Ela ultrapassou a barreira dos setenta anos.
Prossegue lúcida e operante, envolvida em trabalhos voluntários, que lhe enchem os dias.
Como ela própria diz: Faltam horas no meu dia para tudo que preciso e desejo fazer.
Vez ou outra sai com amigos.
Nessas horas, os tesouros das lembranças assomam.
Lembra que, morando em cidade interiorana, o leite era trazido, na porta de casa, diariamente, em garrafas de vidro.
Chovesse, fosse frio, caísse a geada, chegava o menino.
Montado em um enorme cavalo.
Para se proteger dos ventos e da chuva, vestia uma capa grossa de tecido preto, pesado, que o cobria inteiro e descia pelo lombo do animal, como que num escudo de proteção.
Embora a primeira capa impermeável tivesse sido criada pelo químico escocês Charles Macintosh, em 1824, parece que a invenção não tinha chegado àquela cidadezinha do sul do Brasil.
Ou talvez fosse de preço inacessível ao povo em geral.
Ela observava, a cada manhã, sua mãe se dirigir ao portão da varanda da casa para apanhar o leite.
E ficava olhando, admirada, para aquele menino.
Corajoso ele, andando em cima daquele animal, que lhe obedecia as ordens, de forma tranquila.
Por vezes, ela até surpreendia os olhos do animal parecendo lhe dizer: Conheço você, menina, venho aqui todo dia.
Por que tem medo de mim?
O menino tinha uns dois ou três anos a mais e estava em classe superior à dela, na mesma escola.
No recreio, ela o via brincar, correr, jogar bola e se perguntava como ele conseguia se levantar tão cedo, distribuir leite pela manhã, voltar para casa, ir para a escola à tarde e ainda ter fôlego para as brincadeiras.
Sua timidez não lhe permitiu se aproximar dele, em todo o tempo dos bancos escolares de primeiro grau.
Nunca soube o seu nome.
E ele, com certeza, jamais soube como era admirado por aquela menina que, pelo canto da porta entreaberta, o via, todos os dias, entregar o leite à sua mãe.
Naqueles tempos, lembra ela, as crianças eram habituadas ao trabalho.
Todas tinham suas tarefas.
Antes ou depois da escola, entre o dever de casa, as refeições e a oração em família.
Em sua casa, o avô providenciava grossos troncos de árvores que rachava com afiado machado.
A ela cabia amontoar todos os pedaços de lenha, no porão.
E, diariamente, encher com eles a caixa atrás do fogão na cozinha.
Tirava água do poço e a transportava em baldes, no final das tardes quentes, para aguar as flores e os vegetais.
Bons tempos, diz ela, em que éramos ensinados que trabalho é o bem da vida, que trabalhar é viver.
Entre amigas, falávamos dos nossos deveres e, por vezes, invejávamos aquelas meninas ricas, que diziam que, em sua casa, os empregados faziam tudo.
Hoje, no entanto, olhando para trás, somos somente gratidão.
Gratidão a nossos pais por nos terem ensinado que é preciso colaborar, que família é esforço conjunto.
Que o trabalho nos dignifica os dias.
Depois de uma pausa, concluiu: Como é bom sentir-se útil.
Como é bom poder fazer alguma coisa, todo dia, a cada dia.
Lições do ontem, imprescindíveis para o hoje.
Pensemos nisso.
Redação do Momento Espírita.
Em 22.
4.
2024