Creio necessário declarar, no pórtico deste livro, que, a meu ver, nenhuma obra acerca dos aspectos experimentais do Espiritismo terá valor por si mesma, Isolada do contexto dos cinco documentos básicos da Doutrina, Isto é:
* O Livro dos Espíritos;
* O Livro dos Médiuns;
* O Evangelho segundo o Espiritismo;
* O Céu e o Inferno; e
* A Gênese.
É claro que a lista não termina aí.
Há, na literatura espírita, um acervo considerável de livros que constituem leitura obrigatória para todo aquele que se propõe a um trabalho sério junto aos companheiros desencarnados, pois não nos devemos esquecer de que o Espiritismo, como doutrina essencialmente evolutiva, não termina com Kardec; começa com ele.
O relacionamento com o mundo espiritual se reveste de enganosa simplicidade.
Realmente, em princípio, qualquer pessoa dotada de faculdades mediúnicas, mesmo Incipientes, pode estabelecer contacto com os desencarnados.
consciente ou inconscientemente, serena ou tumultuadamente.
Alguns o fazem compulsoriamente ou com relutância: outros com espontaneidade; uns com respeito e amor, outros com leviandade e indiferença: e muitos sem mesmo perceberem o que se passa e o que deve ser feito para ordenar um fenômeno que, como tantos outros, é natural, nada tendo de místico, fantástico ou sobrenatural, O importante é que, ao Iniciarmos o trato com os Espíritos desencarnados, voluntária ou involuntariamente, este jamos com um mínimo de preparação, apoiada num mínimo de informação.
Aquele que se atira à fenomenologia mediúnica sem estes petrechos indispensáveis, ou aquele que é arrastado a ela pela mediunidade indisciplinada ou desgovernada, estará se expondo a riscos Imprevisíveis para o seu equilíbrio emocional e orgânico.
A prática mediúnica não deve ser improvisada, pois não perdoa despreparo e ignorância.
O mundo espiritual é povoado de seres que foram homens e mulheres como nós mesmos, encontrando-se em variados estágios de desenvolvimento moral.
Pelo nosso mundo de encarnados podemos inferir o outro, do lado de lá.
Ali, como aquI, encontramos espíritos nobres e dotados de atributos morais avançados, mas, igualmente, a massa imensa daqueles que se acham da média para baixo, até os extremos mais dolorosos do aviltamento moral, da ignorância, da revolta, da angústia, do rancor, da vingança.
Como a base do fenômeno mediúnico é a sintonia espiritual, e como ainda nos encontramos todos em estágios inferiores da evolução, nos afinamos com maior facilidade com aqueles que também se acham perturbados por desequilíbrios de maior ou menor gravidade.
Isto não quer dizer, obviamente, que estejamos à inteira mercê dos espíritos perturbados e perturbadores; velam por nós companheiros de elevada categoria, sempre dispostos a nos ajudar, mas não nos podemos esquecer de que eles não podem fazer por nós as tarefas de que nos incumbem, nem livrar-nos das nossas provações, e muito menos coibir os mecanismos do nosso livre-arbítrio.
Podemos, evidentemente, contar com a boa-vontade e a ajuda desses irmãos maiores, e, por conseguinte, com a sua proteção carinhosa, não à custa de oferendas, de ritos mágicos, de simbolos, de “trabalhos” encomendados, mas sim, com um procedimento reto, no qual procuremos desenvolver em nós mesmos o esforço moralizador, o aprendizado constante e a dedicação desinteressada ao semelhante.
Nunca somos tão pobres de bens materiais e espirituais que não possamos doar alguma coisa ao companheiro necessitado, seja o pão ou a palavra de consolo e solidariedade.
É com estas atitudes que nos asseguramos da assistência de Irmãos mais experimentados e evoluidos, não para nos livrar das nossas dores, nem para cumprir mandados nossos ou atender às nossas menores exigências e súplicas, mas para nos concederem o privilégio da sua presença amiga, da sua inspiração oportuna, e da sua ajuda desinteressada, naquilo que for realmente proveitoso ao nosso espírito, e não naquilo que julgamos o seja.
Nunca é demais enfatizar que a organização de um grupo de trabalho mediúnico começa muito antes de dar-se início às suas tarefas propriamente ditas, com o estudo sistemático das obras básicas, e das complementares, da Doutrina Espírita: as de Allan Kardec, Léon Denis, Gabriel Delanne, Gustavo Geley, e certos trabalhos de origem mediúnica, como os de André Luiz.
Muita ênfase precisa ser posta no estudo dos escritos que cuidam do complexo problema da mediunidade, suporte indispensável de toda a tarefa programada.
Assim, é preciso insistir: a formação ou nascimento de um grupo émuito importante, e deve ser cercado dos mesmos cuidados que precedem à formação e ao nascimento de uma criança: ou seja, a educação dos pais.
