que fazia para viver? Crê em Deus? Onde viveu? Quando aconteceu o drama? Tem noticias de amigos e parentes daquela época?
É claro, porém, que essas perguntas não devem ser desfechadas numa espécie de bombardeio ou de interrogatório.
Ninguém gosta de submeter-se a devassas íntimas.
Com freqüência, os manifestantes reagem, perguntando se estão sendo forçados a processos inquisitoriais.
Ou, simplesmente, se recusam a responder.
Ou dão respostas evasivas.
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respondem.
Nem sempre estarão prontos para nos ajudarem a ajudá-los, logo nos primeiros contactos.
O processo pode alongar-se por muito tempo, até que adquiram confiança em nós e nas nossas intenções.
O objetivo das perguntas não é, obviamente, o de satisfazer a uma curiosidade malsã e, por isso, devem limitar-se a conduzir a conversação, fornecendo-lhe pontos de apoio, sobre os quais ela possa expandir-se, a fim de afastar o pensamento do comunicante, ainda que temporariamente, do núcleo central que o bloqueia e o impede até mesmo de buscar a saida daquele círculo de fogo e lágrimas em que se encerrou inadvertidamente.
Não nos esqueçamos, porém, de que espontaneamente ele não sairá, não porque não queira, mas porque não sabe.
Sua vingança é a própria razão de ser de sua vida; como vai entregá-la a alguém — a um desconhecido bisbilhoteiro, como o doutrinador — a troco de uma realidade penosa, que é aquele momento patético em que ele descobre que a causa da sua dor está em si mesmo, e não na pessoa que ele persegue e odeia?
Além das fixações penosas, os Espíritos conturbados costumam apresentar cacoetes, sob a forma de trejeitos e contrações, ou, ainda, mutilações e deformações perispirituais.
É certo que tudo isso está ligado ao problema interior que os atormenta.
Já tivemos oportunidade de observar esses pormenores, aparentemente irrelevantes, de muitas maneiras e sob variadas condições.
Vamos a alguns exemplos: citei alhures, neste livro, o episódio do pobre irmão que tinha um braço paralisado.
Notei que durante o diálogo ele não movimentava aquele membro.
Por que seria? No momento que me pareceu oportuno, sem precipitação, perguntei-lhe o que havia com o seu braço.
Ele não quis dizer.
Ou, provavelmente, nem saberia conscientemente a razão, porque costuma funcionar, nestes casos, um mecanismo de defesa, que parece construir uma barricada às nossas costas, para levar-nos a um conveniente esquecimento do passado.
Simplesmente “esquecemos” das causas que nos levaram àquela situação, para poder fixar-nos no objeto do ódio e da vingança.
Não sei, ao certo, se ele sabia a razão da paralisia de seu braço.
Se sabia, tentava ignorá-la.
Quando me propus a curá-lo por meio de passes, ele recusou — sem muita convicção — dizendo que, se ficasse curado, seria apenas para ter mais um braço para empunhar o chicote – -.
– Mesmo assim, levantei-me, orei e dei-lhe passes ao longo do braço imobilizado, e vi logo que ele reagia, sentindo o impacto dos fluídos que o alcançavam.
E, realmente, ficou bom, voltando a movimentar o braço.
Só então, ao que parece, foi possível liberar o seu mecanismo de censura, e ele se lembrou da cena de um passado distante, quando sacrificou, a punhal, a esposa e os filhos, que ele acreditava não fossem seus, pois achava que ela o havia traído.
Exposto o âmago do problema, seu drama resolveu-se.
Outro sentia, ainda, a dor aguda de uma lança que o penetrara há séculos, quando terminou uma existência de inconcebíveis desatinos.
Continuava preso ao local onde exercera um poder discricionário, a ouvir os comentários de visitantes e turistas sobre suas próprias atrocidades.
Um terceiro tinha a voz rouca — seria um antigo câncer? —e quase inaudível.
Sua “cura”, por meio de passes, levou-o a um reexame bem menos apaixonado da figura de seu doutrinador, que ele chamara até de porco!
