HERMÃNIO C. MIRANDA
É CLARO QUE OS ESPÃRITAS estudiosos e conscientes das responsabilidades que Ihes confere o conhecimento da Doutrina não podem estar satisfeitos com o estado atual da civilização. Estar insatisfeito, porém, não implica necessariamente estar inquieto, inseguro ou desesperado quanto ao desenrolar dos acontecimentos futuros. Insatisfação experimentamos, não obstante, ao contemplar uma sociedade que se envenena de ódios raciais, preconceitos religiosos, rivalidades internacionais, desorientação filosófica, espiritual e moral, uso imoderado de drogas, liberdades mal definidas de um lado e compressões impiedosas de outro, ignorância numa ponta e erudição inócua na outra, miséria e desperdício, revolta e apatia.
Levantamentos recentes estimam que 10.000 pessoas morrem diariamente em consequência da subnutrição, enquanto nos Estados Unidos cada pessoa consome, também por dia, cerca de dois quilos de alimentos e ainda se joga fora uma quantidade suficiente para nutrir uma família de seis pessoas na Ãndia. Um bilhão e meio de pessoas ” notem bem: um bilhão e meio! ”vivem em estado permanente de fome, com um pouquinho de arroz duas vezes por semana e, as vezes, um raro e exíguo pedaço de peixe. Enquanto isso, trigo, manteiga, ovos e frutas apodrecem em depósitos imensos por causa da política de sustentação de preços mínimos ”bem intencionada porque visa a garantir condições razoáveis de remuneração ao agricultor, mas que, ao mesmo tempo, coloca tais alimentos, tão desejados em tantas áreas do mundo faminto, fora do alcance das multidões subnutridas.
Certamente precisamos de uma reformulação dos métodos de produção e distribuição dos fatores básicos de sustentação da vida do homem sobre a Terra, A atualidade do mundo ” escrevia Emmanuel já em 1937 ” necessita criar um novo mecanismo de justiça econômica entre os povos. Diagnosticou o Espirito as mazelas da sociedade humana como decorrência da ânsia de domínio e de destruição. De 1937 para cá as coisas somente mudaram para pior e se assim seguirmos vamos ver concretizado o temor de Emmanuel numa espécie de profecia velada: Os raios da luz deixarão ver, nas margens do Tâmisa, do Tibre e do Sena, o local onde a civilização ocidental suicidou-se a mingua de conhecimentos espirituais ( Emmanuel, pág. 108).
O que se gasta em conflitos armados ou em programas espaciais daria para levantar, do angustiante charco da miséria em que vegetam, aquele bilhão e meio de seres humanos. Temos o direito de pensar que esses recursos fabulosos se destinam apenas a manter prestigio internacional. O preço não importa, em dinheiro ou em vidas humanas, Com a inteligência que Deus nos permite desenvolver praticamente ao infinito, o homem penetrou pelos confins da matéria adentro. E para surpresa sua, lá não encontrou matéria e sim poderosíssimos nícleos de energia.
Lembro aqui a atitude profundamente sábia e humilde do grande professor negro George Washington Carve que, diante do amendoim, perguntou em prece: Por que teria Deus feito o amendoim?
O mundo seria outro hoje se Fermi, Oppenheimer e outros tivessem, de joelhos, perguntado por que Deus colocou vórtices de energia no coração da matéria. Certamente que não foi para fazer artefatos mortíferos que desintegram seres e cidades e sacodem a própria Terra e disseminam quantidades incalculáveis de radiações maléficas. O conhecimento chegou, pois, antes da moral e os segredos da matéria foram tomados de assalto por grupos que não estavam ainda voltados para Deus. E por isso que a Doutrina Espírita ensina que o conhecimento traz responsabilidade. E é por isso que não podemos estar satisfeitos com o mundo em que vivemos, embora totalmente confiantes na supervisão de Deus e na vitória final do bem, no predomínio da paz e do entendimento entre as criaturas, na inevitável evolução para uma sociedade equilibrada, justa, harmoniosa, sem ódios, sem fome.