Estão preparados para a tarefa? Desejam o filho? Dispõem-se aos sacrifícios e renúncias que o trabalho impõe? Estão conscientes das suas responsabilidades, dos percalços e das lutas que os esperam? Para que desejam o filho? Sonham fazer dele um grande homem, no sentido humano, forçando-o a uma tarefa acima de suas forças, para a qual não esteja preparado, ou se dispõem a criar condições para fazer dele um ser digno, pacificado e amoroso? Estão prontos a receber a tarefa com humildade? E, acima de tudo: estão prontos e dispostos a se doarem integralmente, sem reservas, ao amor ilimitado, sem condições e sem imposições? O amor não exige recompensa.
O amor, dizia Edgar Cayce, não é possessivo; o amor é.
Se estamos com essas disposições, podemos começar.
E começar pelo planejamento, e não pela execução atabalhoada e sem preparo.
Examinaremos o assunto por partes e com as cautelas devidas.
Voltaremos às questões que formulamos acima, ao comparar o grupo nascente com um filho.
Antes, ainda no corpo desta conversa inicial, uma observação de caráter pessoal: ao planejar a elaboração deste livro, julguei necessária uma pequena introdução que situasse a obra em seu contexto próprio.
Não foi preciso escrevê-la, pois já estava pronta.
“Reformador” de fevereiro de 1966 publicou um artigo intitulado “Espiritismo sem sessão espírita?”, que a seguir transcrevo, por interessar aos objetivos deste livro.
*
“Encontramos, às vezes, confrades que não gostam de freqüentar sessões espíritas.
As razões que os levam a essa decisão — creio eu — são respeitáveis, pois cada um de nós sabe de si e do que, modernamente, se convencionou chamar de suas motivações.
É preciso, entretanto, examinar de perto essa posição e ver o que contém ela de legítimo, não apenas no interesse da doutrina que todos professamos, mas também no interesse de cada um.
De fato, há alguns problemas ligados à freqüência de trabalhos mediúnicos.
O primeiro deles — e dos mais sérios — é o da própria mediunidade, essa estranha faculdade humana sobre a qual ainda há muito o que estudar.
Outra dificuldade ponderável é a organização de um bom grupo que se incumba, com regularidade e seriedade, das tarefas a que se propõe.
Há outros problemas e dificuldades de menor importância, mas creio que basta considerarmos aqui apenas esses dois — o que não é pouco.
A análise das questões mais complexas quase sempre começa pelas definições acacianas e de vez em quando é bom a gente recorrer a velhos conceitos para iluminar obstáculos novos.
O Espiritismo doutrinário nasceu das práticas mediúnicas, delas se nutre e delas depende, em grande parte, o seu desenvolvimento futuro.
O intercâmbio, entre o mundo espiritual e este, somente assumiu expressão e sentido filosófico depois que Kardec ordenou e metodizou os conhecimentos adquiridos no contacto com os nossos irmãos desencarnados.
Parece claro, também, que o eqüacionamento e a solução das grandes inquietações humanas vão depender, cada vez mais, da exata compreensão do mecanismo das relações entre esses dois mundos que, no final de contas, não são mais que um único, em planos diferentes.
Logo, a prática mediúnica é, não apenas aconselhável, como indispensável ao futuro da Humanidade.
Convém pensar também que a própria dinâmica da Doutrina Espírita exige esse intercâmbio espiritual, em primeiro lugar para que se observe e estude o fenômeno da mediunidade, suas grandezas, os riscos que oferece, as oportunidades de aprendizado e progresso que contém, não apenas para o médium, mas para aquele que assiste aos trabalhos e deles participa.
É claro que a mediunidade tem um mecanismo muito complexo e até agora poucos foram os cientistas dignos desse nome que se dedicaram, realmente, a fundo e com a mente desarmada de preconceitos, ao estudo dela.
Mas se não a observarmos em ação, como poderemos almejar compreendê-la um dia? Só aprendemos a nadar pulando dentro dágua sob a orientação de quem já tenha, a respeito, noções satisfatórias.
Se é incompleto o conhecimento sem a prática mediúnica, também o é o exercício desta sem o estudo daquilo que já se sabe sobre o fenômeno.
Evidentemente, precisamos estar atentos ao puro mediunismo sem objetivos mais elevados, como também ao animismo de certos médiuns mais interessados nas suas próprias idéias que na transmissão daquilo que recebem dos companheiros desencarnadOS.
Há riscos, sim.
De mistificações por parte de pobres irmãos carecentes de entendimento.
De aceitação de inverdades sutilmente apresentadas sob fascinantes roupagens.
De aflições — embora passageiras — causadas pelo desfile das angústias de irmãos sofredores.
Será, porém, que isso constitui motivo para nos privarmos das recompensas do aprendizado, das alegrias que experimentamos ao encaminhar às trilhas da paz um Espírito em crise?