Outro companheiro desorientado conservava feia cicatriz sobre o olho direito, porque ela lhe dava uma aparência terrível, que atemorizava aqueles a quem ele queria perseguir e afligir.
Em uma oportunidade, tivemos também um caso, intensamente dramático, de um pobre sofredor, guilhotinado na França, durante a Revolução.
Desde então — segundo apuramos em seguida — trazia a cabeça “destacada do corpo”, na mão direita, segura pelos cabelos.
O diálogo inicial foi difícil, pois convicto de que estava sem cabeça, ele não tinha condições de falar.
A custo, porém, o fui convencendo de que podia falar através do médium.
Vivia apavorado ante a idéia de perder de vista a cabeça e nunca mais recuperá-la.
Enquanto a tivesse ali, à mão, mesmo decepada, alimentava a esperança de “repô-la” no lugar.
Isto foi possível fazer, com a graça de Deus.
Oramos e lhe demos passes.
Subitamente, ele sentiu que a cabeça voltara à sua posição correta.
Louco de alegria, ele apalpava-se e só sabia repetir:
— Ela está aqui! Ela está aqui!.
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E conferia, com a ponta dos dedos, toda a anatomia facial e craniana: os olhos, o nariz, a boca, as orelhas.
Estava tudo lá.
E dizia:
— Posso falar! Estou falando!
Queria saber quem fizera o “milagre” de “colar” a cabeça novamente no lugar próprio.
Quanto ao que lhe acontecera, não acreditava que Deus o tivesse feito, para castigá-lo, pois Deus não permitiria que um homem andasse sem cabeça por tanto tempo.
Levo-o cautelosamente para uma introspecção, tentando fazer que ele encontre em si mesmo a razão do seu espantoso sofrimento.
Explico-lhe que vivemos muitas existências, embora as esqueçamos.
Em alguma de suas vidas anteriores ele encontraria a explicação.
“Provavelmente”, digo-lhe, “você andou também cortando a cabeça de alguém”.
É verdade, isso.
Ele se lembra, agora, que eram enfiéis a Jeová e, depois de condenados, ele os executava.
Reviu até a fila de espera.
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Casos mais sérios de deformações espirituais exigem o concurso de médiuns especiais, não apenas para recebê-los, por incorporação, como, também, para ajudar na recomposição da forma “física”, para o que é necessário dispor de algum ectoplasma, além dos passes habituais.
Mesmo para o companheiro a que há pouco nos referimos, de cabeça decepada, o concurso de um médium de efeitos físicos foi decisivo.
Enquanto lhe dávamos passes, ele parecia absorver os fluídos avidamente, procurando impregnar-se deles, com movimentos aflitivos das mãos.
Em outros casos de deformações perispirituais e zoantropia, o médium expeliu realmente grande quantidade de ectoplasma pela boca, o que se percebeu, mesmo sem a vidência, pelos movimentos irreprimíveis que fazia como se estivesse vomitando em seco.
Ainda falaremos sobre a ectoplasmia nos grupos mediúnicos, porque ela tem outras aplicações, além da, que há pouco mencionamos, de ajudar a reconstituir lesões perispirituais e recompor seres reduzidos a formações animalizadas.
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Mas o diálogo prossegue.
Suponhamos já ter sido possível identificar o núcleo principal do problema.
Já descobrimos as razões fundamentais do seu drama.
Não obstante, muito falta ainda para dissolver e dispersar aquele núcleo doloroso.
Mesmo com tudo isso presente à sua consciência, ele ainda insiste em racionalizar a seu jeito, o quadro que se lhe apresenta.
Continua a submetê-lo ao seu próprio juízo e a invocar o seu direito à cobrança.
Já discutimos alguns aspectos teóricos desta questão.
Teoricamente, sim, ele pode cobrar.
Não que tenha um direito assegurado nos códigos divinos, porque a idéia de direito implicaria, talvez, a da impunidade.
Não sei se os juristas que me lêem concordam com isto, mas parece que não podemos ser punidos por exercer uma ação que o direito nos assegura.
É claro que não falo aqui no direito humano, imperfeita imitação dos conceitos superiores do Direito Cósmico, do qual conhecemos as primeiras letras.