A Doutrina Espírita não é indiferente ao sofrimento. Estaria negando seus próprios fundamentos, desde que Kardec firmou o princípio de que fora da caridade não há salvação. Não estamos mais nos tempos em que a salvação era um mero conceito teológico e egoísta Nos dias que correm a caridade assume dimensões universais. Não consiste apenas em dar esmola ao pobre, conselho ao aflito, solidariedade ao que sofre; enfim ” está em jogo não mais apenas a salvação individual, para um céu inconcebível, e sim a salvação coletiva Viajamos pelo espaço sideral numa nave espacial chamada Terra, ou mudamos os rumos das nossas intenções e das nossas realizações, ou as próprias forças cósmicas que o homem está desatando passarão a esponja atômica sobre o quadro-negro desta civilização tumultuada para recomeçar tudo de novo, sob condições que não temos capacidade nem para imaginar. Que a transição virá é certo, certíssimo, mas por que fazê-la um espetáculo universal de angístias imensas, se podemos esperá-la em paz, no ritmo certo dos processos evolutivos ?
Somos testemunhas atônitas de um tumulto exasperante que os modernos métodos da informática trazem a cada instante, para dentro dos nossos lares, na desesperada disputa de atenção. Somos bem mais que testemunhas, porque participamos desse alucinante agitar que perturba e desespera aquele que não tem em si mesmo o firme suporte de uma crença racional na suprema supervisão divina. Somos também címplices, quando calamos diante daqueles que, no desespero de sua descrença ou na inconsciência de suas paixões, procuram implantar o regime universal da irresponsabilidade inconsequente, da prepotência esmagadora, da angístia coletiva e generalizada, invocando, muitas vezes, princípios humanitários inteiramente válidos.
Vemos em toda essa efervescência o velho dualismo luz-trevas, bem-mal, paz-conflito, esplrito-matéria, amor-ódio. A luta parece,às vêzes, desigual, porque todos os métodos são bons para aqueles que do lado das sombras procuram envolver e extinguir as luzes que ainda brilham em nossos caminhos. E que do lado da luz estão os que se acham convencidos de que nem todos os processos são válidos ainda mesmo quando estejam empenhados em disseminar o bem, porque os métodos são parte integrante, indissociável dos fins a que visam. Não se pode matar, oprimir e corromper por amor; no entanto, arremedos de amor e caricaturas de liberdade são criados por aqueles para os quais quanto pior, melhor.
Se, porém, examinarmos com cuidado os fatos não nos será difícil distinguir, com clareza, as fronteiras que separam os dois mundos, as duas tendências, as duas posições, os dois impulsos: há um grupo que está voltado para Deus, para as conquistas do espírito, para a auto-realização, empenhado na contínua expansão da própria consciência. E consciência está aqui empregada não apenas no sentido moral, ético, como também nas suas implicações psicológicas, pois de ambas as manifestações necessitamos para integração do ser: a consciência moral que exige de nós a prática do bem, e a consciência psicológica que nos assegura um estado de crescente alertamento quanto a nós mesmos e ao mundo que nos cerca.
Estamos assistindoà batalha decisiva entre a luz e as sombras. Embora não tenhamos dívida quanto ao êxito final do bem, seria criminoso cruzar os braços e deixar simplesmente que os acontecimentos se desenrolem porque Deus é bom, justo e poderoso. A bondade, a justiça e o poder de Deus não nos dispensam das nossas tarefas e elas estão claramente diante de nós. Uma dessas tarefas é a nossa participação na sociedade em que vivemos, na contribuição que podemos oferecer para abreviar a implantação da paz prevista por todos os grandes orientadores da humanidade.
Um principio universal nos servirá nas tarefas que nos cabem: a sociedade não será jamais melhor do que os seus componentes individuais, da mesma forma que não pode existir um organismo sadio quando as células estão doentes. Muitos são os instrumentos da nossa participação na sociedade. Precisamos estudá-los tanto na forma e na aparência, como no conteído, na Substância, porque no grande alarido que é a vida moderna até as mesmas palavras dizem coisas diferentes a diferentes pessoas no tempo e no espaço. Democracia é uma dessas palavras que a gente precisa saber quem a pronuncia, para saber o que quer dizer, porque tanto pode significar liberdade total, nos limites da anarquia, como a mais negra opressão, em nome de um povo que pretende representar. Socialismo é outro vaso no qual tantos sentidos foram despejados que a água que dele retiramos, hoje, escorre duvidosa e turva. O socialismo ”escreve Emmanuel em O Consolador ” é uma bela expressão de cultura humana, enquanto não resvala para os polos do extremismo. Entende esse querido Espirito que os homens poderão perfeitamente resolver, sem atritos, as questões sociais quando decidirem a aceitar e aplicar os princípios sagrados do Evangelho. Os regulamentos apaixonados, as greves, os decretos unilaterais, as ideologias revolucionárias, são cataplasmas inexpressivos, complicando a chaga da coletividade».