Há um universo a explorar.
Há uma Humanidade inteira clamando por ajuda, esclarecimento, compreensão e caridade no chamado mundo espiritual.
Seus dramas e suas angústias não são puramente individuais.
O Espírito que erra, invariavelmente prejudica a alguém mais.
Os erros que cometemos, prendem-nos a uma cadeia de fatos e de seres que se estende pelo tempo a fora.
Nunca o drama de um Espírito é apenas seu.
Há sempre, nesta vida ou em algumas das anteriores, elos que nos ligam a outros seres e e outras dores.
Aquele que odeia, muitas vezes já está maduro para o perdão — basta uma palavra serena de esclarecimento, um gesto de tranqüila compreensão para libertar, não apenas o seu espírito da tormenta do ódio, mas também o irmão que lhe sofre as agressivas vibrações, provocadas por antigas mágoas.
Aos que ainda desejam vingar-se de antiquíssimas ofensas, mostramos a inutilidade do seu intento e os novos problemas com que virão agravar o seu futuro.
Ao que ainda se prende a superadas teologias, ajudamos a compreender a nova realidade que tem diante de si.
A todos os que erraram, consolamos com a nossa própria imperfeição e com a certeza da recuperação.
Os que já atingiram elevados patamares de conhecimento e amor, ouvimo-los com admiração e proveito.
Muitos nos buscam apenas para trazer notícias das suas próprias conclusões, da nova compreensão diante desse mistério sempre renovado da vida.
Multidões de seres que aqui viveram inúmeras vezes, como criaturas encarnadas, lá estão à espera de ajuda e, no entanto, são tão poucos os grupos que se dispõem a esse trabalho que tão altos dividendos paga em conhecimento e progresso espiritual.
No exercício constante dessa atividade, vemos, cada vez melhor, a solidez inabalável da doutrina que nos legaram os Espíritos, através da lúcida inteligência de Kardeç.
Crentes ou descrentes, católicos ou protestantes, todos nos vêm confirmar as verdades mestras do Espiritismo: as de que o Espírito sobrevive à morte física, de que reencarna, de que progride e aprende, tanto na carne como no Espaço; de que as leis universais são perfeitas, iniludíveis, mas flexíveis, pois exigem reparação, ao mesmo tempo que fornecem os recursos para o reencontro do Espírito com o seu próprio destino.
Nos dramas a que assistimos nas sessões mediúnicas, aprendemos a contemplar a transitoriedade do mal, a amarga decepção do suicida, a crueza do arrependimento daquele que desperdiçou o seu tempo na busca ansiosa das ilusões mundanas, a inutilidade das posições humanas, o ônus terrível da vaidade, a tensa expectativa de um novo mergulho na carne redentora, na qual o Espírito fica, pelo menos, anestesiado nas suas angústias.
Lições terríveis ministradas com lágrimas e gritos de desespero por aqueles que assumiram débitos enormes diante da Lei; lições de doce tranqüilidade e de serena humildade dos que já superaram as suas fraquezas e vêm, sem ostentação, apenas para mostrar como é o Espírito daquele que já venceu a si mesmo, na milenar batalha contra as suas próprias deficiências.
Muitas e variadas lições, aprendizado extenso e profundo para todos os que desejarem realmente apressar os passos e encurtar a caminhada que leva a Deus.
Por que, então, desprezar esse trabalho magnífico que tanta recompensa nos traz e também aos nossos irmãos do outro lado da vida?
Quanto à organização dos grupos, não será tão difícil assim.
Há estudos sérios e muito seguros de orientação doutrinária a respeito.
É bom que o grupo seja pequeno, de preferência familiar, composto de pessoas que se harmonizem perfeitamente e que estejam interessadas num trabalho sério e contínuo.
Que não se deixe desencorajar por dificuldades ou pela aparente insignificáncia dos primeiros resultados, nem se deixe fanatizar ou fascinar por pseudoguias.
Aos poucos, demonstrada a seriedade de propósitos, os trabalhos irão surgindo, sob a orientação de Espíritos esclarecidos.
A cada bom grupo de seres encarnados dispostos à tarefa, corresponderá um grupo equivalente de Espíritos, num intercâmbio salutar de profundas repercussões, pois Espiritismo é doutrina, mas é também prática mediúnica, e todos nós, ainda que nem sequer suspeitemos disso, temos compromissos a executar, ajustes a realizar com irmãos que nos aguardam mergulhados em ódios e incompreensões, que se envenenam a si mesmos e a nós próprios.
“Lamentar a desgraça — dizia Horace Mann — é apenas humano; minorá-la é divino.
”
*
E assim, creio que estamos prontos para entrar na matéria propriamente dita.
Rio de Janeiro (RJ), 1976
HERMÍNIO C.
MIRANDA