Creio que, se Deus me assegurasse o direito de cobrar, impunemente, pela vingança, uma falta cometida contra mim, sua lei não teria sido muito melhor do que a nossa.
Não obstante, tanto numa, como noutra, existe a idéia básica da reparação.
A sociedade humana tenta a reparação pelos caminhos da punição; a divina, pela regeneração.
O criminoso terreno deve pagar pelo que fez, independentemente do que acontece com aquele a quem ele prejudicou.
A lei humana não toma conhecimento da sobrevivência do espírito.
A lei divina pede do ser, através de sua própria consciência, que ele se recomponha perante a sua vítima.
Ante a lei humana, a prisão ou a indenização redimem o criminoso; a lei divina vai adiante e lhe pede a reconciliação, mesmo que, em face dos códigos terrenos, ele esteja quite.
Por outro lado, a lei humana não leva em conta o fato de que o homem sofre justamente aquilo que está nos seus compromissos cármicos, respondendo por desatinos cometidos.
E se não colocamos um ponto final nessa espiral de horrores, ela continuará a abrir-se para baixo e para o futuro, cada vez mais dolorosa e ampla.
Dessa forma, não haveria direito líquido e certo de cobrarmos, nós mesmos, as faltas cometidas contra nós, pois que direito é esse, que reabre o ciclo da culpa e nos obriga a pagar aquilo que consideramos simples reparação?
Mas, como explicar tudo isso, de forma convincente, ao Espírito tumultuado pela paixão da vingança? Como iremos mostrar-lhe a falácia da sua filosofia da reparação? Em muitos casos, ele já está convencido dessa realidade, ou seja, a de que, exercendo a vingança por suas próprias mãos, ele se inscreve novamente como culpado, no tribunal invisível da sua própria consciência.
Não importa.
Ele quer cobrar, assim mesmo.
Quando chegar a hora da dor, ele arcará com as suas responsabilidades, e as sofrerá, diz ele, com prazer, porque pelo menos terá saciado o seu rancor.
Não sabe ele, porém, que o rancor não se satisfaz nunca, muito menos pelos caminhos do sofrimento alheio.
Por mais absurda que pareça a tese ao vingador, o seu ódio somente se estanca, e somente o libera da sua própria dor, pelo perdão.
Sacudido pela tormenta das suas paixões, ele nem percebe que também sofre, e que continua retido, indefinidamente, no processo que ele próprio criou.
Se conseguirmos despertá-lo para essas verdades, estaremos começando a ajudá-lo.
Nem sempre lhe adianta uma bela pregação moral, sobre as virtudes teológicas do perdão.
Ele não se mostrará sensível ao apelo, enquanto não se convencer de que isso é uma realidade irresistível, que o interessa pessoalmente.
Às vezes, basta uma pergunta bem colocada, no momento oportuno.
Acha ele, por exemplo, que, com mais um século ou dois de rancor, vai conseguir o que não conseguiu em dois ou três? Pretende continuar preso à roda-viva da aflição? Por quanto tempo? Não está cansado? Não deseja experimentar ao menos um pouco de paz? Pare e reflita, medite, procure encarar o processo, com objetividade e sangue-frio, como se estivesse apreciando um caso, não o seu caso.
Por que manter dois Espíritos amarrados, vida após vida, revezando-se nas posições de perseguidor e perseguido? Além do mais, a vítima às vezes se lhe escapa irrevogavelmente das mãos pelo próprio sofrimento que lhe é infligido, pelo despertamento de seu Espírito, pelo esforço que faz em ajustar-se perante as leis divinas.
E então o perseguidor não terá mais como atingi-lo.
Poderá ainda insistir em persegui-lo indiretamente, através de seres que lhe são caros, mas isto é uma vingança frustrada e o satisfaz ainda menos do que a outra.
Ao longo do tempo ele ficará falando sozinho, na alienação da sua vingança sem objeto.
Um dia despertará, afinal, para retomar a sua caminhada.
E por que esperar tantos desenganos, se esse dia pode ser hoje, agora?