Quantoà desigualdade social, é o mais elevado testemunho da verdade da reencarnação, mediante a qual cada espírito tem sua posição definida de regeneração e resgate. Nesse caso, consideramos que a pobreza, a miséria, a guerra, a ignorância, como outras calamidades coletivas, são enfermidades do organismo social, devidoà situação de prova da quase generalidade de seus membros. Cessada a causa patogênica, com a iluminação espiritual de todos em Jesus-Cristo, a moléstia coletiva estará eliminada dos ambientes humanos.
A igualdade absoluta é, pois, um erro grave dos sociólogos, em qualquer departamento da vida. A tirania política poderá tentar uma imposição nesse sentido, mos não passará das espetaculosas uniformizações simbólicas para efeitos exteriores, porquanto o verdadeiro valor de um homem está no seu íntimo, onde cada espírito tem sua posição definida pelo próprio esforço (O Consolador ).
É assim que vemos criaturas que se dizem cristãs em conflito fatal com irmãos da mesma crença e raça, orando ao mesmo Cristo, a se estraçalharem nas ruas como tribos primitivas que adorassem diferentes deuses. E estamos vendo, atônitos, o teólogo ateu pregar a morte de Deus. E sacerdotes terroristas que, em oposição ao próprio Evangelho em que dizem crer, se tornarem militantes da violência. Esquecidos da mensagem de paz que é a tônica da pregação evangélica, agridem, contestam, agitam e aplaudem assaltos, Sequestrou e assassinatos frios. Nesse trabalho desesperado, buscam esses estranhos ministros de Deus uma dupla finalidade: não apenas agir mais á vontade a sombra de uma instituição sob muitos títulos ainda respeitável, como ao mesmo tempo, contaminar para solapar e colocar sob suspeita, para desmoralizar, a organização mesma. Muitos hoje se perguntam confusos: será a Igreja apenas vitima da infiltração dos apóstolos do terror ou quem sabe não estará ela também comprometida com os mesmos objetivos ? A questão parece injusta, pois se muitas deformações podemos apontar no cristianismo institucionalizado, não podemos fazer-lhe a injíria de admitir que os seus dirigentes mais responsáveis assistam com benevolência ao seu progressivo envolvimento num processo de militância desagregadora.
Que nos sirva a nós, espíritas, a evidente e dolorosa lição que temos diante de nós. Vamos falar claro e firme: o movimento espírita ” força viva dentro da comunidade brasileira ” também está sofrendo uma tentativa de envolvimento. Não temos o direito de esquecer que o espirita pode ser político, mas o Espiritismo não. O movimento espirita brasileiro resulta de um trabalho muito sério, profundo, bem intencionado e puro de uma equipe muito grande de seres dedicadíssimos que, no passado. construíram as nossas bases. Vamos aceitar a tarefa ingrata de entregá-lo a grupos que apenas desejam utilizá-lo como instrumento para a conquista do poder temporal ? Não é este, por certo, o objetivo da nossa Doutrina. E claro que o Espiritismo tem uma contribuição valiosa a oferecer para solução dos problemas sociais que afligem o mundo moderno. Essa contribuição está contida no conhecimento do ser humano e do mecanismo de algumas das leis divinas que regulam os processos da vida. O homem é um ser espiritual que preexiste e sobreviveà sua transitória existência na carne. Obviamente, tem de se haver com problemas de ordem material enquanto estiver encarnado, mas não basear a sua filosofia de vida e seu programa de trabalho, entre os homens, em estruturas materialistas. Aquele que se coloca na posição espírita com honestidade de propósitos convicção e conhecimento compreende a impossibilidade de conciliar uma doutrina essencialmente espiritualista, deísta, imortalista, reencarnacionista, com movimentos escorados no materialismo histórico, nos métodos terroristas de assalto ao poder, na negação dos princípios da liberdade responsável.
Não há lugar para movimentos desse teor dentro do Espiritismo.